José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
A sociedade se afunda em prognósticos otimistas para agüentar os altos e baixos da história
Entre o Natal e o ano-novo, abre-se entre nós um tempo intermediário e ritual, que é o tempo do esquecimento. Isso é próprio da sociedade brasileira e de sua cultura popular. De repente, o pessimismo cotidiano é colocado entre parênteses. Momentaneamente esquecidos, afundamos em otimistas prognósticos sempre que um novo ano se aproxima. Esquecemos que 2008 teve pouco a ver com o feliz 2008 vislumbrado na última semana de 2007. Nosso conformismo ritual nos faz agüentar os altos e baixos da história, o doloroso percurso de uma sociedade construída em cima dos alicerces da escravidão, da injustiça e da vítima, da desigualdade profunda, da miséria e até da fome, recompensados ilusoriamente com o espetáculo da prosperidade de proporcionalmente poucos como se fosse ela a promessa de superação da pobreza de muitos.
Nossa concepção de esperança é a da espera, o que faz com que o ano-novo não tenha, para nós, propriamente a mera duração dos 365 dias. Quando nos perguntam como vemos o novo ano, nosso ano de referência é o do longínquo e milenário fim dos tempos, do paciente adiamento da justiça, da alegria e da fartura.
É nesse horizonte da distância temporal que se pode compreender os problemas do que se propõe no calendário do ano que começa. Alguns temas já se desenham na agenda do próximo ano. A crise econômica, em primeiro lugar. Crise que não se reflete na nossa economia com as mesmas características que tem nos centros dominantes da economia global. Estamos no pólo invertido do sistema econômico e não nos seus centros de decisão e manobras. Nossa economia faz parte do elenco das economias defensivas. Não somos nesse sistema uma economia de decisão. Além do que a crise chegou aqui muito antes, na disseminação dos efeitos antecipados dos desastres da economia de especulação. A pobreza de milhões de brasileiros, a má distribuição de renda, a incrível dificuldade para atenuar e superar graves problemas sociais decorrentes da desigualdade, o impacto negativo da política fiscal extorsiva na classe média, são a parte que nos toca nessa economia confinada no defensivo.
Um segundo tema da agenda será, sem dúvida, a definição do contexto das eleições de 2010, em particular a eleição do presidente da República. O PT chegou ao poder largamente beneficiado pelo descompasso entre o político e o econômico, crônica característica da sociedade brasileira. Luiz Inácio se elegeu quando ainda era apenas o início da conjuntura do esvaziamento das possibilidades de reivindicação salarial e de direitos sociais, que marcaram a sua irresistível ascensão, a do PT e a das centrais sindicais, que no devido tempo tiveram grande poder de pressão e sensibilização. Aquele momento singular, remanescente do chamado “milagre brasileiro” da ditadura, gerara novas lideranças, criara as condições de surgimento de um novo sindicalismo e produzira a figura carismática de Lula. Depois disso, as greves já não produziram os resultados de antes, o temor ao desemprego ocupou nas emoções dos trabalhadores a euforia de um sentimento de poder. Mas Lula e o PT já estavam no poder. Ter emprego passou a ser mais importante do que exigir e reivindicar. O eixo dos valores de referência da cultura operária mudou para um centro conservador e prudente.
A perda dessa referência cultural se manifesta na larga proporção de apoio a Luiz Inácio e seu governo nas pesquisas de opinião das últimas semanas. Essa apreciação favorável, que no Nordeste pode ultrapassar 90% das opiniões, não é propriamente opção eleitoral e política. É antes opinião do cidadão desalentado, que teme a mudança que desejara. Isso aconteceu também no pior e mais repressivo momento da ditadura militar, 70% da população satisfeitos com o regime num conformismo suspeito que acabaria explodindo no crescimento eleitoral do então partido de oposição, o MDB.
A incerteza política em relação aos próximos dois anos tem muito a ver com o fato de que o cenário e a cultura que engendraram Lula e o PT já não existem. Ao mesmo tempo, não está claro ainda qual o cenário novo que emerge da circunstância do desgaste desse cenário histórico. Desgaste agravado pelo amplo recuo do PT e de Lula em relação ao seu ideário de origem, pela pobreza das reformas anunciadas, os filhos do misticismo social dos anos 70 e 80 aparentemente conformados com o esvaziamento e a anulação de suas bandeiras. Um novo cenário político está nascendo e não é um cenário de confrontos e radicalizações. É um cenário brando que chamará ao mandato quem tiver clareza quanto à carência de reforma nas reformas pós-ditatoriais.
Nesse novo cenário, os para Lula decisivos movimentos sociais chegam esvaziados, convertidos em instituições subsidiárias do poder e do Estado, agentes de um novo peleguismo na mediação entre as demandas sociais e o governo e na teatral oposição à política social do governo. Se a luta pela terra teve uma função decisiva na criação de uma emoção política culpada na classe média e nas elites, tudo parece indicar que no novo cenário a questão urbana, a urbanização patológica, o desemprego e o subemprego e a qualidade de vida serão os fatores do desenho do novo cenário político em que se moverão partidos e candidatos.
No entanto, nossa concepção do tempo social e histórico tende a ser diversa da que preside a reação das sociedades prósperas às adversidades econômicas e às questões sociais. Lá, o tempo das decisões políticas está muito colado no cotidiano e seu ritmo peculiar. Aqui, o tempo histórico que preside nossas decisões individuais e coletivas ainda é predominantemente o tempo do nosso milenarismo. Nele, o futuro é concebido na perspectiva de um passado mítico, que torna as nossas mais renovadoras esperanças meras revisões nostálgicas e conservadoras do presente. Por isso, nossa esperança é uma espera. Suportamos as adversidades protelando a mudança e a decisão de mudar. Porque é o que está lá atrás que nos move e não o possível do atual aberto para o futuro.
*José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
A sociedade se afunda em prognósticos otimistas para agüentar os altos e baixos da história
Entre o Natal e o ano-novo, abre-se entre nós um tempo intermediário e ritual, que é o tempo do esquecimento. Isso é próprio da sociedade brasileira e de sua cultura popular. De repente, o pessimismo cotidiano é colocado entre parênteses. Momentaneamente esquecidos, afundamos em otimistas prognósticos sempre que um novo ano se aproxima. Esquecemos que 2008 teve pouco a ver com o feliz 2008 vislumbrado na última semana de 2007. Nosso conformismo ritual nos faz agüentar os altos e baixos da história, o doloroso percurso de uma sociedade construída em cima dos alicerces da escravidão, da injustiça e da vítima, da desigualdade profunda, da miséria e até da fome, recompensados ilusoriamente com o espetáculo da prosperidade de proporcionalmente poucos como se fosse ela a promessa de superação da pobreza de muitos.
Nossa concepção de esperança é a da espera, o que faz com que o ano-novo não tenha, para nós, propriamente a mera duração dos 365 dias. Quando nos perguntam como vemos o novo ano, nosso ano de referência é o do longínquo e milenário fim dos tempos, do paciente adiamento da justiça, da alegria e da fartura.
É nesse horizonte da distância temporal que se pode compreender os problemas do que se propõe no calendário do ano que começa. Alguns temas já se desenham na agenda do próximo ano. A crise econômica, em primeiro lugar. Crise que não se reflete na nossa economia com as mesmas características que tem nos centros dominantes da economia global. Estamos no pólo invertido do sistema econômico e não nos seus centros de decisão e manobras. Nossa economia faz parte do elenco das economias defensivas. Não somos nesse sistema uma economia de decisão. Além do que a crise chegou aqui muito antes, na disseminação dos efeitos antecipados dos desastres da economia de especulação. A pobreza de milhões de brasileiros, a má distribuição de renda, a incrível dificuldade para atenuar e superar graves problemas sociais decorrentes da desigualdade, o impacto negativo da política fiscal extorsiva na classe média, são a parte que nos toca nessa economia confinada no defensivo.
Um segundo tema da agenda será, sem dúvida, a definição do contexto das eleições de 2010, em particular a eleição do presidente da República. O PT chegou ao poder largamente beneficiado pelo descompasso entre o político e o econômico, crônica característica da sociedade brasileira. Luiz Inácio se elegeu quando ainda era apenas o início da conjuntura do esvaziamento das possibilidades de reivindicação salarial e de direitos sociais, que marcaram a sua irresistível ascensão, a do PT e a das centrais sindicais, que no devido tempo tiveram grande poder de pressão e sensibilização. Aquele momento singular, remanescente do chamado “milagre brasileiro” da ditadura, gerara novas lideranças, criara as condições de surgimento de um novo sindicalismo e produzira a figura carismática de Lula. Depois disso, as greves já não produziram os resultados de antes, o temor ao desemprego ocupou nas emoções dos trabalhadores a euforia de um sentimento de poder. Mas Lula e o PT já estavam no poder. Ter emprego passou a ser mais importante do que exigir e reivindicar. O eixo dos valores de referência da cultura operária mudou para um centro conservador e prudente.
A perda dessa referência cultural se manifesta na larga proporção de apoio a Luiz Inácio e seu governo nas pesquisas de opinião das últimas semanas. Essa apreciação favorável, que no Nordeste pode ultrapassar 90% das opiniões, não é propriamente opção eleitoral e política. É antes opinião do cidadão desalentado, que teme a mudança que desejara. Isso aconteceu também no pior e mais repressivo momento da ditadura militar, 70% da população satisfeitos com o regime num conformismo suspeito que acabaria explodindo no crescimento eleitoral do então partido de oposição, o MDB.
A incerteza política em relação aos próximos dois anos tem muito a ver com o fato de que o cenário e a cultura que engendraram Lula e o PT já não existem. Ao mesmo tempo, não está claro ainda qual o cenário novo que emerge da circunstância do desgaste desse cenário histórico. Desgaste agravado pelo amplo recuo do PT e de Lula em relação ao seu ideário de origem, pela pobreza das reformas anunciadas, os filhos do misticismo social dos anos 70 e 80 aparentemente conformados com o esvaziamento e a anulação de suas bandeiras. Um novo cenário político está nascendo e não é um cenário de confrontos e radicalizações. É um cenário brando que chamará ao mandato quem tiver clareza quanto à carência de reforma nas reformas pós-ditatoriais.
Nesse novo cenário, os para Lula decisivos movimentos sociais chegam esvaziados, convertidos em instituições subsidiárias do poder e do Estado, agentes de um novo peleguismo na mediação entre as demandas sociais e o governo e na teatral oposição à política social do governo. Se a luta pela terra teve uma função decisiva na criação de uma emoção política culpada na classe média e nas elites, tudo parece indicar que no novo cenário a questão urbana, a urbanização patológica, o desemprego e o subemprego e a qualidade de vida serão os fatores do desenho do novo cenário político em que se moverão partidos e candidatos.
No entanto, nossa concepção do tempo social e histórico tende a ser diversa da que preside a reação das sociedades prósperas às adversidades econômicas e às questões sociais. Lá, o tempo das decisões políticas está muito colado no cotidiano e seu ritmo peculiar. Aqui, o tempo histórico que preside nossas decisões individuais e coletivas ainda é predominantemente o tempo do nosso milenarismo. Nele, o futuro é concebido na perspectiva de um passado mítico, que torna as nossas mais renovadoras esperanças meras revisões nostálgicas e conservadoras do presente. Por isso, nossa esperança é uma espera. Suportamos as adversidades protelando a mudança e a decisão de mudar. Porque é o que está lá atrás que nos move e não o possível do atual aberto para o futuro.
*José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)
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