domingo, 8 de outubro de 2023

Míriam Leitão - O que dizem os rios da Amazônia

O Globo

Na semana em que o líder indígena Ailton Krenak foi eleito para a ABL, os rios da Amazônia celebrados por ele nos livros padecem com a seca intensa

O professor José Marengo, do Cemaden, avisa que ainda não é seca na Amazônia. Estamos na primavera, a estação de transição. Só será seca se não chover a partir do fim deste mês, que é o começo da estação chuvosa. Ou seja, temos meses perigosos à frente. A ministra Marina Silva, que foi a Manaus, conta que, dos 62 municípios do Amazonas, 50 só são interligados por rios e hoje estão isolados, porque os rios secaram. No seu livro “Futuro ancestral”, o escritor e filósofo Ailton Krenak alertou: “Vamos ouvir a voz dos rios, porque os rios falam”. O que estão nos dizendo os rios da Amazônia?

— É uma cena apocalíptica. Você olha para os rios tão caudalosos, potentes e vê aquelas áreas secas, um monte de barco encalhado. Uma imensidão de peixes mortos flutuando ou morrendo. Quase todos os municípios da Amazônia em estado de emergência. A hidrelétrica de Santo Antônio parada. O Acre e Rondônia vivendo problemas semelhantes — descreve a ministra.

O cientista Marengo explica que o El Niño, um fenômeno que sempre aconteceu, está muito forte este ano. Ao mesmo tempo, há o efeito do aquecimento dos oceanos Atlântico e Pacífico, decorrente das mudanças climáticas.

— Todas as forças estão se juntando numa tempestade perfeita — diz Marengo.

O diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Jair Schmitt, explica que houve um aumento do desmatamento no final do ano passado.

— Dois fatores alimentaram os incêndios florestais na Amazônia e em parte do Cerrado. Um é o El Niño mais seco. Outro é que no final do ano passado houve um pico de desmatamento. É como se o pessoal dissesse ‘é fim de feira, vamos desmatar o que dá porque vai mudar o governo’. De agosto a dezembro, pelos dados do INPE, houve um crescimento de 54% de áreas desmatadas. Tem agora esse acúmulo de matéria orgânica seca, e eles botam fogo — disse Schmitt.

“O que estamos fazendo ao sujar as águas que existem há 2 bilhões de anos é acabar com a nossa própria existência”, alerta o filósofo Ailton Krenak.

Schmitt diz que, apesar de todo o fogo, o que está acontecendo é menos do que houve no ano passado. Quando o entrevistei, ele tinha acabado de falar com o governo do Amazonas informando que enviaria material pedido para o combate dos incêndios. Até recentemente o estado do Amazonas nem tinha brigadistas. Anos alguns anos atrás era um estado preservado, mas houve um aumento grande do ritmo de destruição, principalmente no sul do estado, em cidades como Lábrea, Apuí, Novo Aripuanã. Em Humaitá, há a conexão da Transamazônica com a BR-319 que querem asfaltar, e, por isso, a grilagem aumenta.

—Lá é o clássico, grandes áreas desmatadas e o fogo para ‘limpar’ o terreno e depois transformar em pastagens — explica.

Marengo conta que havia falado com técnicos do governo sobre a morte do botos. Peixes morreram em outras secas, mas esta vez é pior.

—Estava conversando com o pessoal do ICMBio e do Ministério do Meio Ambiente sobre os mais de 100 botos cor-de-rosa mortos. Havia dúvida se era o calor ou o mercúrio. Tudo indica que é estresse térmico. Os rios estão muito baixos, as águas quentes e com pouco oxigênio e eles morrem por isso. O calor também evapora as águas dos rios.

Krenak, no seu livro “Futuro ancestral”, descreve os rios amazônicos como eles são, como deveriam sempre ser. “Ele ( o Amazonas) carrega muitos outros rios, mas também a água que a própria floresta dá para as nuvens, e que a chuva devolve para a terra, nesse ciclo maravilhoso em que as águas dos rios são as do céu e as águas do céu são as dos rios. Xingu, Amazonas, Rio Negro, Solimões”.

O Ministério do Meio Ambiente, na sexta-feira, divulgou que em setembro houve uma queda de 49,5% do desmatamento na Amazônia, mas ao mesmo tempo um aumento de 27% do desmatamento no Cerrado.

— Teremos um grave problema de escassez de chuva se destruirmos o Cerrado— alerta Marina Silva.

Na semana em que vimos peixes e botos mortos, rios amazônicos secos, cenas que lembravam uma ficção distópica, o escritor e líder indígena Ailton Krenak foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. O seu Watu, que chamamos Rio Doce, foi atacado diretamente pela mineração e quase morreu. Ele sabe o que diz quando avisa.“Sempre estivemos perto da água, mas parece que aprendemos muito pouco com a fala dos rios”.

 

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