segunda-feira, 10 de junho de 2013

Marxismo, sistema e ação transformadora - Brasilio Sallum Jr.

No começo dos anos 1970, quando o marxismo estava convulsionado pelo surgimento do estruturalismo althusseriano, Alvin Gouldner — sociólogo da tradição crítica norte-americana — publicou um pequeno artigo denominado “Dois marxismos” em que sublinha a necessidade, óbvia mas poucas vezes atendida, de pensar o marxismo de uma perspectiva marxista (GOULDNER, 1975).

Ele esclarece: haveria que tratar o marxismo não apenas como meio de conhecer ou de transformar a história, mas também como produto social e histórico. Diz mais: seria necessário pensar o marxismo como movimento que se desdobra na história de forma contraditória, quer dizer, como unidade tensa entre diferenças.

A primeira das duas recomendações contém o que me parece ser o espírito com que hoje devemos tratar os textos de Marx e Engels, de seus intérpretes e seguidores: não como artigos de fé, mas como meios excepcionais mas limitados, humana e historicamente limitados, de conhecer e transformar o mundo. E precisamente por serem limitados eles não demandam apenas interpretação, mas também um trabalho de reelaboração teórica. Uma reelaboração que dê maior consistência ao legado teórico de Marx e Engels e o renove para ajustá-lo aos problemas do presente. Estas tarefas construtivas impõem uma ruptura necessária com o dogmatismo. Mais: elas implicam não só em dialogar, mas também em dispor-se a aprender com as ciências sociais não marxistas.

No que diz respeito ao caráter dialeticamente contraditório do marxismo, Gouldner constrói dois tipos de interpretação da teoria que, segundo ele, vêm polarizando sua história, o marxismo científico e o crítico. A construção é habilidosa e, embora alguns autores e atores ofereçam certa dificuldade de classificação, os tipos mencionados são úteis para pensar os problemas da teoria marxista, inclusive os suscitados pelo tema que nos ocupa hoje. Gouldner mostra, com efeito, que o marxismo se polariza a propósito de vários temas, o que mencionarei de forma breve e incompleta, apenas para ser bem entendido. Em relação à ciência, por exemplo, a vertente científica do marxismo entende que a realidade é governada por leis naturais independentemente da vontade dos homens; ao invés, tais leis a determi¬nam. A ciência marxista seria definível mais como uma construção teórica que por referência empírica, embora haja pouca precisão tanto sobre o método como sobre o seu produto. No pólo oposto, a vertente crítica do marxismo entenderia como problemáticos quaisquer sistemas de pensamento e a própria ciência. O marxismo visaria desmistificá-los. Qualquer teoria, inclusive o marxismo, envolveria sempre uma mirada perspectiva sobre os processos. E os ângulos diversos de mirá-los e interpretá-los decorreriam dos diferentes vínculos entre as teorias e a sociedade.

Fica claro, pois, que para Gouldner os marxistas científicos entendem haver um fosso intransponível entre ciência e ideologia, ao passo que os críticos percebem as duas como socialmente ancoradas, havendo conhecimento verdadeiro também na ideologia, conhecimento esse a ser desentranhado pela ciência.

Em relação ao papel da capacidade dos homens intervirem ativamente no processo histórico, o marxismo crítico enfatizaria que os homens fazem a história ao passo que o científico sublinharia que a fazem, sim, mas dentro de condições determinadas, independentes de sua vontade. Coerentemente, o marxismo científico daria ênfase ao valor da resistência e da paciência políticas; à proteção os quadros revolucionários até a chegada da “hora certa”, e teria confiança nas oportunidades objetivas que as contradições possam vir a criar. No polo oposto, a vertente crítica se recusaria a se submeter “ao que existe”, valorizando a coragem, atribuindo ao élan revolucionário capacidade de compensar o déficit das “condições objetivas”. Não me alongarei mais neste sumário. São reconhecíveis, facilmente, nos polos científico e político autores, atores e obras: de uma parte Althusser, de outra o jovem Lukács; em um polo Kautsky, em outro Thompson; o Marx de O capital versus o do Dezoito Brumário de Luís Bonaparte; e assim por diante.

Entre os temas em que Gouldner identifica polarizações entre científicos e críticos, para nós interessa um em particular, aquele que diz respeito ao modo de produção da história. Em relação a isso haveria os que concebem a história principalmente como fruto das contradições entre forças produtivas e relações de produção; ou, ao invés, os que acreditam que ela resulte da luta de classes. Trata-se, é claro, não de opções exclusivas, mas de diferentes ênfases. Na realidade autores representativos de ambos os polos esforçaram-se para demonstrar que não ‘esqueceram’ o seu oposto. Quem não se lembra dos malabarismos intelectuais e linguísticos de Poulantzas em As classes sociais no capitalismo de hoje para “demonstrar” que as estruturas econômicas, políticas e ideológicas são, a um só tempo, “lutas de classe”? Não faltarão exemplos como este, de um ou de outro lado da trincheira.

Esta polarização entre contradições sistêmicas e conflito de classes, embora sirva bem ao argumento de Gouldner, perde um elemento-chave que nos pode levar para além das antinomias. Com efeito, não importa o pólo que adotemos no combate: se o da ênfase nas contradições entre relações de produção e forças produtivas ou o da ênfase nas lutas de classe. O que é mais problemático no marxismo não é a escolha do lado a enfatizar; o problema central está na relação entre sistema contraditório e lutas de classes, entre estrutura e história.

Sobre isso há um quase silêncio teórico. E esta é a questão central que pretendemos discutir neste artigo.

Sublinho, desde logo, a centralidade não só teórica, mas, também, política desta relação. É da conexão entre as contradições sistêmicas do capitalismo e o conflito de classes que depende tanto a revolução como o conformismo do sujeito revolucionário.

Recorde-se que para Marx o núcleo das contradições do capitalismo está na contraposição entre a socialização cada vez maior da produção capitalista e a apropriação privada do excedente produzido. Esta contradição fundamental é inerente ao processo de reprodução ampliada do capital e não depende das crises econômicas que atingem periodicamente o sistema. Pelo contrário, para Marx as crises são apenas soluções violentas e momentâneas para as contradições existentes (K, III, p. 262) que restabelecem passageiramente o equilíbrio do sistema.

O mais importante é que a contradição fundamental do capitalismo gera contradições secundárias entre, de um lado, a estrutura de classes produzida no processo de reprodução do capital e, de outro, as relações mantidas pelos agentes sociais nas principais esferas econômicas por meio das quais ocorre a própria reprodução. Ao passo que entre as classes sociais se tecem fios invisíveis que mantém o proletariado escravizado à burguesia, no plano da circulação de mercadorias regem relações de liberdade entre os agentes-proprietários de mercadorias, não importa serem tais mercadorias a força de trabalho ou os objetos de consumo de operários ou capitalistas. Cada um deles compra ou vende suas mercadorias livremente, conforme sua conveniência. Na medida que os seus salários, porém, são transformados em bens de consumo e, por fim, consumidos, os trabalhadores vêem obrigados a manter-se no emprego ou a vender novamente sua força de trabalho aos capitalistas, não importa qual deles. Fecha-se assim o círculo que escraviza socialmente o proletariado à burguesia.

Ademais, embora no plano da circulação, as mercadorias sejam rotineiramente trocadas pelo seu valor, sendo a igualdade de seus valores a condição para a troca e a troca um fator de igualação entre os proprietários de mercadorias, tudo muda de figura no processo de reprodução ampliada do capital. Nesta reprodução, a burguesia — ainda que possa ter iniciado o processo de produção com base em dinheiro obtido com o próprio trabalho — extrai constantemente dos trabalhadores contratados mais valor que o que paga por sua força de trabalho. Ao reinvestir o resultado no processo de produção, transforma a mais-valia extraída em capital e, depois de umas tantas voltas, o seu capital inicial nada terá de trabalho próprio, transformando-se o capital em mais-valia acumulada, em massa de trabalho alheio, expropriado e acumulado, que segue sugando trabalho vivo. Portanto, ao passo que há igualdade entre os mercadores existe desigualdade entre as classes. Concluindo: o fundamento da igualdade e da liberdade entre os agentes na esfera da circulação é a escravidão e a desigualdade entre as classes no processo de reprodução.

Como tais contradições se traduzem em lutas de classe? Por que tais contradições não têm até hoje se transformado em luta revolucionária que supere o capitalismo? Quais os obstáculos que bloqueiam a ação revolucionária?

Estranhamente, os marxistas avançaram mais, ainda que de modo muito insuficiente, na explicação para a falta de impulso revolucionário do que no exame das condições de contestação da ordem burguesa pelas classes subalternas.

A tradição marxista tem atribuído, de forma geral, à ideologia dominante a frustração das expectativas de que a experiência da exploração fabril, do empobrecimento relativo da classe operária e das próprias lutas operárias se convertesse na formação de uma classe capaz de lutar não apenas por objetivos imediatos, mas também contra o sistema, em favor de uma nova sociedade.

A ideologia dominante tem sido concebida, porém, de modos muito distintos no interior do marxismo. Como sugeriu Lockwood (1992), é possível distinguir no marxismo três concepções de ideologia e, com isso, três explicações para a debilidade da luta revolucionária nos países capitalistas avançados.

Uma dessas concepções deriva de A ideologia alemã e tem seu complemento em O que fazer, de Lenin. As classes são portadores das ideologias. Entretanto, como os operários são oprimidos, econômica e também ideologicamente, as classes dominantes monopolizam tanto os meios de produção material como grande parte dos meios de produção intelectual. Escrevem Marx e Engels em A ideologia alemã: “os indivíduos que compõem a classe dominante [...] regulam a produção e a produção e distribuição das ideias de sua época”. Assim, é a desigualdade de meios de produzir e distribuir idéias que dificultaria ao operariado experimentar sua a experiência como “exploração” e convertê-la em alavanca para a constituição de uma classe revolucionária. Por isso é que, para Lenin, os operários — dominados pela ideologia burguesa — não conseguiriam por si sós ultrapassar uma consciência sindicalista. Para irem além, necessitariam da intervenção de uma vanguarda revolucionária.

A segunda concepção não vincula a ideologia às classes nem entende ser a subordinação da consciência operária o fruto da sua doutrinação pela burguesia. Ao invés, entende ser a ideologia — cujo núcleo é o fetichismo da mercadoria — o resultado não intencional da dominação do sistema mercantil de produção. Os agentes deste imaginam serem as relações que mantém entre si relações entre coisas, mercadorias, cujos valores de troca parecem derivar de sua natureza; inversamente, imaginam que as relações entre os objetos — as mercadorias — têm virtudes sociais. O fetichismo não se fixa só nas mercadorias, mas no conjunto das relações capitalistas: na forma-salário, na forma-lucro, na forma-juro etc. Em todos estes casos, produz-se a inversão. A sociedade mercantil se naturaliza e veda aos agentes a percepção de que ela resulta da exploração entre as classes. Por ela o salário parece ser o valor do trabalho e não da força de trabalho; o lucro e o juro parecem ser, respectivamente, a remuneração do trabalho do empresário e do dinheiro emprestado, e não quotas-parte do trabalho excedente gerado pela exploração capitalista. Entendendo-se desta forma a ideologia inerente ao capitalismo, torna-se difícil entender até como os operários superam o seu individualismo e se organizam como atores coletivos para reivindicar e protestar. De qualquer maneira, como no caso anterior, as associações operárias submetidas ao fetichismo mercantil tenderiam a limitar suas demandas aos salários e às condições de trabalho.

Estas duas concepções de ideologia, além de oferecerem dificuldades para a explicação da ação revolucionária, têm a característica comum de focalizarem sua atenção nos obstáculos cognitivos para o surgimento de uma consciência revolucionária no proletariado (LOCKWOOD, 1992, p. 321). Tais obstáculos, se supõe, poderiam ser ultrapassados por um entendimento correto, científico, do funcionamento do sistema.

A terceira concepção de dominação ideológica, a da hegemonia, tem características bem diferentes das anteriores. Ela refere-se a um sistema cultural dominante que cimenta a dominação de uma coalizão de classes sobre o conjunto da sociedade, constituindo um “bloco intelectual e moral”. Trata-se de um sistema de valores e crenças cuja autoridade se deve principalmente ao seu estabelecimento espontâneo como idéias dominantes. A hegemonia não se refere, pois, apenas a um sistema cognitivo. Trata-se de crenças não-racionais (note-se não-racionais mas, de forma alguma, irracionais), valores, compromissos morais dificilmente “corrigíveis” pelo conhecimento científico. A hegemonia envolve tornar dominante certo modo de viver e de pensar, difundindo uma concepção de realidade através da sociedade em todas as suas manifestações institucionais e privadas, conformando com seu espírito todo o gosto, moralidade, costumes, religião e princípios políticos, e todas as relações sociais (WILLIAMS, 1960). Internalizada pelas massas, a hegemonia se torna parte do “senso comum”.

Esta concepção de hegemonia, muito próxima à noção de “consciência coletiva” de Durkheim — como já notaram Anderson (1976) e Pizzorno (1972) — tem tido larga difusão entre os marxistas. Ela contém grande apelo porque, de um lado, dá mais complexidade à noção de ideologia de classe presente na Ideologia alemã e, de outro, dá mais profundidade sociológica à teoria do fetichismo, enriquecendo a idéia de que a ideologia está incorporada às práticas cotidianas.

Ocorre que, pensada desde modo genérico, a noção de hegemonia apresenta, como bem aponta Lockwood, uma fraqueza fundamental. Ela tem sido incorporada em termos tão pouco específicos que as explicações da ação de classe feita com sua ajuda tendem a se tornar uma forma de determinismo cultural. Assim, “o conceito gramsciano de hegemonia tem possibilitado a muitos teóricos marxistas, preocupados em explicar a ausência de revolução proletária, adotarem [...] uma visão hiper-integrada de sociedade e uma visão hiper-socializada dos indivíduos” (LOCKWOOD, 1992, p. 337), numa interpretação mais-do-que-parsoniana de Durkheim.

Contra esta tendência, haveria que ressaltar e explorar sociologicamente a referência do próprio Gramsci à consciência contraditória do homem ativo das massas. Diz ele:

O homem ativo de massa tem uma atividade prática, mas não tem consciência teórica da sua atividade prática; esta, não obstante, envolve um entendimento do mundo no processo mesmo de transformação. Sua consciência teórica pode mesmo estar historicamente em oposição à sua atividade prática. Podemos quase dizer que ele tem duas consciências teóricas (ou uma consciência contraditória): uma está implícita na sua atividade e em realidade o une a seus companheiros-trabalhadores na transformação prática do mundo real; e outra, superficialmente explícita ou verbal, que ele herdou do passado e absorveu de forma acrítica. Mas essa concepção verbal não é sem conseqüências. Ela mantém unido o grupo social, influencia a conduta moral e a direção da vontade com eficácia variável, muitas vezes de forma poderosa, a ponto de produzir uma consciência tão contraditória que impede qualquer ação, qualquer decisão ou escolha, gerando uma condição de passividade moral e política (GRAMSCI, 2004, p. 103).

O ponto a sublinhar nesse passo é que a consciência dominante – superficialmente explicita ou verbal – tem eficácia variável para influenciar a ação e dirigir a vontade das massas.

Sublinhe-se, de passagem, que do ponto de vista histórico é óbvio que a hegemonia não é plenamente eficaz. Com efeito, se a eficácia fosse tão grande, como explicar a atividade dos movimentos sociais nos períodos de exercício de hegemonia? Como explicar as rebeliões?

Ainda assim, teoricamente é muito importante o reconhecimento do caráter variável desta eficácia. No entanto, é insuficiente identificar, como Gramsci, o caráter meramente “superficial” e “passivo” do assentimento das massas à hegemonia e que este consentimento pode eventualmente se converter em adesão a um outro princípio hegemônico, sempre latente. Isso não é o bastante para uma ciência social que pretenda identificar não só as condições de persistência, mas, também de mudança das formações sociais. Deste ângulo, o reconhecimento de que a hegemonia tem eficácia variável é fundamental apenas porque serve de estímulo para pesquisar o princípio desta variação e, mais ainda, as condições em que os agentes abandonam sua passividade e se engajam no protesto coletivo.

Voltamos, pois, renovados, ao nosso ponto de partida: como, sob quais condições, as contradições sistêmicas se traduzem em conflitos de classe? Em que circunstâncias e por quais meios as contradições sistêmicas conseguem se traduzir em conflitos de classe? Em que situações ocorrem rebeliões? Em quais revoluções?

Seguramente, o estudo dos textos dos teóricos marxistas pode cumprir um papel importante na investigação do problema. No entanto, creio que se perderia muito, caso não fossem aproveitados os estudos não marxistas contemporâneos sobre o modo de vida das classes populares e as suas formas de mobilização e protesto coletivo.

Creio que uma parte da literatura sociológica não-marxista contém elementos muito importantes para uma investigação do tipo que mencionamos. Refiro-me, especialmente, a alguns conceitos e análises contidos, por uma parte, na obra de Pierre Bourdieu e seus colaboradores e, por outra, nos trabalhos sobre movimentos sociais estudados na perspectiva do “processo político”.

Em relação à obra de Bourdieu e seus discípulos, há dois elementos importantes a assimilar, um metodológico e outro conceitual. Embora a teoria marxista do direito, desenvolvida por Pashukanis, e o conceito de fetichismo mercantil envolvam a imbricação entre práticas sociais e significação, a ênfase dada por Bourdieu no caráter relacional, prático e simbólico das relações entre classes sociais deverá ser incorporada em uma teoria que procure articular estrutura e práticas. De forma complementar, conviria, como já sublinhei em outra oportunidade, incorporar de Bourdieu o conceito de habitus.

A noção de habitus de classe permite, melhor que de outros modos, superar a idéia, presente no marxismo, de “classe em si” (e sua correlata “para si”), sublinhando a relevância da perspectiva dos explorados e dominados ainda que ela não seja elaborada reflexivamente e que eles não estejam revolucionando o sistema. No registro histórico-político, a noção de habitus permite captar os códigos internalizados de forma pré-reflexiva que conformam grande parte das práticas sociais, inclusive as das classes subalternas. Tais práticas podem ser politicamente relevantes, mesmo quando não põem em questão as modalidades vigentes de reprodução social. O melhor exemplo disso encontra-se na análise que o próprio Marx faz da participação dos camponeses no processo histórico que levou à ascensão de Luís Napoleão ao poder de Estado na França em meados do século XIX. Naquele episódio, sem associação nacional ou organização política própria que permitisse a participação autônoma dos camponeses na vida política francesa, a atuação política unitária dessa classe passa a depender dela encontrar para si um representante “externo” [1]. Foi a tradição histórico-cultural internalizada pelo campesinato francês — o seu habitus, diria Bourdieu — que lhe permitiu encontrar na figura e nas ideias de Luís Napoleão a possibilidade de realização — ilusória, é verdade — de suas aspirações. Foi isso que fez de Luís Bonaparte o depositário da votação massiva do campesinato no plebiscito que legitimou o golpe de dezembro de 1851. O caso reconstituído por Marx em O dezoito brumário de Luís Bonaparte diz respeito a uma classe em declínio que, majoritária e ilusoriamente, vê na consolidação do poder de Luís Napoleão Bonaparte, a possibilidade de restaurar suas condições anteriores de vida.

Não há dúvida que, para Marx, a busca da restauração da ordem anterior, vigente na época do primeiro Napoleão, não era a única prática camponesa possível. O seu relato enfatiza a possibilidade não realizada de uma prática camponesa revolucionária e menciona, como indícios disso, uma série de irrupções coletivas contra as mudanças adversas ocorridas nas condições camponesas de vida.

O esquema teórico construído por Bourdieu também contempla a existência de certa gama de disposições de conduta dentro de uma classe ou fração de classe, o que veda interpretar de forma muito mecânica o habitus enquanto dispositivo conservador. De fato, ele é um conjunto de disposições que permitem múltiplas orientações de conduta dentro de uma classe ou fração de classe. Quais os fundamentos estruturais disso? Para Bourdieu, são as diferentes origens e trajetórias de indivíduos que ocupam posições similares no espaço social (por exemplo, parte do operariado urbano provém da baixa classe média, outra parte é constituída por ex-trabalhadores rurais etc.) que favorecem o surgimento de diferenças de perspectiva e de opinião entre os agentes sociais. Ainda assim, para ele, tudo “parece indicar que [isso ocorre] dentro dos limites dos efeitos de classe; desta forma, as disposições ético-políticas dos membros de uma mesma classe aparecem como formas transformadas da disposição que caracteriza fundamentalmente a classe como um todo” (Bourdieu, 1984, p. 456) [2]. Esta percepção de que os limites de classe tendem a se impor à diversidade das interpretações presentes em cada classe, se traduz no visível ceticismo de Bourdieu em relação à relevância política das “diferenças de opinião” existentes entre as classes subalternas: para ele, sua capacidade de contestação parece estar sempre na dependência de sua associação com a fração intelectual (dominada) da classe dominante.

Esta digressão permite sublinhar, como já o fizemos em outra parte, a importância de articular os conceitos de habitus e de contradição. Na medida em que explorarmos esta articulação, as variações nas disposições de conduta inerentes a cada classe não ficariam, como em Bourdieu, dependentes apenas das posições e trajetórias das classes e dos atores; a própria experiência social de cada classe – e especialmente a dos dominados — poderia talvez explicar tais variações nas disposições de conduta — em virtude dessa experiência ser ambígua e dinâmica, porque o sistema capitalista de classes é contraditório e cíclico.

Trata-se, é bom que se sublinhe, de uma sugestão cuja pertinência deve ser examinada tanto teoricamente como em investigações empíricas.

No que diz respeito às teorias da ação coletiva, a investigação do problema da relação entre contradições sistêmicas e conflitos de classes poderia absorver um grande conjunto de conceitos que elas têm produzido e que são, creio eu, bastante ajustáveis a uma perspectiva marxista renovada (TILLY, 1987; TARROW, 1998) Digo ajustáveis porque as teorias dos movimentos sociais — que hoje procuram fundir-se com os estudos sobre rebeliões e revoluções em um teoria ampliada do “confronto político” (contentious politics) — não trabalham usualmente com o conceito de classe (MCADAM, TARROW, TILLY, 1996). No entanto, tais teorias sempre enfatizam a relevância das redes de relações sociais para a mobilização coletiva. Ora as classes sociais se constroem não apenas por oposição às outras, mas, também, por adensamento das relações entre seus próprios membros. São tais relações verticais e horizontais que conformam os habitus de classe, assim como estes são os fundamentos de seus modos próprios de vida. Desta forma, a primeira vista parece ser possível trabalhar no sentido de “ajustar” conceitos e resultados das investigações efetuadas pelos teóricos dos movimentos sociais. Conceitos como “estrutura de mobilização”, “oportunidade política”, “repertório de ação coletiva”, “quadro interpretativo” etc. seriam extraordinariamente úteis para ajudar os investigadores de inspiração marxista a superar a fase defensiva, de encolhimento, em que se encontram. Tenho a convicção de que, como tudo, uma grande teoria só tem condição de se preservar renovando-se. Minha esperança é que será este o caminho que seguirá o marxismo.

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Brasílio Sallum Jr. é professor do Departamento de Sociologia da FFLCH/USP. Este trabalho foi apresentando no V Colóquio Internacional Marx Engels na Sessão Plenária “Classes e movimentos sociais hoje”, no dia 09/11/2007. Publicado em Luciana Aliaga, Henrique Amorim e Paula Marcelino (Orgs.). Marxismo – teoria, história e política. São Paulo: Alameda, 2011, p. 181-91.

Notas

[1] O termo é de Marx. Luís Bonaparte tornou-se seu representante “externo” na medida em que não era camponês nem foi instituído como representante pela atividade política autônoma dos camponeses. No entanto, ele só pôde tornar-se representante de classe pela atividade “interna” do habitus camponês, conformado pela grande revolução francesa que os libertara da semisservidão e os transformara em proprietários livres, condição garantida depois por Napoleão I, no começo do século XIX.

[2] Quer dizer, para ele, a gama das disposições deriva da confluência entre a multiplicidade das trajetórias dos indivíduos (e suas famílias) e a trajetória/posição de classe. Isso significa que quanto menor a mobilidade social (ascendente ou descendente) menores são as chances de heterogeneidade dos habitus. E vice-versa. Quanto aos limites de classe não serem ultrapassados, trata-se de hipótese razoável enunciada em A distinção, que exige cuidadosa demonstração.

Referências bibliográficas

ANDERSON, Perry. “The Antinomies of Antonio Gramsci”. New Left Review, v. 100, 1976.

BOURDIEU, Pierre. Distinction – A Social Critique of the Judgement of Taste. Cambridge-USA: Harvard University Press, 1984

GOUDNER, Alvin. ‘Two Marxisms”. In: Id. For Sociology – Renewal and Critique in Sociology Today. England: Penguin Books, 1975.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 1, 2004.

LOCKWOOD, David. Solidarity and Schism – ‘The Problem of Disorder’ in Durkheimian and Marxist Sociology. Oxford-UK: Clarendon Press, 1992.

PIZZORNO, Alessandro. “Sobre el Método de Gramsci”. In: Pizzorno et ali. Gramsci y las ciencias sociales. 2ª ed. ampliada. Córdoba: Pasado y Presente, 1972.

MCDAM, Doug; TARROW, Sidney; TILLY, Charles. “To Map Contentious Politics”. Mobilization, v. 1, n. 1, 1996.

SALLUM Jr., Brasílio. “Classes, Cultura e Ação Coletiva”. Lua Nova – Revista de Cultura e Política, Cedec, nº 65, 2005.

TILLY, Charles. From Mobilization to Revolution. New York: MacGraw-Hill, 1987.

TARROW, Sidney. Power in Movement – Social Movements and Contentious Politics. 2ª ed. New York: Cambridge University Press, 1998.

WILLIAMS, G. A., “The Concept of ‘Egemonia’ in the Thought of Antonio Gramsci: Some Notes and Interpretations”. Journal of History of Ideas, v. 21, n. 4, 1960.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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