quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Oba, agora sou meu patrão! Afinal, quem precisa de direitos? - Cláudio Carraly*

Uma das operações discursivas mais bem-sucedidas das últimas décadas foi a transformação semântica da precarização do trabalho no palatável e amplo termo de "empreendedorismo". O que antes era inequivocamente reconhecido como degradação das condições mínimas de qualidade laboral ganhou uma nova roupagem linguística e um verniz midiático que não apenas mascarou a realidade, mas a tornou desejável aos mais incautos.

O chamado “rebranding” que é o ato de ressignificar a imagem de uma empresa ou produto, ou seja, uma estratégia planejada, cujo objetivo é mudar a percepção do público com relação à marca. No caso da transformação de precarização do trabalho em empreendedorismo foi profundamente exitosa, a instabilidade virou "flexibilidade". A ausência total de direitos trabalhistas se tornou "liberdade". A transferência integral do risco econômico para o trabalhador foi rebatizada como "ser dono do próprio negócio". As jornadas sem limite se transformaram em "mentalidade empreendedora". A falta de proteção social passou a ser "autonomia profissional".

Esta não foi uma mudança acidental de vocabulário, mas uma estratégia deliberada de ressignificação. O discurso empreendedor capturou aspirações legítimas da humanidade, como, autonomia, criatividade, realização pessoal, controle sobre a própria trajetória, e as utilizou para legitimar condições de trabalho que, sob qualquer outro nome, seriam consideradas inaceitáveis e que haviam sido superadas há muito tempo por lutas históricas.

O aspecto mais perverso desta operação é sua dimensão psicológica, ao transformar precarização em empreendedorismo, o sistema transferiu não apenas os riscos econômicos, mas também a responsabilidade moral para o indivíduo. Se você não prospera como "empreendedor", não é porque as condições estruturais são adversas é porque você não teve a "mentalidade certa", não foi suficientemente "resiliente", não se esforçou o bastante. então a culpa é toda sua, e não do sistema, muito menos do verdadeiro dono do negócio que são bilionárias empresas que operam os aplicativos.

Esta narrativa individualiza problemas que são fundamentalmente coletivos e estruturais no capitalismo. Ela impede a formação de consciência de classe ao transformar trabalhadores precarizados em "pequenos empresários" que competem entre si, em vez de se organizarem coletivamente por melhores condições de trabalho exigindo melhorias de quem realmente lucra com o modelo de negócios.

O sucesso desta operação discursiva foi notável, mesmo pessoas com formação crítica, que em outros contextos identificariam facilmente processos de exploração dos trabalhadores, passaram a reproduzir e celebrar a nova linguagem empreendedora. Cursos superiores criaram disciplinas de "empreendedorismo". Políticas públicas adotaram o vocabulário da "economia criativa" e do "microempreendedorismo", todos reproduzindo ativamente o manual de repaginação do trabalho precário e sem garantias. A própria esquerda, muitas vezes, abraçou acriticamente estas narrativas, falando em "empreendedorismo social" ou "economia solidária" sem perceber que, ao fazê-lo, legitimava a lógica primária do que pretendia ou deveria combater.

Logicamente Isso não significa que todo empreendedorismo seja uma farsa ou que não existam casos genuínos de inovação e criação de valor de jornadas pessoais. Há diferenças qualitativas entre o pequeno comerciante que constrói um negócio sólido, o inovador que desenvolve soluções originais, e o trabalhador uberizado que "empreende" para sobreviver sem direitos e apenas com muitos deveres sem nem perceber que os tem em abundancia, mas sem a contrapartida dos direitos.

O problema surge quando o termo "empreendedorismo" é usado indiscriminadamente para descrever situações que são, na essência, trabalho assalariado disfarçado ou a precarização pura e simples. Quando um entregador de aplicativo é chamado de "parceiro empreendedor" enquanto trabalha 12 horas por dia sem férias, 13º salário, licença paternidade ou maternidade, em um regime de escala de trabalho de 7x7, estamos diante de um eufemismo que serve apenas para nublar a mais que hedionda exploração.

Reconhecer e desmontar esta operação discursiva é mais que um exercício acadêmico, é uma urgência política. Palavras não são neutras elas moldam o que vemos, o que aceitamos e até o que ousamos contestar. Quando aceitamos chamar de “empreendedor” quem, na prática, é privado de direitos fundamentais e submetido a jornadas brutais, naturalizamos a desigualdade e colaboramos com sua perpetuação.

A tarefa agora é dupla: devolver às palavras seu sentido real e reconstruir o imaginário coletivo sobre o que é trabalho digno. Isso significa expor, sem eufemismos, cada instância em que a exploração se disfarça de “autonomia”, e recolocar o debate sobre direitos trabalhistas no centro da agenda pública. Esse debate vem sendo perdido a quase uma década, a reforma trabalhista aprovada em 2016 que foi vendida como a panaceia que resolveria todas questões fundamentais do desemprego, apenas desobrigou os patrões e não criou nenhuma onda de empregabilidade, pelo contrário, desempregou milhares e alguns que viriam a ser recontratados voltaram sob as novas condições impostas pela reforma que esmagou seus direitos.

Não basta indignar-se em privado é preciso disputar o vocabulário, os símbolos e as narrativas, seja nas ruas, nas redes, nas escolas, nas mesas de negociação, igrejas. Somente assim a promessa de liberdade e autonomia deixará de ser retórica vazia e poderá se tornar conquista concreta, o contrário disso é aceitar viver num país onde “empreender” virou sinônimo de sobreviver sozinho, carregando nas costas o peso de um sistema perverso que só muda para nadar mudar.

*Cláudio Carraly, advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

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