DEU NO VALOR ECONÔMICO
A ideia de uma democracia "deliberativa" tem sido contraposta (por Diana Mutz, por exemplo, no volume "Hearing the Other Side", de 2006) à da democracia "participativa" pela qual mais comumente se anseia. As duas envolvem exigências e supostos contrastantes. A primeira, centrada no debate autêntico como mecanismo de decisão, supõe justamente que se "ouça o outro lado" e seus argumentos e, portanto, a imersão em ambientes sociais heterogêneos quanto a perspectivas e opiniões. Já a segunda, ao estimular o envolvimento e a participação dos cidadãos nos assuntos públicos, acaba às voltas com os condicionamentos e correlatos sociopsicológicos desse desiderato.
Ponhamos de lado o que há de problemático na concepção de uma sociedade cujos cidadãos devam estar, "republicanamente", em mobilização permanente ou "nas ruas" (ou de uma universidade em que a legitimidade de decisões importantes se veja deslocada para os corredores e pátios, para mencionar um tipo específico de organização sujeito a problemas análogos entre nós): tal mobilização será no máximo um ponto talvez necessário de passagem rumo à sociedade cuja aparelhagem institucional democraticamente construída permita aos cidadãos ir para casa em paz, como tenho dito às vezes, na certeza de que seus interesses ou valores maiores estão assegurados. À parte isso, como Alessandro Pizzorno destaca há muito tempo, a participação política tende a dar-se "entre iguais" - e a favorecer condições em que a fusão e a efusão psicológicas entre os integrantes de grupos homogêneos e antagônicos tendem a substituir-se à tolerância e mesmo à racionalidade.
Com seus pressupostos implícitos de unanimidade e as pressões contrárias à divergência que daí resultam, a santificação frequente da "opinião pública" vai na mesma direção, não obstante o caráter fluido e fragmentário que os fenômenos assim rotulados na verdade apresentam.
Uma indagação de interesse é a de como tais questões se relacionam com a ideia de "sociedade civil", retomada e idealizada contra o Estado em meios de esquerda, desde há algum tempo, em nome de um "aprofundamento" da democracia. No Brasil, temos visto, por exemplo, o governo Lula avaliado em termos que destacam, com ânimo negativo, a continuidade de um Estado ativo e ambicioso, diante do qual a sociedade civil nunca poderia afirmar-se com autonomia.
É claro, por um lado, o que, não obstante os riscos indicados, os estímulos à participação dos "iguais", e a sociedade civil como arena disso, têm de positivo para a dinâmica democrática - e os partidos políticos, que os adeptos mais fervorosos da sociedade civil tendem a ver com reservas, são há tempos descritos como cumprindo a função de "vocalização" (junto ao Estado...) dos interesses correspondentes a "bases sociais" dadas, distinguidas justamente pelo compartilhamento de determinadas condições e perspectivas ou opiniões. Por outro lado, o papel das entidades que compõem a sociedade civil (incluindo ONGs e associações diversas, que agora felizmente vão além, entre nós, das indefectíveis OAB, ABI e CNBB dos tempos da ditadura) pode ser apreciado de um ângulo inequivocamente positivo se consideramos a "esfera pública", com ênfase no potencial libertário do fluxo de comunicação entre os cidadãos quando protegido tanto quanto possível, entre outras coisas, precisamente dos perigos da "opinião pública" e da psicologia de multidões: em vez do "unanimismo", um espaço onde os temas e problemas são postos em confronto e debatidos.
A reunião que agora ocorre em Copenhague evidencia as nuances da questão geral. É clara a importância das entidades da sociedade civil, em escala mundial, em sensibilizar para o problema ambiental que a reunião dramatiza e em trazê-lo à cena pública. Mas há ressalvas.
No plano doméstico de cada país, em primeiro lugar, são claras as dificuldades defrontadas mesmo pelos partidos "verdes", em decorrência do fato simples de que não basta "vocalizar" posições a que certas "bases" adiram homogeneamente: é preciso acenar aos cidadãos como tal, com a diversidade de problemas que os afetam, e poder assim cumprir também a função de "agregação" de interesses a que um partido autêntico não pode renunciar. Temos, em segundo lugar, a projeção disso no plano transnacional, onde surge o que há de crucialmente relevante e difícil no problema ambiental: não apenas interesses diferenciados e antagônicos em contraposição ativa, mas igualmente boas razões de debate e divergência na esfera pública mundial tomada no sentido mais nobre, com argumentos que vão em direções distintas - debate que os e-mails expostos por hackers apenas exacerbaram ao servir de instrumento no jogo dos interesses.
Seja como for, é óbvia a necessidade da criação de consensos e patente a falta que fazem, no plano em que os problemas devem resolver-se, o Estado e a institucionalização de mecanismos político-partidários de agregação de interesses e opiniões e de encaminhamento mais ou menos "automático" de decisões vinculantes. Como as crises econômicas e as questões nucleares, as urgências envolvidas no problema ambiental realçam de maneira angustiante o desafio de criarmos o efetivo equivalente funcional do Estado na escala planetária. Se há muitas razões de ceticismo, certamente não é a menor delas o fato de não podermos escapar, quanto ao desafio, do papel crucial de Estados nacionais não só de interesses distintos e estruturas de decisão diferenciadas, mas também desigualmente poderosos. Há indícios, contudo, de que a esfera pública mundial pode acabar mostrando sua serventia também quanto a isso.
Já em outra capital nórdica, como apontava Howard Fineman na edição eletrônica de "Newsweek" de 10 de dezembro, Obama agradecia o Nobel da paz falando de guerra tal qual Bush - talvez com boas razões de política doméstica, que fazer...
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
A ideia de uma democracia "deliberativa" tem sido contraposta (por Diana Mutz, por exemplo, no volume "Hearing the Other Side", de 2006) à da democracia "participativa" pela qual mais comumente se anseia. As duas envolvem exigências e supostos contrastantes. A primeira, centrada no debate autêntico como mecanismo de decisão, supõe justamente que se "ouça o outro lado" e seus argumentos e, portanto, a imersão em ambientes sociais heterogêneos quanto a perspectivas e opiniões. Já a segunda, ao estimular o envolvimento e a participação dos cidadãos nos assuntos públicos, acaba às voltas com os condicionamentos e correlatos sociopsicológicos desse desiderato.
Ponhamos de lado o que há de problemático na concepção de uma sociedade cujos cidadãos devam estar, "republicanamente", em mobilização permanente ou "nas ruas" (ou de uma universidade em que a legitimidade de decisões importantes se veja deslocada para os corredores e pátios, para mencionar um tipo específico de organização sujeito a problemas análogos entre nós): tal mobilização será no máximo um ponto talvez necessário de passagem rumo à sociedade cuja aparelhagem institucional democraticamente construída permita aos cidadãos ir para casa em paz, como tenho dito às vezes, na certeza de que seus interesses ou valores maiores estão assegurados. À parte isso, como Alessandro Pizzorno destaca há muito tempo, a participação política tende a dar-se "entre iguais" - e a favorecer condições em que a fusão e a efusão psicológicas entre os integrantes de grupos homogêneos e antagônicos tendem a substituir-se à tolerância e mesmo à racionalidade.
Com seus pressupostos implícitos de unanimidade e as pressões contrárias à divergência que daí resultam, a santificação frequente da "opinião pública" vai na mesma direção, não obstante o caráter fluido e fragmentário que os fenômenos assim rotulados na verdade apresentam.
Uma indagação de interesse é a de como tais questões se relacionam com a ideia de "sociedade civil", retomada e idealizada contra o Estado em meios de esquerda, desde há algum tempo, em nome de um "aprofundamento" da democracia. No Brasil, temos visto, por exemplo, o governo Lula avaliado em termos que destacam, com ânimo negativo, a continuidade de um Estado ativo e ambicioso, diante do qual a sociedade civil nunca poderia afirmar-se com autonomia.
É claro, por um lado, o que, não obstante os riscos indicados, os estímulos à participação dos "iguais", e a sociedade civil como arena disso, têm de positivo para a dinâmica democrática - e os partidos políticos, que os adeptos mais fervorosos da sociedade civil tendem a ver com reservas, são há tempos descritos como cumprindo a função de "vocalização" (junto ao Estado...) dos interesses correspondentes a "bases sociais" dadas, distinguidas justamente pelo compartilhamento de determinadas condições e perspectivas ou opiniões. Por outro lado, o papel das entidades que compõem a sociedade civil (incluindo ONGs e associações diversas, que agora felizmente vão além, entre nós, das indefectíveis OAB, ABI e CNBB dos tempos da ditadura) pode ser apreciado de um ângulo inequivocamente positivo se consideramos a "esfera pública", com ênfase no potencial libertário do fluxo de comunicação entre os cidadãos quando protegido tanto quanto possível, entre outras coisas, precisamente dos perigos da "opinião pública" e da psicologia de multidões: em vez do "unanimismo", um espaço onde os temas e problemas são postos em confronto e debatidos.
A reunião que agora ocorre em Copenhague evidencia as nuances da questão geral. É clara a importância das entidades da sociedade civil, em escala mundial, em sensibilizar para o problema ambiental que a reunião dramatiza e em trazê-lo à cena pública. Mas há ressalvas.
No plano doméstico de cada país, em primeiro lugar, são claras as dificuldades defrontadas mesmo pelos partidos "verdes", em decorrência do fato simples de que não basta "vocalizar" posições a que certas "bases" adiram homogeneamente: é preciso acenar aos cidadãos como tal, com a diversidade de problemas que os afetam, e poder assim cumprir também a função de "agregação" de interesses a que um partido autêntico não pode renunciar. Temos, em segundo lugar, a projeção disso no plano transnacional, onde surge o que há de crucialmente relevante e difícil no problema ambiental: não apenas interesses diferenciados e antagônicos em contraposição ativa, mas igualmente boas razões de debate e divergência na esfera pública mundial tomada no sentido mais nobre, com argumentos que vão em direções distintas - debate que os e-mails expostos por hackers apenas exacerbaram ao servir de instrumento no jogo dos interesses.
Seja como for, é óbvia a necessidade da criação de consensos e patente a falta que fazem, no plano em que os problemas devem resolver-se, o Estado e a institucionalização de mecanismos político-partidários de agregação de interesses e opiniões e de encaminhamento mais ou menos "automático" de decisões vinculantes. Como as crises econômicas e as questões nucleares, as urgências envolvidas no problema ambiental realçam de maneira angustiante o desafio de criarmos o efetivo equivalente funcional do Estado na escala planetária. Se há muitas razões de ceticismo, certamente não é a menor delas o fato de não podermos escapar, quanto ao desafio, do papel crucial de Estados nacionais não só de interesses distintos e estruturas de decisão diferenciadas, mas também desigualmente poderosos. Há indícios, contudo, de que a esfera pública mundial pode acabar mostrando sua serventia também quanto a isso.
Já em outra capital nórdica, como apontava Howard Fineman na edição eletrônica de "Newsweek" de 10 de dezembro, Obama agradecia o Nobel da paz falando de guerra tal qual Bush - talvez com boas razões de política doméstica, que fazer...
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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