A Carta democrática
Folha de S. Paulo
Constituição de 1988 consolidou liberdades e
impulsionou resolução de problemas
A República brasileira nem sequer havia
completado o primeiro centenário, em 5 de outubro de 1988, quando uma
assembleia de representantes eleitos da população promulgou a sexta Constituição do
regime. Não era mais do mesmo.
Sobre as ruínas da ditadura encerrada
três anos antes, um documento generoso, gestado num processo de frenética
participação da sociedade, lançava as bases para o soerguimento de uma
democracia vibrante e fechava definitivamente as portas para o autoritarismo.
A Carta
completou 35 anos demonstrando esse vigor. Derrotou uma a uma todas
as investidas contra a institucionalidade de um presidente tosco, com seu séquito
de nostálgicos da tirania. Estão sendo devidamente julgados e condenados os
vândalos que promoveram a baderna de 8
de janeiro.
Defeitos pontuais nos mecanismos de controle
do abuso de poder, como a timorata conduta do procurador-geral da
República, não comprometeram o conjunto. A legalidade prevaleceu
sobejamente.
As liberdades civis estão garantidas, a expressão é livre, e as eleições, rotineiras como a sucessão das estações, decretam com rapidez e segurança os resultados e promovem alternância no Legislativo e no Executivo, em municípios, nos estados e no âmbito federal.
Já no domínio econômico, o que foi escrito
pelos constituintes não teve o mesmo visionarismo nem a mesma longevidade. O
intervencionismo antiquado e o detalhismo cartorial dos estatutos exigiram
décadas de reformas para que o país se modernizasse minimamente.
Não foi de todo desfeito o legado de que
basta escrever uma boa intenção na Constituição para que a realidade se
transforme. Essa imaturidade despreza os custos para o pagador de impostos e os
efeitos econômicos das medidas.
A ambição da Carta de 1988 de equiparar as
condições de disputa entre ricos e pobres —o que requer qualificar a educação,
a saúde, a infraestrutura e o seguro de renda oferecidos à maioria dos
brasileiros— tem sido obstaculizada pela predação praticada por oligarquias nos
orçamentos públicos.
O debate da reforma
tributária escancara o velho hábito de grupos de elite de
invocar uma peculiaridade qualquer em sua atividade para obter privilégios à custa
da maioria sem lobby. A dificuldade de cortar gasto público e concentrá-lo em
programas eficazes e emancipatórios é outro indício de que ainda viceja o
extrativismo.
Mas a geração atual de brasileiros, à
diferença das que viveram no conturbado passado da República, tomou em suas
mãos o destino do país e empunha as ferramentas —a começar da Carta democrática
de 1988— para desobstruir o caminho da prosperidade.
Presos demais
Folha de S. Paulo
Canetada do STF não humanizará cárceres, mas
Poderes devem rever leis e práticas
Que o Brasil prende muito e mal já se sabe:
hoje o país conta com a maior população carcerária de sua história, de 832,3
mil detentos ao final de 2022, segundo dados do 17º Anuário Brasileiro de
Segurança Pública. Trata-se de aumento de 257% desde 2000, com o déficit de
vagas passando de 230 mil.
Tortura, maus-tratos e prisões de pessoas
inocentes ou por crimes banais são episódios recorrentes. Politicamente, porém,
não se vê inclinação a enfrentar o encarceramento excessivo no país.
Na quarta-feira (3), o Supremo
Tribunal Federal decidiu, com base em tese elaborada por seu atual
presidente, ministro Luís Roberto Barroso, que a União, primeiro, e os governos
estaduais precisam apresentar planos para enfrentar os múltiplos problemas do
sistema penitenciário brasileiro, a serem homologados pela corte e depois
monitorados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
É muito improvável, no entanto, que uma
canetada do STF seja capaz de promover alterações significativas. Há
resistência entre governantes e legisladores a alternativas que não sejam
meramente paliativas, como o aumento de vagas nos presídios.
É necessário, primordialmente, reduzir a
população prisional com especial foco em crimes não violentos e sem relação com
organizações criminosas. Encarcerar aos montes e em condições subumanas não
traz benefício para a sociedade —pelo contrário.
A maioria dos presos por tráfico de drogas,
por exemplo, não tem relação com facções do crime, segundo estudo do Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A ex-ministra Rosa Weber, em sua última
sessão no CNJ, divulgou que o órgão liberou mais de 22 mil presos de forma
indevida no país. Embora haja a obrigação de realização de audiências de
custódia após a detenção, falta estrutura e sobra resistência no Judiciário.
Uma das medidas urgentes é rever a Lei de
Drogas, em debate hoje no Supremo. O tema deveria ser tratado,
preferencialmente, pelo Congresso. Infelizmente, o presidente do Senado
Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), apresentou uma proposta de emenda à Constituição
para, de forma reacionária, criminalizar o porte e a posse de drogas em
qualquer quantidade.
Se o STF deve se abster de legislar sobre o tema, os dois Poderes deveriam trabalhar em busca de soluções alternativas, em que a prisão seja exceção, não a regra.
O Globo
Supremo deu primeiro passo ao cobrar planos
para acabar com o ‘estado de coisas inconstitucional’
O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou,
por unanimidade, o prazo de seis meses para o governo federal, governos
estaduais e do Distrito Federal apresentarem planos para superar o “estado de
coisas inconstitucional” no sistema carcerário. Nas cadeias brasileiras, a
regra é a violação maciça de direitos fundamentais, provocada por superlotação,
condições precárias de sobrevivência e ação de facções criminosas. Os planos
deverão ser homologados pelo Supremo e implementados em três anos. A Corte
também ordenou que juízes e tribunais realizem audiências de custódia e, ao
optarem por não aplicar medidas cautelares ou penas alternativas à prisão, que suas
decisões sejam mais fundamentadas do que têm sido.
Problemas da repressão à criminalidade no Brasil se refletem nas prisões. Por deficiência da polícia, criminosos perigosos estão soltos. A taxa de solução de homicídios, por volta de 35%, é baixa. Nos Estados Unidos, onde caiu nos últimos dez anos, é 54%. Na Alemanha, há décadas é superior a 90%. Ineficaz para prender assassinos, o sistema brasileiro de repressão põe atrás das grades milhares de acusados por pequenos crimes. Quase três em cada cinco detidos por tráfico de maconha são presos com menos de 150 gramas, revelou estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
O influxo de envolvidos em casos de baixa
periculosidade, aliado à morosidade da Justiça, tem resultado previsível. Com a
sétima maior população do planeta, o Brasil tem a terceira maior população
carcerária do mundo, 650 mil detentos, segundo dados da Secretaria Nacional de
Políticas Penais (Senappen) noticiados em reportagem do GLOBO. No último
levantamento oficial, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
eram perto de 670 mil, dos quais 203 mil, ou 30%, estavam presos
provisoriamente, ainda aguardando julgamento. O abuso das prisões provisórias
resulta de uma legislação penal ineficaz para julgar, absolver ou punir os
acusados em prazos razoáveis.
Depois de um período de estabilidade nos anos
2000, quando a população carcerária girava em torno dos 230 mil, houve um
salto. Em meados de 2014, atingiu 607 mil. De lá para cá, o percentual de
presos provisórios não sofreu a redução esperada, nem após a entrada em vigor
da nova lei que ofereceu outras possibilidades de medidas cautelares, como
monitoramento eletrônico.
O resultado é superlotação contínua em vários
presídios. No Tiago Teles de Castro Domingues, em São Gonçalo, na Região
Metropolitana do Rio, 1.855 presos estão num espaço com vaga para 640. No
Inspetor José Martinho Drumond, em Minas Gerais, são 2.554 detentos onde há
1.047 vagas. Presídios com mais detentos que a capacidade facilitam o trabalho
de recrutamento de facções, que alegam defender os direitos dos presidiários. A
carência de direitos humanos realimenta a criminalidade.
A decisão do STF, provocada por uma ação
do PSOL,
não pretende trazer uma solução definitiva — nem poderia. Ao final do
julgamento, o ministro Luís Roberto
Barroso, novo presidente da Corte, reconheceu que o tema é de
difícil solução. “Espero que este seja um passo relevante para melhorar,
minimamente que seja, as condições degradantes do sistema prisional
brasileiro”, afirmou. É esse o desafio da União, dos governos locais e da
Justiça.
Recuperação pós-pandemia traz nova
oportunidade para turismo no Brasil
O Globo
Apesar de sofrer com qualidade de serviços e
violência, setor ganha com retomada das viagens internacionais
Passada a pandemia, o Brasil já se beneficia
da tendência mundial de retomada nas viagens a lazer e avança na captação de
divisas trazidas pelos turistas. De janeiro a agosto, mesmo com um fluxo de
visitantes ainda aquém do verificado antes do coronavírus, o turismo externo
injetou no país US$ 4,45 bilhões. Os US$ 657 milhões deixados por estrangeiros
em agosto foram o melhor resultado para o mês em 28 anos, desde que o Banco
Central passou a acompanhar o fluxo de divisas de viagens internacionais.
“O Brasil voltou à prateleira”, diz o
presidente da Embratur, Marcelo
Freixo. Ele destaca a reconexão do país com seus grandes mercados de
turistas estrangeiros — América Latina, Estados Unidos e
Europa. Quem é do ramo sabe que, mesmo com todas as belezas naturais e
atrativos culturais, o Brasil ainda atrai um número reduzido de visitantes. O
potencial do turismo externo está longe de ser explorado como deveria. A imagem
do país continua a ser afetada por fatores como a baixa qualidade dos serviços
ou o recrudescimento da violência, que continua a afastar turistas.
Ainda assim, nos oito primeiros meses do ano,
o país recebeu 4 milhões de visitantes, 11% a mais que os 3,6 milhões do ano
passado. Em 2019, antes da pandemia, haviam sido 6,4 milhões. Para perceber
como isso é pouco, nem é preciso fazer comparações com os maiores polos
turísticos, como Estados Unidos ou França. O Brasil
recebe menos da metade dos turistas que visitam apenas a cidade inca de Machu
Picchu, no Peru, de acordo com Cesar Fernandes, presidente da Associação
Brasileira de Turismo Receptivo (Recept).
A Grécia acolhe 30 milhões de visitantes por
ano, o triplo da população. Ir a Atenas e visitar ilhas gregas serve de
aprendizado a qualquer operador turístico. Em pouco tempo contrata-se a viagem,
aluga-se carro no destino, remarcam-se voos para qualquer lugar do mundo. Há
uma azeitada indústria em funcionamento.
As dimensões ainda acanhadas do setor no
Brasil são indicador do potencial de crescimento. “Há enorme demanda por lazer,
experiência e novos destinos no pós-pandemia”, diz Alexandre Sampaio,
presidente da Federação Brasileira de Hospedagem e Alimentação. “O Brasil é
competitivo, com oferta de voos e câmbio favorável. Hotéis que investiram em
modernização estão surfando esta onda. Já vemos hotéis e resorts anunciando
expansões no Nordeste, em Minas Gerais e mesmo no interior do Rio.”
Há pouco, a pedido do Rio, o Conselho
Nacional de Política Fazendária (Confaz) autorizou governos estaduais a
devolver o ICMS a turistas que fazem compras no país, o “tax refund” tão comum
no exterior. É um bom exemplo da necessidade de conexão entre o setor privado e
o público. O Estado também precisa encarar como prioridade a segurança pública,
de modo a reverter a imagem deteriorada do Brasil. Se cada um fizer a sua
parte, e os turistas sentirem vontade de voltar, o país poderá contar com mais
uma importante fonte de divisas além do agronegócio. Não há motivo para que não
seja assim.
A legitimidade da ‘omissão’ do Congresso
O Estado de S. Paulo
Em temas controversos, a omissão do Congresso não é exatamente uma omissão. Ela expressa a vontade política da sociedade. Cabe a todos, também ao Supremo, respeitar essa vontade
O embate entre o Congresso e o Supremo
Tribunal Federal (STF) a respeito de temas controversos resgatou a discussão
sobre as prerrogativas de cada um dos Poderes. Como se sabe, o Legislativo deve
elaborar as leis que regulam a vida em sociedade, enquanto à Justiça cabe
interpretá-las e aplicá-las, mas esses conceitos básicos não são suficientes
para explicar o tênue e complexo equilíbrio da relação entre os Poderes.
Cresce no Congresso – e na sociedade – a
sensação de que o Supremo assumiu competências próprias do Legislativo,
sobretudo ao se dispor a regular temas que deveriam ser discutidos entre
representantes eleitos pelo povo, e não por juízes. É o caso, por exemplo, do
avanço do debate sobre o aborto, em que a então ministra Rosa Weber votou pela
descriminalização do procedimento até a 12.ª semana de gestação. Se a tese
prosperar depois dos votos dos demais ministros, o tipo penal do aborto será
completamente modificado pelo Judiciário, algo que apenas o Legislativo poderia
fazer. O mesmo pode ocorrer se o STF, a pretexto de corrigir interpretações
equivocadas do próprio Judiciário, se dispuser a redigir uma nova legislação
antidrogas, o que só cabe ao Legislativo.
Esse ativismo judicial é, em boa medida,
alimentado por partidos sem capacidade de vencer o debate democrático no
Congresso. O mecanismo constitucional que permite a minorias buscar no Supremo
a proteção de direitos supostamente violados por leis aprovadas no Congresso
tornou-se, na prática, o terceiro turno de votações em que legendas com
baixíssima representação popular foram derrotadas. Não é à toa que partidos
minúsculos, como Rede (1 deputado), PV (6), PSOL (13) e Novo (3), estão entre
os recordistas de ações no Supremo.
No entanto, embora sempre se possa dizer que
o Supremo só reage quando provocado, o fato é que parte dos próprios ministros
considera sua obrigação tomar decisões em temas sobre os quais o Congresso
supostamente se omite. Esse ânimo legiferante do Supremo desconsidera que o
Congresso, quando se “omite”, está tomando uma decisão legitimamente
democrática.
“Não legislar também é dar uma resposta”,
disse corretamente o deputado Marcos Pereira (Republicanos-SP), vice-presidente
da Câmara, em recente programa Roda Viva, da TV Cultura. Citando a imensa
pluralidade que o Legislativo federal representa, o parlamentar sugeriu que há
temas espinhosos sobre os quais não há consenso possível neste momento, razão
pela qual não são levados a votação. Eventual falta de consenso não é
necessariamente uma omissão, mas sinal de que o assunto não tem apoio
parlamentar para ir adiante naquele momento.
Ademais, aconselha-se cuidado com o que se
deseja. Como bem lembrou o deputado, pesquisas indicam rejeição dos brasileiros
ao direito ao aborto – recente sondagem do Datafolha, por exemplo, indica que
52% dos entrevistados entendem que não cabe à mulher decidir sobre a
interrupção da gravidez. Ou seja: não é improvável que, se resolvesse “parar de
se omitir” e legislasse, o Congresso recrudescesse a legislação existente,
limitando ainda mais os excludentes de ilicitude nela previstos. Ou seja, a tal
“omissão” do Congresso sobre o tema não é rigorosamente um retrocesso, como
querem fazer crer alguns.
O deputado Pereira lembrou, ainda, que temas
que geram muito barulho nas redes sociais raramente chegam ao plenário. É o
caso do projeto de lei que tenta proibir a união homoafetiva, equiparada
juridicamente às uniões heterossexuais pelo STF há mais de 12 anos. A proposta,
debatida na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência
e Família da Câmara, tem baixíssima chance de avançar, disse o parlamentar.
“Não vejo, salvo melhor juízo, que esse tema tenha apoio da ampla maioria do
colégio de líderes”, afirmou Pereira.
Ou seja, a democracia tem seu tempo próprio
de avaliação dos grandes temas nacionais. Pode demorar mais do que desejam
aqueles que se julgam capazes de mudar o mundo numa sentença judicial, mas
certamente a decisão tomada por meio dos representantes do povo, se respeitada
a Constituição, terá sempre muito mais legitimidade.
A desaceleração asiática
O Estado de S. Paulo
A liberalização e a estabilidade regulatória
que viabilizariam o aproveitamento do potencial econômico da região são
incertas ante o crescente autoritarismo da China e da Índia
Por meio século o mundo testemunhou e seu
beneficiou do reposicionamento da Ásia como a “fábrica do mundo”, puxado,
primeiro, pelo Japão e, depois, pelos Tigres Asiáticos. O início do século 21
foi marcado pela ascensão da China, sem paralelo em termos quantitativos.
Agora, a Índia começa a decolar e é, das grandes economias, a que cresce mais
rapidamente. Mas as projeções do Banco Mundial confirmam uma desaceleração na
região que terá efeitos imediatos sobre o mundo e pode significar um ponto de
inflexão econômico e geopolítico.
Em 2023 e 2024, a economia da Ásia se
expandirá em uma das taxas mais baixas desde 1960. A desaceleração é puxada
pela maior economia da região, a da China, por uma série de fatores: uma
recuperação pós-pandêmica lenta, a crise do mercado imobiliário e as crescentes
tensões comerciais com os EUA. O Banco Mundial reviu a taxa de crescimento
chinesa para 2024 de 4,8%, em abril, para 4,4%. Para a Ásia como um todo, a
projeção caiu de 4,8% para 4,5%.
Fatores que determinaram as tendências de
crescimento de longo prazo ainda estão presentes: há um estoque de expertise e
recursos acumulados. O florescimento de classes consumidoras na região ainda
alimenta a tendência de crescimento. Há tempos as fábricas asiáticas deixaram
de meramente replicar a tecnologia ocidental e assumiram a vanguarda em muitas
frentes.
Mas as sequelas da pandemia e as tensões
entre EUA e China, com as consequentes reorientações de investimentos das
operações de multinacionais, forçando compradores e vendedores de tecnologias a
reconsiderar suas cadeias, podem aumentar os custos para todos, prejudicando o
crescimento asiático.
No caso da China, há fatores conjunturais
externos e internos, além dos desafios estruturais. As exportações de
manufaturados sofrem com a debilitação da demanda por causa das taxas de juros
empregadas pelas economias avançadas contra a inflação. A confiança do mercado
interno também está debilitada. A queda nos valores imobiliários, que deram
sustentação à economia chinesa por 20 anos, depreciou o patrimônio dos
proprietários, e os possíveis compradores estão em compasso de espera. O
desemprego entre os jovens também impacta a confiança na economia. As tensões
geopolíticas exacerbaram tendências intervencionistas de Xi Jinping,
especialmente salientes na ofensiva regulatória sobre empresas de tecnologia.
A economia indiana, por sua vez, segue em
aceleração, em parte se beneficiando de investimentos internacionais desviados
da China, em parte pelos investimentos do governo em infraestrutura. Mas o país
tem seus gargalos: uma governança corporativa débil e o favorecimento por parte
do governo de grandes conglomerados (os “campeões nacionais” indianos) ainda
refreiam o apetite dos investidores.
Tanto a retomada das taxas de crescimento
chinesas como a aceleração das taxas indianas exigem reparos nas políticas
econômicas. A Índia precisaria abraçar a competição doméstica e internacional,
fortalecendo instituições regulatórias e renunciando a seus instintos
protecionistas. A China precisa de estabilidade e clareza regulatória para
injetar confiança nos empreendedores. Para evitar uma crise da dívida, o Estado
poderia vender ativos à iniciativa privada. Mas são medidas que estão longe de
estar garantidas, dada a orientação política crescentemente autoritária de seus
governos.
Por razões não só econômicas, mas também
políticas, as democracias liberais asiáticas já buscam alternativas à
desaceleração do mercado chinês. Para o Brasil, ela também implica expectativas
de exportação mais moderadas a curto prazo, mas abre oportunidades a médio
prazo, ante a necessidade dos países desenvolvidos de deslocar cadeias de
fornecimento para países amistosos.
A Ásia ainda está longe de um ciclo de
estagnação e mais ainda de retração. Mas essa possibilidade já está no horizonte.
E é incerto se os governos dos dois grandes emergentes renunciarão às políticas
retrógradas que estão prejudicando seu potencial econômico ou se dobrarão a
aposta.
Nobel contra a tirania
O Estado de S. Paulo
Coragem de Narges Mohammadi, presa por lutar
contra a opressão da teocracia iraniana, é premiada
A ativista pelos direitos humanos Narges
Mohammadi não receberá presencialmente em Oslo, na Noruega, o Prêmio Nobel da
Paz que lhe foi outorgado neste ano por desafiar a teocracia do Irã.
Permanecerá,
sob possíveis represálias, entre os muros de
uma prisão no norte do país, onde está encarcerada para cumprir pena de mais de
três décadas. Da mesma masmorra, a engenheira iraniana notabilizou-se por sua
liderança dos protestos contra a opressão e a discriminação de mulheres em
setembro de 2022, respondidos com brutal repressão pelo regime dos aiatolás.
“Sua corajosa luta teve um tremendo custo
pessoal. No total, o regime a prendeu 13 vezes, a condenou em cinco ocasiões e
a sentenciou a um total de 31 anos de prisão e a 154 chibatadas”, afirmou Berit
Reiss-Andersen, presidente do Comitê Norueguês do Nobel.
A premiação da Fundação Nobel à dedicação e
resiliência de Mohammadi “no combate à opressão das iranianas e em sua luta
para promover os direitos humanos e a liberdade para todos” enfatiza a aversão
internacional a um regime que, há 44 anos, sobrevive graças ao autoritarismo e
à dura submissão da cidadania a códigos religiosos arcaicos e às suas
prioridades nada afeitas à paz no Oriente Médio. A honraria estendeu-se aos
milhares de mulheres e homens que se manifestaram no país, sob risco de morte e
de prisão, contra a morte da jovem curdo-iraniana Mahsa Amini, sob custódia da
polícia moral iraniana por não usar o véu conforme a lei.
Mohammadi, de 51 anos, atua há mais de três
décadas como uma das vozes em prol da democracia, dos direitos humanos e pelo
fim da pena de morte – condenação comumente aplicada no país contra opositores
políticos.
A escolha da Fundação Nobel pelo nome de
Mohammadi, entre outros 350 candidatos, dificilmente abalará as raízes
tirânicas de um Estado regido por uma matriz radical do islamismo. Tampouco
deverá conter o revanchismo de Teerã, acentuado sobretudo quando desafiado em
seu território ou no plano internacional desde a Revolução de 1979. Em
setembro, em reação às reivindicações ainda latentes do movimento “Mulheres,
Vida e Liberdade”, criado por Mohammadi, o regime recrudesceu as regras sobre o
vestuário feminino.
Ao anunciar a honraria, a Fundação Nobel e as
Nações Unidas apelaram a Teerã pela libertação de Mohammadi. O prêmio pode
garantir sua sobrevida. Mas sua liberação, mesmo para o encontro de sua família
no exílio, é considerada improvável.
Há 122 anos, o Nobel da Paz destaca o trabalho de forjadores de acordos de paz, ainda que relegados ao esquecimento, ativistas pelos direitos humanos, defensores de minorias e organizações humanitárias. É aguardado e reverenciado em um mundo ainda incapaz de prover garantias mínimas de vida e direitos elementares a boa parte de seus habitantes. Em 2023, ao escolher uma mulher presa e submetida a chibatadas pelo Irã, expõe a tirania como mais uma mazela a ser superada.
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