OPERAÇÃO SATIAGRAHA
Fábio Wanderley Reis
Fábio Wanderley Reis
A confusão criada em torno da operação Satiagraha da Polícia Federal leva talvez sobretudo a uma indagação: temos "patrimonialismo", com o Estado exposto à sanha de interesses privados poderosos, ou temos antes "abuso de autoridade" por parte do Estado? Ou será que as duas coisas se ligam, sendo uma a contraface da outra?
Apontei aqui, há algum tempo, a ambiguidade envolvida no que caberia desejar quanto à autonomia do Estado. Por um lado, se pensamos na "soberania popular" e na imagem de um "povo" homogêneo que ela evoca, parece claro que o Estado não pode ser autônomo; por outro, se o Estado se relaciona com uma sociedade desigual, sua sujeição ao povo supostamente soberano pode redundar em que ele se transforme, no limite, no "comitê executivo" de interesses privados poderosos. Que dizer de uma situação, como a nossa, em que o tamanho da desigualdade permite à linguagem corrente contrapor com clareza um "povão" - numeroso, pobre e ignorante - a uma parcela comparativamente reduzida da população que se poderia pretender aproximar, por alguns traços, do "povo" idealizado e soberano?
Estado subjugado ou abuso estatal?
Menos mal que o "povão", sendo numeroso, ganha eleições, o que, se a democracia e o sufrágio se garantem, não pode senão ter, no longo prazo, efeitos democratizantes sobre o Estado e a sociedade. Mas as vicissitudes do processo acumulam feições contraditórias em que a ambiguidade fundamental ganha dramaticidade e que o noticiário recente sobre as atividades do braço policial ou armado do Estado deixa ver: de um lado, ações desastradas ou diretamente criminosas de forças policiais ou militares que comprometem - em geral para o "povão" - o próprio direito à vida; de outro, uma PF aparentemente imbuída do espírito de luta contra o que ela mesma vê como o "mal" e que se traduz direta e explicitamente em termos de indevida apropriação privada do Estado.
O diabo é que, se nos voltamos para o plano econômico-financeiro, não há como carimbar negativamente, de maneira taxativa, sequer a aproximação, afim à idéia de patrimonialismo, entre o Estado e interesses privados.
Que dizer, por exemplo, de uma entidade como o BNDES?
Os juros módicos de seus empréstimos à iniciativa empresarial são sem dúvida defensáveis em nome do interesse público, destinando-se a permitir investimentos e crescimento que supostamente beneficiam a todos (a assimilação, em algum grau, entre interesse empresarial e interesse público constitui, em muitas análises, importante fator a viabilizar a própria democracia).
Mas eles não só resultam, ocasionalmente, em autênticas doações de recursos volumosos a ricos empresários (como nos tempos de juros reais negativos diante da inflação); eles permitem também, como Raquel Balarin destacava em sua coluna de 16 de julho neste jornal, a especulação financeira por parte dos bancos, a jogar, de modo perfeitamente legal, com o diferencial entre a taxa de 6,25% ao ano cobrada pelo BNDES e os 12,25% da taxa Selic. Se isso é possível, se lobbies ou grupos de pressão constituem também uma atividade em princípio aceitável, torna-se, naturalmente, problemático (ainda que seja fácil ver corrupção no extremo do suborno de delegados) situar o ponto em que começa o condenável "tráfico de influência" de um Daniel Dantas - cujo alcance notável acaba por incomodar de imediato ao governo, calar a boca da oposição, mobilizar a ira de Gilmar Mendes e levar os deputados em geral ao gracejo algo assustado de transformar Satiagraha em "essa me agarra"...
Mas, na dinâmica de nossa sociedade desigual, a própria Justiça surge dividida nos eventos que se desenrolam. Por certo, o Judiciário tem papel crucial a cumprir para a "boa" autonomia do Estado, encarregado de zelar imparcialmente pelo império de leis neutras diante dos interesses diversos. Mas não é de surpreender, numa sociedade de larga experiência escravista e aristocrática, que a Justiça em geral manifeste ainda um viés elitista em sua atuação, e que também aos seus olhos alguns acabem sendo mais cidadãos do que outros. Certamente há matizes, que respondem em parte pela divisão observada. Sem falar da Justiça do Trabalho, em que o viés em favor de empregados ou trabalhadores é notório há tempos, o antigo conservadorismo dos profissionais ligados à área do Direito tem sido substituído, como mostram pesquisas recentes, pelo apego majoritário dos juízes à idéia de justiça social como referência e orientação, em vez da letra da lei. Aí se desdobra de modo importante a idéia de um Estado (e um Judiciário como seu instrumento) autônomo e capaz de neutralidade: seria preciso alcançar uma neutralidade de "segundo grau", em que o fundamento por excelência do acesso de todos à Justiça e da adequada e igualitária garantia dos direitos civis (e políticos) esteja no avanço social geral e na eventual condição igualitária da sociedade como tal.
É possível destacar o aspecto pelo qual a referência à justiça social, em vez do apego à letra da lei, converge com o ativismo legislativo que a cúpula do Judiciário tem defendido com respeito à sua própria ação. Seja como for, é com certeza relevante o fato de que, quanto a essa cúpula, a veemência indignada e a singular rapidez na denúncia dos abusos de autoridade e nas decisões correspondentes ocorram quando tudo mostra a vítima dos presumíveis abusos como o mentor de avanços singularmente ousados de interesses privados sobre o Estado.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Mas, na dinâmica de nossa sociedade desigual, a própria Justiça surge dividida nos eventos que se desenrolam. Por certo, o Judiciário tem papel crucial a cumprir para a "boa" autonomia do Estado, encarregado de zelar imparcialmente pelo império de leis neutras diante dos interesses diversos. Mas não é de surpreender, numa sociedade de larga experiência escravista e aristocrática, que a Justiça em geral manifeste ainda um viés elitista em sua atuação, e que também aos seus olhos alguns acabem sendo mais cidadãos do que outros. Certamente há matizes, que respondem em parte pela divisão observada. Sem falar da Justiça do Trabalho, em que o viés em favor de empregados ou trabalhadores é notório há tempos, o antigo conservadorismo dos profissionais ligados à área do Direito tem sido substituído, como mostram pesquisas recentes, pelo apego majoritário dos juízes à idéia de justiça social como referência e orientação, em vez da letra da lei. Aí se desdobra de modo importante a idéia de um Estado (e um Judiciário como seu instrumento) autônomo e capaz de neutralidade: seria preciso alcançar uma neutralidade de "segundo grau", em que o fundamento por excelência do acesso de todos à Justiça e da adequada e igualitária garantia dos direitos civis (e políticos) esteja no avanço social geral e na eventual condição igualitária da sociedade como tal.
É possível destacar o aspecto pelo qual a referência à justiça social, em vez do apego à letra da lei, converge com o ativismo legislativo que a cúpula do Judiciário tem defendido com respeito à sua própria ação. Seja como for, é com certeza relevante o fato de que, quanto a essa cúpula, a veemência indignada e a singular rapidez na denúncia dos abusos de autoridade e nas decisões correspondentes ocorram quando tudo mostra a vítima dos presumíveis abusos como o mentor de avanços singularmente ousados de interesses privados sobre o Estado.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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