Tradução: Alberto Aggio
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL
Pensei em reunir neste livro os escritos e as intervenções mais significativas dos últimos três anos [1]. Um período crucial na vida do nosso país: da vitória eleitoral da centro-esquerda em 2006, passando pela experiência de governo até a derrota do Partido Democrático (PD) e a afirmação do poder de Silvio Berlusconi. Todavia, a crônica da política italiana não é o centro da atenção e do esforço de reflexão dos escritos que se encontram nesse volume. O livro oferece, antes, indicações para uma avaliação em curso da extraordinária mudança do cenário internacional assinalado pela grande crise financeira e, portanto, econômica e social do mundo global, desde o declínio da era neoconservadora até o advento de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos da América.
A minha convicção é que se deve partir também deste ponto para definir o horizonte estratégico, os valores constitutivos e as razões do novo partido que fundamos. Esta é a condição para oxigenar o nosso projeto, para falar às novas gerações e construir verdadeiramente um grande partido que vá além das razões contingentes do embate com Berlusconi. E é também a condição para vencer este embate.
Está nascendo um mundo novo. Acabou, num despertar brusco, aquele que foi definido como “o sonho dogmático da perfeição do mercado”. A crise do selvagem capitalismo global ou, como outros preferem chamar, do “mercadismo”, é uma crise política e cultural antes de ser econômica, da qual, estou convencido, emergirá um mundo completamente mudado. Qual será o lugar da Europa e da Itália no novo mundo? Parece que estamos diante de um paradoxo: há uma necessidade forte de política depois de anos nos quais o domínio da economia foi acompanhado pela antipolítica, pelo desprezo em relação às instituições internacionais, consideradas um inútil apêndice burocrático, e pela doutrina do declínio dos Estados nacionais. Volta hoje à cena a ideia kantiana de uma ordem jurídica internacional: uma grande ideia “europeia” que se encontra na base da própria construção da unidade da Europa. Mas a Europa parece titubear diante desse desafio, ao passo que o impulso para a inovação vem do país que foi o promotor do domínio neoliberal e é o epicentro da crise: os Estados Unidos da América. Voltando a pensar nisso hoje, ocorre-nos que já nos anos trinta do século passado, diante da grande crise, a América soube reagir com o New Deal, enquanto na Europa prevaleceram o nacionalismo, os regimes autoritários e a inclinação para a guerra. Hoje os cenários não são assim tão dramáticos, mas os riscos do populismo e de um entrincheiramento conservador em torno dos Estados nacionais estão bem presentes, num cenário europeu dominado mais pelo egoísmo e pelo medo do que pela esperança e pela coragem. Abre-se um grande desafio, decisivo para os democratas e para os reformistas. Qual deve ser a nossa resposta à crise? Como impulsionar um novo projeto? A minha convicção é que uma grande perspectiva de mudança se deva mover em torno de três ideias-força fundamentais: a democracia, a igualdade, a inovação.
Democracia, porque a ausência de regras, de controles, de transparência e de legalidade, que a tempestade financeira colocou em dramática evidência, nasce sobretudo da assimetria entre o crescimento de um capitalismo global e a ausência de instituições com capacidade de regular seu desenvolvimento e de equilibrar seu peso e seu poder. Este papel foi assumido no século passado pelos Estados nacionais, que — como escreveu Ralf Dahrendorf — souberam fazer a quadratura do círculo, estabelecendo a compatibilidade entre desenvolvimento capitalista, democracia política e coesão social. Hoje nos encontramos diante de um vazio de democracia. Não será o retorno aos Estados nacionais que irá preencher esse vazio de democracia. Os Estados não exauriram sua função; continuam a ser nós essenciais das redes institucionais. Mas o verdadeiro desafio é o da construção de uma dimensão democrática supranacional. No fundo, esse tem sido o caminho da Europa, mesmo que hoje a Europa pareça frágil diante da crise, prisioneira de lideranças míopes e conservadoras, estando entregue substancialmente às escolhas de cada país e renunciando a fazer da crise uma ocasião para dar um salto de qualidade no terreno das políticas comuns de desenvolvimento, finanças e coesão social.
O segundo tema central é o da igualdade. Igualdade de oportunidades, por certo. Mas também uma necessária ação pública para reequilibrar a distribuição da riqueza. O crescimento selvagem dos últimos anos gerou crescente desigualdade não só entre países ricos e países pobres; não só entre continentes vencedores — como a Ásia — e continentes marginalizados pela globalização econômica — como a África —, mas também dentro dos próprios países mais ricos. Estados Unidos e Itália estão entre os países nos quais o crescimento da desigualdade social foi maior nos últimos quinze anos. A excessiva desigualdade não é somente injusta; ela se torna também um impedimento ao crescimento econômico: concentrando a riqueza em poucas mãos, paralisa-se o crescimento do consumo e mina-se a coesão social. Frequentemente, como no caso da Itália, o crescimento da desigualdade é acompanhado de uma queda na produtividade do trabalho e da competitividade da economia. Mesmo porque, numa sociedade na qual existem pouquíssimas oportunidades de ascensão social e o trabalho não vem sendo valorizado e retribuído de modo adequado, desaparecem os estímulos à concorrência e à promoção dos talentos e da qualidade de cada qual. Em torno de novas políticas de welfare, de novas estratégias de luta contra a pobreza e a exclusão, que sejam capazes de se inspirar igualmente em valores de justiça social e de promoção da qualidade individual, se travará um importante embate para a cultura política de uma renovada força reformista.
Por fim, a terceira condição para abrir uma nova fase é a que diz respeito à inovação. Nesses anos, o crescimento foi sustentado pela disponibilidade de uma massa enorme de trabalhadores com baixos salários nas economias emergentes. Nos países ricos, o mundo financeiro gerou o enriquecimento dos grupos dominantes independentemente da capacidade competitiva da economia. Hoje, o desafio decisivo volta a ser o terreno da competitividade e da inovação. Em particular, buscando — como fez Barack Obama nos Estados Unidos — a tecnologia ambiental, as fontes alternativas de energia, reduzindo a dependência do petróleo, a pesquisa biomédica voltada para o combate às doenças e a melhora da vida das pessoas. Em suma, o desenvolvimento se orienta para objetivos de qualidade, com a perspectiva de proteger o ambiente natural devastado pelo crescimento selvagem dos últimos anos e de melhorar a vida das pessoas, combatendo a fome e as doenças. Para fazer isso, é necessário dedicar grandes recursos para a inovação, a formação e a cultura.
A crise pode e deve ser, portanto, uma ocasião para uma grande mudança. Uma ocasião para reformas corajosas ainda mais necessárias num país como o nosso, há muitos anos bloqueado, incapaz de crescer no nível dos outros países europeus, de se expressar plenamente e de liberar suas potencialidades e suas energias.
Ao contrário, para a direita italiana e para Berlusconi, a crise é substancialmente uma ocasião para consolidar o poder. A Itália é, entre as nações mais desenvolvidas, a que menos recursos emprega para responder à situação de emergência econômica e abrir uma nova fase de crescimento, contando com a possibilidade de que a retomada mundial nos leve a reboque. É o país que nada faz para reequilibrar a iníqua distribuição de riqueza entre os diversos estratos sociais. É o país que menos inova e, inclusive, reduz os recursos para a formação e a pesquisa, e no qual, não por acaso, mais acentuadamente se apresentam a queda da economia, o agravamento estrutural das contas públicas, o crescimento do mal-estar social e da pobreza. Ao contrário, reforça-se o poder político. Uma economia enfraquecida reduz a autonomia dos grupos financeiros e industriais, que passam a se apoiar nos poderes públicos. Reforçam-se, em consequência, a influência sobre a sociedade e o controle da informação, tornando assim mais aguda a concentração anômala de poder que caracteriza o caso italiano no quadro das democracias modernas.
Assim, enquanto crescem a insegurança, os sentimentos de medo e de fechamento, as tendências contra os imigrantes ou as veleidades protecionistas, uma parte grande dos italianos parece cerrar fileiras em torno a uma liderança protetora. Mesmo que se trate mais de um símbolo de decadência da Itália do que de uma esperança de renascimento.
Mas seria um erro considerar a Itália um país “berlusconizado”. A sociedade o é muito menos do que os jornais e os telejornais. E não só porque no auge da sua glorificação a centro-direita italiana alcança talvez quase a metade dos votos válidos, enquanto a outra metade do país fica desconfiada e hostil. Mas também porque a Itália não se resume à quotidiana fiction do chefe de governo ou às tenebrosas ou desastradas “rondas” contra os imigrantes. Há uma vitalidade de parte do mundo da pesquisa, da cultura, do trabalho e da empresa que enfrenta, sem temor e com sucesso, os desafios da globalização. Existe uma sociedade que, em parte, infelizmente, vê a política com desconfiança, distanciamento e intolerância, e não se sente mais representada. Uma Itália que não se reconhece na direção política atual, mas não vê em campo uma alternativa forte e confiável para governar o país. Aqui certamente pesam os erros da centro-esquerda, mas também a obra irresponsável de autodemolição, a expectativa de improváveis milagres geracionais, a espera messiânica dos novos “jovens” providenciais. Ao contrário, é preciso, de forma mais simples e com mais humildade, mas com orgulho da nossa história, partir mais uma vez das forças que estão em campo. Uma nova classe dirigente também não nascerá sem um partido operativo e com raízes na sociedade, capaz de selecioná-la, formá-la e de colocá-la à prova.
A partir desta consciência, deve-se mover o Partido Democrático no seu nada fácil caminho.
De resto, não tem sido cômodo o início de uma experiência marcada pela derrota eleitoral e pela penosa busca de um caminho na estreita faixa entre o preponderante populismo berlusconiano e o minoritarismo justicialista a la Antonio Di Pietro e seu partido pessoal [Itália dos Valores]. O que se apresenta incerto neste primeiro ano de vida é o fundamento do novo partido: o conjunto de valores e princípios que o constituem numa identidade compartilhada. E é precisamente essa incerteza que tornou mais difícil a convivência das diferentes almas dentro do PD, o que, por temor de abusos, levou cada qual antes a cristalizar a própria identidade do que a buscar uma síntese capaz de voltar-se para o futuro.
Mas o projeto do PD permanece essencial para abrir uma perspectiva nova para a Itália.
Este livro quer ser também uma contribuição ao Partido Democrático. Uma contribuição em termos de cultura política, em particular no que se refere à visão do papel da Europa e da Itália no mundo, mas também um convite para uma reflexão mais profunda sobre as características e os limites do bipolarismo italiano; sobre a necessidade de uma visão da evolução democrática do país que seja efetivamente alternativa ao plebiscitarismo e à simplificação personalista do embate político. Uma nova centro-esquerda deve deixar para trás a precariedade e a confusão da União [coalizão de centro-esquerda, reunindo não só a Oliveira como partidos da esquerda radical, nas eleições de 2006], assim como toda pretensão de autossuficiência do Partido Democrático. Uma nova centro-esquerda deve ser capaz de unir progressistas e moderados (como foi escrito), porque a sociedade italiana é mais complexa e as linhas de disputa são mais articuladas e não se reduzem à fratura direita-esquerda. Mas isso não significa que os partidos devam ser a nomenclatura das diversas inclinações existentes na sociedade ou dos interesses fragmentados de uma sociedade tão complexa. Certamente, é possível existir um grande partido como o PD que tenha a ambição de unir no seu seio — sem nenhuma pretensão de exclusividade — progressistas e moderados em torno de um corajoso projeto de reforma para a Itália.
Deste projeto é parte integrante aquela ideia de uma Itália empenhada na defesa dos direitos humanos nos Bálcãs, mesmo com o ônus das escolhas difíceis; uma Itália comprometida com a ONU na afirmação e proteção da paz entre Israel e Líbano e na proposição de novas esperanças para o Oriente Médio; uma Itália protagonista na batalha de civilização contra a pena de morte, na Assembleia das Nações Unidas. Esta foi e é a Itália da Oliveira [a coalizão Ulivo, da qual surge o PD] e da centro-esquerda, cujos resultados e cujo papel devemos reivindicar talvez com maior consciência. É a Itália que, não só no passado longínquo, mas também nestes anos com Romano Prodi, Carlo Ciampi e Giorgio Napolitano tem sido a portadora da visão ambiciosa de uma Europa unida, federal e democrática, que não se reduza à busca de um equilíbrio e de uma mediação entre os governos. A Europa de que necessitamos hoje, mais do que nunca, diante das agitações políticas e econômicas do mundo global.
Espero que destas reflexões nasça um impulso no sentido de que a centro-esquerda retome consciência das suas razões e volte a exercitar plenamente a sua função para o futuro da Itália.
Massimo D’Alema é presidente da Fondazione Italianieuropei. Entre 1998 e 2000, foi presidente do Conselho de Ministros; entre 2006 e 2008, foi ministro do Exterior dos governos da coalizão Oliveira.
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL
Pensei em reunir neste livro os escritos e as intervenções mais significativas dos últimos três anos [1]. Um período crucial na vida do nosso país: da vitória eleitoral da centro-esquerda em 2006, passando pela experiência de governo até a derrota do Partido Democrático (PD) e a afirmação do poder de Silvio Berlusconi. Todavia, a crônica da política italiana não é o centro da atenção e do esforço de reflexão dos escritos que se encontram nesse volume. O livro oferece, antes, indicações para uma avaliação em curso da extraordinária mudança do cenário internacional assinalado pela grande crise financeira e, portanto, econômica e social do mundo global, desde o declínio da era neoconservadora até o advento de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos da América.
A minha convicção é que se deve partir também deste ponto para definir o horizonte estratégico, os valores constitutivos e as razões do novo partido que fundamos. Esta é a condição para oxigenar o nosso projeto, para falar às novas gerações e construir verdadeiramente um grande partido que vá além das razões contingentes do embate com Berlusconi. E é também a condição para vencer este embate.
Está nascendo um mundo novo. Acabou, num despertar brusco, aquele que foi definido como “o sonho dogmático da perfeição do mercado”. A crise do selvagem capitalismo global ou, como outros preferem chamar, do “mercadismo”, é uma crise política e cultural antes de ser econômica, da qual, estou convencido, emergirá um mundo completamente mudado. Qual será o lugar da Europa e da Itália no novo mundo? Parece que estamos diante de um paradoxo: há uma necessidade forte de política depois de anos nos quais o domínio da economia foi acompanhado pela antipolítica, pelo desprezo em relação às instituições internacionais, consideradas um inútil apêndice burocrático, e pela doutrina do declínio dos Estados nacionais. Volta hoje à cena a ideia kantiana de uma ordem jurídica internacional: uma grande ideia “europeia” que se encontra na base da própria construção da unidade da Europa. Mas a Europa parece titubear diante desse desafio, ao passo que o impulso para a inovação vem do país que foi o promotor do domínio neoliberal e é o epicentro da crise: os Estados Unidos da América. Voltando a pensar nisso hoje, ocorre-nos que já nos anos trinta do século passado, diante da grande crise, a América soube reagir com o New Deal, enquanto na Europa prevaleceram o nacionalismo, os regimes autoritários e a inclinação para a guerra. Hoje os cenários não são assim tão dramáticos, mas os riscos do populismo e de um entrincheiramento conservador em torno dos Estados nacionais estão bem presentes, num cenário europeu dominado mais pelo egoísmo e pelo medo do que pela esperança e pela coragem. Abre-se um grande desafio, decisivo para os democratas e para os reformistas. Qual deve ser a nossa resposta à crise? Como impulsionar um novo projeto? A minha convicção é que uma grande perspectiva de mudança se deva mover em torno de três ideias-força fundamentais: a democracia, a igualdade, a inovação.
Democracia, porque a ausência de regras, de controles, de transparência e de legalidade, que a tempestade financeira colocou em dramática evidência, nasce sobretudo da assimetria entre o crescimento de um capitalismo global e a ausência de instituições com capacidade de regular seu desenvolvimento e de equilibrar seu peso e seu poder. Este papel foi assumido no século passado pelos Estados nacionais, que — como escreveu Ralf Dahrendorf — souberam fazer a quadratura do círculo, estabelecendo a compatibilidade entre desenvolvimento capitalista, democracia política e coesão social. Hoje nos encontramos diante de um vazio de democracia. Não será o retorno aos Estados nacionais que irá preencher esse vazio de democracia. Os Estados não exauriram sua função; continuam a ser nós essenciais das redes institucionais. Mas o verdadeiro desafio é o da construção de uma dimensão democrática supranacional. No fundo, esse tem sido o caminho da Europa, mesmo que hoje a Europa pareça frágil diante da crise, prisioneira de lideranças míopes e conservadoras, estando entregue substancialmente às escolhas de cada país e renunciando a fazer da crise uma ocasião para dar um salto de qualidade no terreno das políticas comuns de desenvolvimento, finanças e coesão social.
O segundo tema central é o da igualdade. Igualdade de oportunidades, por certo. Mas também uma necessária ação pública para reequilibrar a distribuição da riqueza. O crescimento selvagem dos últimos anos gerou crescente desigualdade não só entre países ricos e países pobres; não só entre continentes vencedores — como a Ásia — e continentes marginalizados pela globalização econômica — como a África —, mas também dentro dos próprios países mais ricos. Estados Unidos e Itália estão entre os países nos quais o crescimento da desigualdade social foi maior nos últimos quinze anos. A excessiva desigualdade não é somente injusta; ela se torna também um impedimento ao crescimento econômico: concentrando a riqueza em poucas mãos, paralisa-se o crescimento do consumo e mina-se a coesão social. Frequentemente, como no caso da Itália, o crescimento da desigualdade é acompanhado de uma queda na produtividade do trabalho e da competitividade da economia. Mesmo porque, numa sociedade na qual existem pouquíssimas oportunidades de ascensão social e o trabalho não vem sendo valorizado e retribuído de modo adequado, desaparecem os estímulos à concorrência e à promoção dos talentos e da qualidade de cada qual. Em torno de novas políticas de welfare, de novas estratégias de luta contra a pobreza e a exclusão, que sejam capazes de se inspirar igualmente em valores de justiça social e de promoção da qualidade individual, se travará um importante embate para a cultura política de uma renovada força reformista.
Por fim, a terceira condição para abrir uma nova fase é a que diz respeito à inovação. Nesses anos, o crescimento foi sustentado pela disponibilidade de uma massa enorme de trabalhadores com baixos salários nas economias emergentes. Nos países ricos, o mundo financeiro gerou o enriquecimento dos grupos dominantes independentemente da capacidade competitiva da economia. Hoje, o desafio decisivo volta a ser o terreno da competitividade e da inovação. Em particular, buscando — como fez Barack Obama nos Estados Unidos — a tecnologia ambiental, as fontes alternativas de energia, reduzindo a dependência do petróleo, a pesquisa biomédica voltada para o combate às doenças e a melhora da vida das pessoas. Em suma, o desenvolvimento se orienta para objetivos de qualidade, com a perspectiva de proteger o ambiente natural devastado pelo crescimento selvagem dos últimos anos e de melhorar a vida das pessoas, combatendo a fome e as doenças. Para fazer isso, é necessário dedicar grandes recursos para a inovação, a formação e a cultura.
A crise pode e deve ser, portanto, uma ocasião para uma grande mudança. Uma ocasião para reformas corajosas ainda mais necessárias num país como o nosso, há muitos anos bloqueado, incapaz de crescer no nível dos outros países europeus, de se expressar plenamente e de liberar suas potencialidades e suas energias.
Ao contrário, para a direita italiana e para Berlusconi, a crise é substancialmente uma ocasião para consolidar o poder. A Itália é, entre as nações mais desenvolvidas, a que menos recursos emprega para responder à situação de emergência econômica e abrir uma nova fase de crescimento, contando com a possibilidade de que a retomada mundial nos leve a reboque. É o país que nada faz para reequilibrar a iníqua distribuição de riqueza entre os diversos estratos sociais. É o país que menos inova e, inclusive, reduz os recursos para a formação e a pesquisa, e no qual, não por acaso, mais acentuadamente se apresentam a queda da economia, o agravamento estrutural das contas públicas, o crescimento do mal-estar social e da pobreza. Ao contrário, reforça-se o poder político. Uma economia enfraquecida reduz a autonomia dos grupos financeiros e industriais, que passam a se apoiar nos poderes públicos. Reforçam-se, em consequência, a influência sobre a sociedade e o controle da informação, tornando assim mais aguda a concentração anômala de poder que caracteriza o caso italiano no quadro das democracias modernas.
Assim, enquanto crescem a insegurança, os sentimentos de medo e de fechamento, as tendências contra os imigrantes ou as veleidades protecionistas, uma parte grande dos italianos parece cerrar fileiras em torno a uma liderança protetora. Mesmo que se trate mais de um símbolo de decadência da Itália do que de uma esperança de renascimento.
Mas seria um erro considerar a Itália um país “berlusconizado”. A sociedade o é muito menos do que os jornais e os telejornais. E não só porque no auge da sua glorificação a centro-direita italiana alcança talvez quase a metade dos votos válidos, enquanto a outra metade do país fica desconfiada e hostil. Mas também porque a Itália não se resume à quotidiana fiction do chefe de governo ou às tenebrosas ou desastradas “rondas” contra os imigrantes. Há uma vitalidade de parte do mundo da pesquisa, da cultura, do trabalho e da empresa que enfrenta, sem temor e com sucesso, os desafios da globalização. Existe uma sociedade que, em parte, infelizmente, vê a política com desconfiança, distanciamento e intolerância, e não se sente mais representada. Uma Itália que não se reconhece na direção política atual, mas não vê em campo uma alternativa forte e confiável para governar o país. Aqui certamente pesam os erros da centro-esquerda, mas também a obra irresponsável de autodemolição, a expectativa de improváveis milagres geracionais, a espera messiânica dos novos “jovens” providenciais. Ao contrário, é preciso, de forma mais simples e com mais humildade, mas com orgulho da nossa história, partir mais uma vez das forças que estão em campo. Uma nova classe dirigente também não nascerá sem um partido operativo e com raízes na sociedade, capaz de selecioná-la, formá-la e de colocá-la à prova.
A partir desta consciência, deve-se mover o Partido Democrático no seu nada fácil caminho.
De resto, não tem sido cômodo o início de uma experiência marcada pela derrota eleitoral e pela penosa busca de um caminho na estreita faixa entre o preponderante populismo berlusconiano e o minoritarismo justicialista a la Antonio Di Pietro e seu partido pessoal [Itália dos Valores]. O que se apresenta incerto neste primeiro ano de vida é o fundamento do novo partido: o conjunto de valores e princípios que o constituem numa identidade compartilhada. E é precisamente essa incerteza que tornou mais difícil a convivência das diferentes almas dentro do PD, o que, por temor de abusos, levou cada qual antes a cristalizar a própria identidade do que a buscar uma síntese capaz de voltar-se para o futuro.
Mas o projeto do PD permanece essencial para abrir uma perspectiva nova para a Itália.
Este livro quer ser também uma contribuição ao Partido Democrático. Uma contribuição em termos de cultura política, em particular no que se refere à visão do papel da Europa e da Itália no mundo, mas também um convite para uma reflexão mais profunda sobre as características e os limites do bipolarismo italiano; sobre a necessidade de uma visão da evolução democrática do país que seja efetivamente alternativa ao plebiscitarismo e à simplificação personalista do embate político. Uma nova centro-esquerda deve deixar para trás a precariedade e a confusão da União [coalizão de centro-esquerda, reunindo não só a Oliveira como partidos da esquerda radical, nas eleições de 2006], assim como toda pretensão de autossuficiência do Partido Democrático. Uma nova centro-esquerda deve ser capaz de unir progressistas e moderados (como foi escrito), porque a sociedade italiana é mais complexa e as linhas de disputa são mais articuladas e não se reduzem à fratura direita-esquerda. Mas isso não significa que os partidos devam ser a nomenclatura das diversas inclinações existentes na sociedade ou dos interesses fragmentados de uma sociedade tão complexa. Certamente, é possível existir um grande partido como o PD que tenha a ambição de unir no seu seio — sem nenhuma pretensão de exclusividade — progressistas e moderados em torno de um corajoso projeto de reforma para a Itália.
Deste projeto é parte integrante aquela ideia de uma Itália empenhada na defesa dos direitos humanos nos Bálcãs, mesmo com o ônus das escolhas difíceis; uma Itália comprometida com a ONU na afirmação e proteção da paz entre Israel e Líbano e na proposição de novas esperanças para o Oriente Médio; uma Itália protagonista na batalha de civilização contra a pena de morte, na Assembleia das Nações Unidas. Esta foi e é a Itália da Oliveira [a coalizão Ulivo, da qual surge o PD] e da centro-esquerda, cujos resultados e cujo papel devemos reivindicar talvez com maior consciência. É a Itália que, não só no passado longínquo, mas também nestes anos com Romano Prodi, Carlo Ciampi e Giorgio Napolitano tem sido a portadora da visão ambiciosa de uma Europa unida, federal e democrática, que não se reduza à busca de um equilíbrio e de uma mediação entre os governos. A Europa de que necessitamos hoje, mais do que nunca, diante das agitações políticas e econômicas do mundo global.
Espero que destas reflexões nasça um impulso no sentido de que a centro-esquerda retome consciência das suas razões e volte a exercitar plenamente a sua função para o futuro da Itália.
Massimo D’Alema é presidente da Fondazione Italianieuropei. Entre 1998 e 2000, foi presidente do Conselho de Ministros; entre 2006 e 2008, foi ministro do Exterior dos governos da coalizão Oliveira.
[1] Trata-se do livro Il mondo nuovo – riflessioni per Il Partito Democratico, de Massimo D’Alema (Roma: Fondazione Italianieuropei, 2009). Esse texto é o prefácio do livro.
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