domingo, 8 de outubro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

A Carta democrática

Folha de S. Paulo

Constituição de 1988 consolidou liberdades e impulsionou resolução de problemas

A República brasileira nem sequer havia completado o primeiro centenário, em 5 de outubro de 1988, quando uma assembleia de representantes eleitos da população promulgou a sexta Constituição do regime. Não era mais do mesmo.

Sobre as ruínas da ditadura encerrada três anos antes, um documento generoso, gestado num processo de frenética participação da sociedade, lançava as bases para o soerguimento de uma democracia vibrante e fechava definitivamente as portas para o autoritarismo.

Carta completou 35 anos demonstrando esse vigor. Derrotou uma a uma todas as investidas contra a institucionalidade de um presidente tosco, com seu séquito de nostálgicos da tirania. Estão sendo devidamente julgados e condenados os vândalos que promoveram a baderna de 8 de janeiro.

Defeitos pontuais nos mecanismos de controle do abuso de poder, como a timorata conduta do procurador-geral da República, não comprometeram o conjunto. A legalidade prevaleceu sobejamente.

As liberdades civis estão garantidas, a expressão é livre, e as eleições, rotineiras como a sucessão das estações, decretam com rapidez e segurança os resultados e promovem alternância no Legislativo e no Executivo, em municípios, nos estados e no âmbito federal.

Já no domínio econômico, o que foi escrito pelos constituintes não teve o mesmo visionarismo nem a mesma longevidade. O intervencionismo antiquado e o detalhismo cartorial dos estatutos exigiram décadas de reformas para que o país se modernizasse minimamente.

Não foi de todo desfeito o legado de que basta escrever uma boa intenção na Constituição para que a realidade se transforme. Essa imaturidade despreza os custos para o pagador de impostos e os efeitos econômicos das medidas.

A ambição da Carta de 1988 de equiparar as condições de disputa entre ricos e pobres —o que requer qualificar a educação, a saúde, a infraestrutura e o seguro de renda oferecidos à maioria dos brasileiros— tem sido obstaculizada pela predação praticada por oligarquias nos orçamentos públicos.

O debate da reforma tributária escancara o velho hábito de grupos de elite de invocar uma peculiaridade qualquer em sua atividade para obter privilégios à custa da maioria sem lobby. A dificuldade de cortar gasto público e concentrá-lo em programas eficazes e emancipatórios é outro indício de que ainda viceja o extrativismo.

Mas a geração atual de brasileiros, à diferença das que viveram no conturbado passado da República, tomou em suas mãos o destino do país e empunha as ferramentas —a começar da Carta democrática de 1988— para desobstruir o caminho da prosperidade.

Presos demais

Folha de S. Paulo

Canetada do STF não humanizará cárceres, mas Poderes devem rever leis e práticas

Que o Brasil prende muito e mal já se sabe: hoje o país conta com a maior população carcerária de sua história, de 832,3 mil detentos ao final de 2022, segundo dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Trata-se de aumento de 257% desde 2000, com o déficit de vagas passando de 230 mil.

Tortura, maus-tratos e prisões de pessoas inocentes ou por crimes banais são episódios recorrentes. Politicamente, porém, não se vê inclinação a enfrentar o encarceramento excessivo no país.

Na quarta-feira (3), o Supremo Tribunal Federal decidiu, com base em tese elaborada por seu atual presidente, ministro Luís Roberto Barroso, que a União, primeiro, e os governos estaduais precisam apresentar planos para enfrentar os múltiplos problemas do sistema penitenciário brasileiro, a serem homologados pela corte e depois monitorados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

É muito improvável, no entanto, que uma canetada do STF seja capaz de promover alterações significativas. Há resistência entre governantes e legisladores a alternativas que não sejam meramente paliativas, como o aumento de vagas nos presídios.

É necessário, primordialmente, reduzir a população prisional com especial foco em crimes não violentos e sem relação com organizações criminosas. Encarcerar aos montes e em condições subumanas não traz benefício para a sociedade —pelo contrário.

A maioria dos presos por tráfico de drogas, por exemplo, não tem relação com facções do crime, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

A ex-ministra Rosa Weber, em sua última sessão no CNJ, divulgou que o órgão liberou mais de 22 mil presos de forma indevida no país. Embora haja a obrigação de realização de audiências de custódia após a detenção, falta estrutura e sobra resistência no Judiciário.

Uma das medidas urgentes é rever a Lei de Drogas, em debate hoje no Supremo. O tema deveria ser tratado, preferencialmente, pelo Congresso. Infelizmente, o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), apresentou uma proposta de emenda à Constituição para, de forma reacionária, criminalizar o porte e a posse de drogas em qualquer quantidade.

Se o STF deve se abster de legislar sobre o tema, os dois Poderes deveriam trabalhar em busca de soluções alternativas, em que a prisão seja exceção, não a regra.

Superlotação de presídios exige ação conjunta

O Globo

Supremo deu primeiro passo ao cobrar planos para acabar com o ‘estado de coisas inconstitucional’

O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, por unanimidade, o prazo de seis meses para o governo federal, governos estaduais e do Distrito Federal apresentarem planos para superar o “estado de coisas inconstitucional” no sistema carcerário. Nas cadeias brasileiras, a regra é a violação maciça de direitos fundamentais, provocada por superlotação, condições precárias de sobrevivência e ação de facções criminosas. Os planos deverão ser homologados pelo Supremo e implementados em três anos. A Corte também ordenou que juízes e tribunais realizem audiências de custódia e, ao optarem por não aplicar medidas cautelares ou penas alternativas à prisão, que suas decisões sejam mais fundamentadas do que têm sido.

Problemas da repressão à criminalidade no Brasil se refletem nas prisões. Por deficiência da polícia, criminosos perigosos estão soltos. A taxa de solução de homicídios, por volta de 35%, é baixa. Nos Estados Unidos, onde caiu nos últimos dez anos, é 54%. Na Alemanha, há décadas é superior a 90%. Ineficaz para prender assassinos, o sistema brasileiro de repressão põe atrás das grades milhares de acusados por pequenos crimes. Quase três em cada cinco detidos por tráfico de maconha são presos com menos de 150 gramas, revelou estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

O influxo de envolvidos em casos de baixa periculosidade, aliado à morosidade da Justiça, tem resultado previsível. Com a sétima maior população do planeta, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, 650 mil detentos, segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) noticiados em reportagem do GLOBO. No último levantamento oficial, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), eram perto de 670 mil, dos quais 203 mil, ou 30%, estavam presos provisoriamente, ainda aguardando julgamento. O abuso das prisões provisórias resulta de uma legislação penal ineficaz para julgar, absolver ou punir os acusados em prazos razoáveis.

Depois de um período de estabilidade nos anos 2000, quando a população carcerária girava em torno dos 230 mil, houve um salto. Em meados de 2014, atingiu 607 mil. De lá para cá, o percentual de presos provisórios não sofreu a redução esperada, nem após a entrada em vigor da nova lei que ofereceu outras possibilidades de medidas cautelares, como monitoramento eletrônico.

O resultado é superlotação contínua em vários presídios. No Tiago Teles de Castro Domingues, em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio, 1.855 presos estão num espaço com vaga para 640. No Inspetor José Martinho Drumond, em Minas Gerais, são 2.554 detentos onde há 1.047 vagas. Presídios com mais detentos que a capacidade facilitam o trabalho de recrutamento de facções, que alegam defender os direitos dos presidiários. A carência de direitos humanos realimenta a criminalidade.

A decisão do STF, provocada por uma ação do PSOL, não pretende trazer uma solução definitiva — nem poderia. Ao final do julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso, novo presidente da Corte, reconheceu que o tema é de difícil solução. “Espero que este seja um passo relevante para melhorar, minimamente que seja, as condições degradantes do sistema prisional brasileiro”, afirmou. É esse o desafio da União, dos governos locais e da Justiça.

Recuperação pós-pandemia traz nova oportunidade para turismo no Brasil

O Globo

Apesar de sofrer com qualidade de serviços e violência, setor ganha com retomada das viagens internacionais

Passada a pandemia, o Brasil já se beneficia da tendência mundial de retomada nas viagens a lazer e avança na captação de divisas trazidas pelos turistas. De janeiro a agosto, mesmo com um fluxo de visitantes ainda aquém do verificado antes do coronavírus, o turismo externo injetou no país US$ 4,45 bilhões. Os US$ 657 milhões deixados por estrangeiros em agosto foram o melhor resultado para o mês em 28 anos, desde que o Banco Central passou a acompanhar o fluxo de divisas de viagens internacionais.

“O Brasil voltou à prateleira”, diz o presidente da Embratur, Marcelo Freixo. Ele destaca a reconexão do país com seus grandes mercados de turistas estrangeiros — América Latina, Estados Unidos e Europa. Quem é do ramo sabe que, mesmo com todas as belezas naturais e atrativos culturais, o Brasil ainda atrai um número reduzido de visitantes. O potencial do turismo externo está longe de ser explorado como deveria. A imagem do país continua a ser afetada por fatores como a baixa qualidade dos serviços ou o recrudescimento da violência, que continua a afastar turistas.

Ainda assim, nos oito primeiros meses do ano, o país recebeu 4 milhões de visitantes, 11% a mais que os 3,6 milhões do ano passado. Em 2019, antes da pandemia, haviam sido 6,4 milhões. Para perceber como isso é pouco, nem é preciso fazer comparações com os maiores polos turísticos, como Estados Unidos ou França. O Brasil recebe menos da metade dos turistas que visitam apenas a cidade inca de Machu Picchu, no Peru, de acordo com Cesar Fernandes, presidente da Associação Brasileira de Turismo Receptivo (Recept).

A Grécia acolhe 30 milhões de visitantes por ano, o triplo da população. Ir a Atenas e visitar ilhas gregas serve de aprendizado a qualquer operador turístico. Em pouco tempo contrata-se a viagem, aluga-se carro no destino, remarcam-se voos para qualquer lugar do mundo. Há uma azeitada indústria em funcionamento.

As dimensões ainda acanhadas do setor no Brasil são indicador do potencial de crescimento. “Há enorme demanda por lazer, experiência e novos destinos no pós-pandemia”, diz Alexandre Sampaio, presidente da Federação Brasileira de Hospedagem e Alimentação. “O Brasil é competitivo, com oferta de voos e câmbio favorável. Hotéis que investiram em modernização estão surfando esta onda. Já vemos hotéis e resorts anunciando expansões no Nordeste, em Minas Gerais e mesmo no interior do Rio.”

Há pouco, a pedido do Rio, o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) autorizou governos estaduais a devolver o ICMS a turistas que fazem compras no país, o “tax refund” tão comum no exterior. É um bom exemplo da necessidade de conexão entre o setor privado e o público. O Estado também precisa encarar como prioridade a segurança pública, de modo a reverter a imagem deteriorada do Brasil. Se cada um fizer a sua parte, e os turistas sentirem vontade de voltar, o país poderá contar com mais uma importante fonte de divisas além do agronegócio. Não há motivo para que não seja assim.

A legitimidade da ‘omissão’ do Congresso

O Estado de S. Paulo

Em temas controversos, a omissão do Congresso não é exatamente uma omissão. Ela expressa a vontade política da sociedade. Cabe a todos, também ao Supremo, respeitar essa vontade

O embate entre o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito de temas controversos resgatou a discussão sobre as prerrogativas de cada um dos Poderes. Como se sabe, o Legislativo deve elaborar as leis que regulam a vida em sociedade, enquanto à Justiça cabe interpretá-las e aplicá-las, mas esses conceitos básicos não são suficientes para explicar o tênue e complexo equilíbrio da relação entre os Poderes.

Cresce no Congresso – e na sociedade – a sensação de que o Supremo assumiu competências próprias do Legislativo, sobretudo ao se dispor a regular temas que deveriam ser discutidos entre representantes eleitos pelo povo, e não por juízes. É o caso, por exemplo, do avanço do debate sobre o aborto, em que a então ministra Rosa Weber votou pela descriminalização do procedimento até a 12.ª semana de gestação. Se a tese prosperar depois dos votos dos demais ministros, o tipo penal do aborto será completamente modificado pelo Judiciário, algo que apenas o Legislativo poderia fazer. O mesmo pode ocorrer se o STF, a pretexto de corrigir interpretações equivocadas do próprio Judiciário, se dispuser a redigir uma nova legislação antidrogas, o que só cabe ao Legislativo.

Esse ativismo judicial é, em boa medida, alimentado por partidos sem capacidade de vencer o debate democrático no Congresso. O mecanismo constitucional que permite a minorias buscar no Supremo a proteção de direitos supostamente violados por leis aprovadas no Congresso tornou-se, na prática, o terceiro turno de votações em que legendas com baixíssima representação popular foram derrotadas. Não é à toa que partidos minúsculos, como Rede (1 deputado), PV (6), PSOL (13) e Novo (3), estão entre os recordistas de ações no Supremo.

No entanto, embora sempre se possa dizer que o Supremo só reage quando provocado, o fato é que parte dos próprios ministros considera sua obrigação tomar decisões em temas sobre os quais o Congresso supostamente se omite. Esse ânimo legiferante do Supremo desconsidera que o Congresso, quando se “omite”, está tomando uma decisão legitimamente democrática.

“Não legislar também é dar uma resposta”, disse corretamente o deputado Marcos Pereira (Republicanos-SP), vice-presidente da Câmara, em recente programa Roda Viva, da TV Cultura. Citando a imensa pluralidade que o Legislativo federal representa, o parlamentar sugeriu que há temas espinhosos sobre os quais não há consenso possível neste momento, razão pela qual não são levados a votação. Eventual falta de consenso não é necessariamente uma omissão, mas sinal de que o assunto não tem apoio parlamentar para ir adiante naquele momento.

Ademais, aconselha-se cuidado com o que se deseja. Como bem lembrou o deputado, pesquisas indicam rejeição dos brasileiros ao direito ao aborto – recente sondagem do Datafolha, por exemplo, indica que 52% dos entrevistados entendem que não cabe à mulher decidir sobre a interrupção da gravidez. Ou seja: não é improvável que, se resolvesse “parar de se omitir” e legislasse, o Congresso recrudescesse a legislação existente, limitando ainda mais os excludentes de ilicitude nela previstos. Ou seja, a tal “omissão” do Congresso sobre o tema não é rigorosamente um retrocesso, como querem fazer crer alguns.

O deputado Pereira lembrou, ainda, que temas que geram muito barulho nas redes sociais raramente chegam ao plenário. É o caso do projeto de lei que tenta proibir a união homoafetiva, equiparada juridicamente às uniões heterossexuais pelo STF há mais de 12 anos. A proposta, debatida na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara, tem baixíssima chance de avançar, disse o parlamentar. “Não vejo, salvo melhor juízo, que esse tema tenha apoio da ampla maioria do colégio de líderes”, afirmou Pereira.

Ou seja, a democracia tem seu tempo próprio de avaliação dos grandes temas nacionais. Pode demorar mais do que desejam aqueles que se julgam capazes de mudar o mundo numa sentença judicial, mas certamente a decisão tomada por meio dos representantes do povo, se respeitada a Constituição, terá sempre muito mais legitimidade.

A desaceleração asiática

O Estado de S. Paulo

A liberalização e a estabilidade regulatória que viabilizariam o aproveitamento do potencial econômico da região são incertas ante o crescente autoritarismo da China e da Índia

Por meio século o mundo testemunhou e seu beneficiou do reposicionamento da Ásia como a “fábrica do mundo”, puxado, primeiro, pelo Japão e, depois, pelos Tigres Asiáticos. O início do século 21 foi marcado pela ascensão da China, sem paralelo em termos quantitativos. Agora, a Índia começa a decolar e é, das grandes economias, a que cresce mais rapidamente. Mas as projeções do Banco Mundial confirmam uma desaceleração na região que terá efeitos imediatos sobre o mundo e pode significar um ponto de inflexão econômico e geopolítico.

Em 2023 e 2024, a economia da Ásia se expandirá em uma das taxas mais baixas desde 1960. A desaceleração é puxada pela maior economia da região, a da China, por uma série de fatores: uma recuperação pós-pandêmica lenta, a crise do mercado imobiliário e as crescentes tensões comerciais com os EUA. O Banco Mundial reviu a taxa de crescimento chinesa para 2024 de 4,8%, em abril, para 4,4%. Para a Ásia como um todo, a projeção caiu de 4,8% para 4,5%.

Fatores que determinaram as tendências de crescimento de longo prazo ainda estão presentes: há um estoque de expertise e recursos acumulados. O florescimento de classes consumidoras na região ainda alimenta a tendência de crescimento. Há tempos as fábricas asiáticas deixaram de meramente replicar a tecnologia ocidental e assumiram a vanguarda em muitas frentes.

Mas as sequelas da pandemia e as tensões entre EUA e China, com as consequentes reorientações de investimentos das operações de multinacionais, forçando compradores e vendedores de tecnologias a reconsiderar suas cadeias, podem aumentar os custos para todos, prejudicando o crescimento asiático.

No caso da China, há fatores conjunturais externos e internos, além dos desafios estruturais. As exportações de manufaturados sofrem com a debilitação da demanda por causa das taxas de juros empregadas pelas economias avançadas contra a inflação. A confiança do mercado interno também está debilitada. A queda nos valores imobiliários, que deram sustentação à economia chinesa por 20 anos, depreciou o patrimônio dos proprietários, e os possíveis compradores estão em compasso de espera. O desemprego entre os jovens também impacta a confiança na economia. As tensões geopolíticas exacerbaram tendências intervencionistas de Xi Jinping, especialmente salientes na ofensiva regulatória sobre empresas de tecnologia.

A economia indiana, por sua vez, segue em aceleração, em parte se beneficiando de investimentos internacionais desviados da China, em parte pelos investimentos do governo em infraestrutura. Mas o país tem seus gargalos: uma governança corporativa débil e o favorecimento por parte do governo de grandes conglomerados (os “campeões nacionais” indianos) ainda refreiam o apetite dos investidores.

Tanto a retomada das taxas de crescimento chinesas como a aceleração das taxas indianas exigem reparos nas políticas econômicas. A Índia precisaria abraçar a competição doméstica e internacional, fortalecendo instituições regulatórias e renunciando a seus instintos protecionistas. A China precisa de estabilidade e clareza regulatória para injetar confiança nos empreendedores. Para evitar uma crise da dívida, o Estado poderia vender ativos à iniciativa privada. Mas são medidas que estão longe de estar garantidas, dada a orientação política crescentemente autoritária de seus governos.

Por razões não só econômicas, mas também políticas, as democracias liberais asiáticas já buscam alternativas à desaceleração do mercado chinês. Para o Brasil, ela também implica expectativas de exportação mais moderadas a curto prazo, mas abre oportunidades a médio prazo, ante a necessidade dos países desenvolvidos de deslocar cadeias de fornecimento para países amistosos.

A Ásia ainda está longe de um ciclo de estagnação e mais ainda de retração. Mas essa possibilidade já está no horizonte. E é incerto se os governos dos dois grandes emergentes renunciarão às políticas retrógradas que estão prejudicando seu potencial econômico ou se dobrarão a aposta.

Nobel contra a tirania

O Estado de S. Paulo

Coragem de Narges Mohammadi, presa por lutar contra a opressão da teocracia iraniana, é premiada

A ativista pelos direitos humanos Narges Mohammadi não receberá presencialmente em Oslo, na Noruega, o Prêmio Nobel da Paz que lhe foi outorgado neste ano por desafiar a teocracia do Irã. Permanecerá,

sob possíveis represálias, entre os muros de uma prisão no norte do país, onde está encarcerada para cumprir pena de mais de três décadas. Da mesma masmorra, a engenheira iraniana notabilizou-se por sua liderança dos protestos contra a opressão e a discriminação de mulheres em setembro de 2022, respondidos com brutal repressão pelo regime dos aiatolás.

“Sua corajosa luta teve um tremendo custo pessoal. No total, o regime a prendeu 13 vezes, a condenou em cinco ocasiões e a sentenciou a um total de 31 anos de prisão e a 154 chibatadas”, afirmou Berit Reiss-Andersen, presidente do Comitê Norueguês do Nobel.

A premiação da Fundação Nobel à dedicação e resiliência de Mohammadi “no combate à opressão das iranianas e em sua luta para promover os direitos humanos e a liberdade para todos” enfatiza a aversão internacional a um regime que, há 44 anos, sobrevive graças ao autoritarismo e à dura submissão da cidadania a códigos religiosos arcaicos e às suas prioridades nada afeitas à paz no Oriente Médio. A honraria estendeu-se aos milhares de mulheres e homens que se manifestaram no país, sob risco de morte e de prisão, contra a morte da jovem curdo-iraniana Mahsa Amini, sob custódia da polícia moral iraniana por não usar o véu conforme a lei.

Mohammadi, de 51 anos, atua há mais de três décadas como uma das vozes em prol da democracia, dos direitos humanos e pelo fim da pena de morte – condenação comumente aplicada no país contra opositores políticos.

A escolha da Fundação Nobel pelo nome de Mohammadi, entre outros 350 candidatos, dificilmente abalará as raízes tirânicas de um Estado regido por uma matriz radical do islamismo. Tampouco deverá conter o revanchismo de Teerã, acentuado sobretudo quando desafiado em seu território ou no plano internacional desde a Revolução de 1979. Em setembro, em reação às reivindicações ainda latentes do movimento “Mulheres, Vida e Liberdade”, criado por Mohammadi, o regime recrudesceu as regras sobre o vestuário feminino.

Ao anunciar a honraria, a Fundação Nobel e as Nações Unidas apelaram a Teerã pela libertação de Mohammadi. O prêmio pode garantir sua sobrevida. Mas sua liberação, mesmo para o encontro de sua família no exílio, é considerada improvável.

Há 122 anos, o Nobel da Paz destaca o trabalho de forjadores de acordos de paz, ainda que relegados ao esquecimento, ativistas pelos direitos humanos, defensores de minorias e organizações humanitárias. É aguardado e reverenciado em um mundo ainda incapaz de prover garantias mínimas de vida e direitos elementares a boa parte de seus habitantes. Em 2023, ao escolher uma mulher presa e submetida a chibatadas pelo Irã, expõe a tirania como mais uma mazela a ser superada.

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