Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Depois da grande crise de 2001 e 2002, ninguém poderia prever que a Argentina cresceria a taxas elevadas que vem crescendo. Nos primeiros anos, a explicação encontrada foi a de que o país estava recuperando o nível de renda anterior por meio da utilização de capacidade ociosa. Na medida, porém, em que as altas taxas persistiram, argumentou-se que a explicação estava no aumento dos preços das commodities exportadas pelo país - explicação mais razoável mas insuficiente, já que o Brasil, que igualmente se beneficiara da melhoria das relações de intercâmbio, crescia a taxas muito menores.
Na verdade, o crescimento acelerado da economia argentina decorre da política macroeconômica em curso, que neutraliza a doença holandesa. Até hoje muitos se recusam a aceitar isso - os neoliberais no exterior porque não perdoam a Argentina haver logrado uma redução de sua dívida externa; um grande número de argentinos, porque os maus resultados econômicos dos últimos 60 anos os tornaram pessimistas. E a persistência de inflação em torno de 20% ao ano os anima. Mas o que a Argentina vem fazendo é muito semelhante ao que fazem as economias asiáticas novo-desenvolvimentistas que crescem aceleradamente no mundo: mantém o orçamento público equilibrado, a taxa média de juros em nível moderado e a taxa de câmbio, competitiva.
Deste tripé macroeconômico, a política mais difícil é a de manter a taxa de câmbio em um nível de verdadeiro equilíbrio, ou seja, em um nível que torne competitivas as indústrias locais que utilizem a tecnologia mais avançada existente no mundo. Manter a taxa de câmbio nesse nível é difícil porque nos países em desenvolvimento existe uma tendência à sobreapreciação da taxa de câmbio que decorre do populismo cambial interno, de duas recomendações vindas do Norte (que o país cresça com poupança externa e que combata a inflação usando o câmbio) e da doença holandesa. Apreciar a taxa de câmbio é prática populista clássica: com a depreciação, os preços dos bens comercializáveis caem, os salários reais aumentam e durante alguns anos o país vive um auge populista. É uma pratica que, de forma paradoxal, o FMI passou a apoiar a partir do início dos anos 90, ao adotar a política de crescimento com poupança externa. Além disso, como não interessa aos países ricos que países de renda média sejam competitivos internacionalmente, desconsideram a doença holandesa, e seus economistas neoliberais ensinam que "no longo prazo é impossível administrar a taxa de câmbio", não obstante essa tese venha sendo desmentida por quase todos os países que lograram crescer rapidamente.
A terceira causa da sobreapreciação da taxa de câmbio, a doença holandesa, merece uma explicação um pouco mais completa. Existe doença holandesa em um país quando recursos naturais abundantes e baratos geram "rendas ricardianas" que tornam a "taxa de câmbio de equilíbrio corrente" (a taxa que equilibra intertemporalmente a conta corrente) mais apreciada do que "taxa de câmbio de equilíbrio industrial" (a taxa que viabiliza indústrias utilizando tecnologia no estado-da-arte mundial). As rendas ricardianas decorrem dos diferenciais de produtividade dos recursos naturais que, tornando os produtos beneficiados por essas rendas mais baratos, são compatíveis economicamente com taxa de câmbio mais apreciada. A gravidade da doença holandesa varia de acordo com a diferença relativa entre essas duas taxas. Em um país produtor de petróleo no qual os custos de exploração ainda são baixos, essa doença pode ser gravíssima, impedindo qualquer outra indústria; já em um país como a Argentina, no qual a origem da doença é a fertilidade da terra, a gravidade da doença é menor e indústrias muito competitivas podem continuar a vender no mercado interno se contarem com modesta proteção tarifária (uma forma incompleta de neutralizar a doença holandesa). Além de variar de commodity para commodity exportada, a gravidade da doença varia também em função das mudanças do preço internacional da commodity: quando ele aumenta, ela se agrava; quando diminui, diminui sua gravidade e pode mesmo desaparecer.
A forma clássica de neutralizar a doença holandesa, ou seja, de transformar as rendas ricardianas em uma bênção, é o governo estabelecer um imposto ou uma retenção sobre as vendas e exportações do produto proporcional à gravidade da apreciação que causa. Uma retenção, portanto, diferente de produto para produto, e é variável de acordo com o preço internacional do produto. É exatamente isso que vem sendo feito com competência na Argentina. Se esse sistema for completado com a criação de um fundo de investimentos no exterior para impedir que os resultados do imposto sejam internalizados, melhor, porque deixará de haver pressão do lado da demanda sobre a taxa de câmbio. Mas mesmo que isto não ocorra (como é o caso da Argentina), a retenção garantirá, do lado da oferta, que o câmbio não se aprecie.
Este é talvez o mecanismo que os leigos (e muitos economistas) têm mais dificuldade de compreender. Suponhamos que haja apenas uma commodity causando doença holandesa, que a taxa de câmbio de equilíbrio industrial em um país seja de três unidades e a de equilíbrio corrente de duas unidades de moeda local (pesos, no caso argentino) por dólar. O efeito da retenção é deslocar a curva de oferta da commodity para cima. Uma retenção de 33% fará essa "mágica" que nada tem de mágica. Graças a ela, a exportação da commodity, que antes da retenção era viável para o produtor a uma taxa de duas unidades de moeda local, agora só é viável economicamente à taxa de equilíbrio industrial de três unidades por dólar. Assim, o produtor deixa de oferecer seu produto à taxa de câmbio anterior de duas unidades por dólar, que devido à retenção se tornou inviável para ele. Em conseqüência, a taxa de câmbio que, sem a retenção, seria de duas unidades por dólar (já que ela tende a ser definida pelo custo marginal mais baixo), permanece em três; a doença holandesa está neutralizada, já que não sobreaprecia a taxa de câmbio.
Nesse sistema, embora aparentemente seja o produtor de soja, ou de trigo, ou de carne que "paga" o imposto, na verdade quem o paga são os consumidores ou os cidadãos argentinos, porque o preço de todas as commodities fica mais caro. Mas eles o recuperam por meio da retenção: recuperam-no no curto prazo porque os recursos da retenção são receita de seu próprio Estado; mais do que, o recuperam no médio prazo, porque a indústria do país prospera, o país se desenvolve, o emprego, os salários e os lucros aumentam. Não é o produtor que paga, porque se todas as retenções fossem retiradas, a taxa de câmbio baixaria para duas unidades por dólar, e ele estaria pagando da mesma forma os mesmos 33% de retenção sob a forma de câmbio mais apreciado, ao mesmo tempo em que a economia do país, vítima da doença holandesa, deixaria de crescer, ou voltaria a crescer lentamente, além de ficar sujeita a crises crônicas de balanço de pagamentos.
Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas.
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Depois da grande crise de 2001 e 2002, ninguém poderia prever que a Argentina cresceria a taxas elevadas que vem crescendo. Nos primeiros anos, a explicação encontrada foi a de que o país estava recuperando o nível de renda anterior por meio da utilização de capacidade ociosa. Na medida, porém, em que as altas taxas persistiram, argumentou-se que a explicação estava no aumento dos preços das commodities exportadas pelo país - explicação mais razoável mas insuficiente, já que o Brasil, que igualmente se beneficiara da melhoria das relações de intercâmbio, crescia a taxas muito menores.
Na verdade, o crescimento acelerado da economia argentina decorre da política macroeconômica em curso, que neutraliza a doença holandesa. Até hoje muitos se recusam a aceitar isso - os neoliberais no exterior porque não perdoam a Argentina haver logrado uma redução de sua dívida externa; um grande número de argentinos, porque os maus resultados econômicos dos últimos 60 anos os tornaram pessimistas. E a persistência de inflação em torno de 20% ao ano os anima. Mas o que a Argentina vem fazendo é muito semelhante ao que fazem as economias asiáticas novo-desenvolvimentistas que crescem aceleradamente no mundo: mantém o orçamento público equilibrado, a taxa média de juros em nível moderado e a taxa de câmbio, competitiva.
Deste tripé macroeconômico, a política mais difícil é a de manter a taxa de câmbio em um nível de verdadeiro equilíbrio, ou seja, em um nível que torne competitivas as indústrias locais que utilizem a tecnologia mais avançada existente no mundo. Manter a taxa de câmbio nesse nível é difícil porque nos países em desenvolvimento existe uma tendência à sobreapreciação da taxa de câmbio que decorre do populismo cambial interno, de duas recomendações vindas do Norte (que o país cresça com poupança externa e que combata a inflação usando o câmbio) e da doença holandesa. Apreciar a taxa de câmbio é prática populista clássica: com a depreciação, os preços dos bens comercializáveis caem, os salários reais aumentam e durante alguns anos o país vive um auge populista. É uma pratica que, de forma paradoxal, o FMI passou a apoiar a partir do início dos anos 90, ao adotar a política de crescimento com poupança externa. Além disso, como não interessa aos países ricos que países de renda média sejam competitivos internacionalmente, desconsideram a doença holandesa, e seus economistas neoliberais ensinam que "no longo prazo é impossível administrar a taxa de câmbio", não obstante essa tese venha sendo desmentida por quase todos os países que lograram crescer rapidamente.
A terceira causa da sobreapreciação da taxa de câmbio, a doença holandesa, merece uma explicação um pouco mais completa. Existe doença holandesa em um país quando recursos naturais abundantes e baratos geram "rendas ricardianas" que tornam a "taxa de câmbio de equilíbrio corrente" (a taxa que equilibra intertemporalmente a conta corrente) mais apreciada do que "taxa de câmbio de equilíbrio industrial" (a taxa que viabiliza indústrias utilizando tecnologia no estado-da-arte mundial). As rendas ricardianas decorrem dos diferenciais de produtividade dos recursos naturais que, tornando os produtos beneficiados por essas rendas mais baratos, são compatíveis economicamente com taxa de câmbio mais apreciada. A gravidade da doença holandesa varia de acordo com a diferença relativa entre essas duas taxas. Em um país produtor de petróleo no qual os custos de exploração ainda são baixos, essa doença pode ser gravíssima, impedindo qualquer outra indústria; já em um país como a Argentina, no qual a origem da doença é a fertilidade da terra, a gravidade da doença é menor e indústrias muito competitivas podem continuar a vender no mercado interno se contarem com modesta proteção tarifária (uma forma incompleta de neutralizar a doença holandesa). Além de variar de commodity para commodity exportada, a gravidade da doença varia também em função das mudanças do preço internacional da commodity: quando ele aumenta, ela se agrava; quando diminui, diminui sua gravidade e pode mesmo desaparecer.
A forma clássica de neutralizar a doença holandesa, ou seja, de transformar as rendas ricardianas em uma bênção, é o governo estabelecer um imposto ou uma retenção sobre as vendas e exportações do produto proporcional à gravidade da apreciação que causa. Uma retenção, portanto, diferente de produto para produto, e é variável de acordo com o preço internacional do produto. É exatamente isso que vem sendo feito com competência na Argentina. Se esse sistema for completado com a criação de um fundo de investimentos no exterior para impedir que os resultados do imposto sejam internalizados, melhor, porque deixará de haver pressão do lado da demanda sobre a taxa de câmbio. Mas mesmo que isto não ocorra (como é o caso da Argentina), a retenção garantirá, do lado da oferta, que o câmbio não se aprecie.
Este é talvez o mecanismo que os leigos (e muitos economistas) têm mais dificuldade de compreender. Suponhamos que haja apenas uma commodity causando doença holandesa, que a taxa de câmbio de equilíbrio industrial em um país seja de três unidades e a de equilíbrio corrente de duas unidades de moeda local (pesos, no caso argentino) por dólar. O efeito da retenção é deslocar a curva de oferta da commodity para cima. Uma retenção de 33% fará essa "mágica" que nada tem de mágica. Graças a ela, a exportação da commodity, que antes da retenção era viável para o produtor a uma taxa de duas unidades de moeda local, agora só é viável economicamente à taxa de equilíbrio industrial de três unidades por dólar. Assim, o produtor deixa de oferecer seu produto à taxa de câmbio anterior de duas unidades por dólar, que devido à retenção se tornou inviável para ele. Em conseqüência, a taxa de câmbio que, sem a retenção, seria de duas unidades por dólar (já que ela tende a ser definida pelo custo marginal mais baixo), permanece em três; a doença holandesa está neutralizada, já que não sobreaprecia a taxa de câmbio.
Nesse sistema, embora aparentemente seja o produtor de soja, ou de trigo, ou de carne que "paga" o imposto, na verdade quem o paga são os consumidores ou os cidadãos argentinos, porque o preço de todas as commodities fica mais caro. Mas eles o recuperam por meio da retenção: recuperam-no no curto prazo porque os recursos da retenção são receita de seu próprio Estado; mais do que, o recuperam no médio prazo, porque a indústria do país prospera, o país se desenvolve, o emprego, os salários e os lucros aumentam. Não é o produtor que paga, porque se todas as retenções fossem retiradas, a taxa de câmbio baixaria para duas unidades por dólar, e ele estaria pagando da mesma forma os mesmos 33% de retenção sob a forma de câmbio mais apreciado, ao mesmo tempo em que a economia do país, vítima da doença holandesa, deixaria de crescer, ou voltaria a crescer lentamente, além de ficar sujeita a crises crônicas de balanço de pagamentos.
Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas.
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