Folha de S. Paulo
Bethânia cantou com carga simbólica à altura
do momento que o Supremo atravessa
É clichê passável dizer que o hino nacional
foi "executado" numa cerimônia. Mas seria desdizer o que fez Maria
Bethânia, acompanhada de violão, na posse do presidente do Supremo Tribunal
Federal. Não é a primeira cantora de grande mérito a cumprir a tarefa. Pela
primeira vez, porém, o STF acolhe uma performance com carga simbólica à altura
do momento que atravessa essa instituição. Não mera execução, mas expressão de
uma vitalidade popular que, naquele ato, marcou encontro com o tribunal.
Essa vitalidade ratifica a ideia de povo como forma dinâmica: tornar-se, mais do que ser, ou seja, um processo político que produz seu próprio sujeito. Povo é o princípio que transforma a população (gente agregada) em sujeito de soberania ou de uma determinada autonomia frente ao Estado. A verdadeira política não prescinde de um sujeito coletivo. E povo afirma-se como forma coletiva de subjetivação.
Evidente que esse não é o ponto de vista
neoliberal, para o qual a massa não é sujeito nem objeto político, e sim efeito
estatístico do mercado. Daí emergiu, nos quatro anos do balão de ensaio
protofascista, uma faceta embrionária do populacho: figuração pré-política
movida a ressentimento. Agitou a cena eleitoral, sem afetar as formas diversas
de subjetivação que singularizam a civilização brasileira: negros, indígenas,
camponeses, ribeirinhos, caboclos, brancos e 305 povos originários com 274
línguas.
Apesar da composição conservadora e do
voluntarismo monocrático, o STF desenha-se como trincheira civilizatória.
Pertence à boa memória nacional o Relatório Lewandowski, mais avançado na pauta
identitária do que, na época, a imprensa, nichos acadêmicos e um estapafúrdio
manifesto de "moscas varejeiras" gramscianas.
Atenção, porém, ao discurso público. Disse o
presidente da corte que "derrotamos o bolsonarismo". Menos, menos,
nada de jogo jogado. O espectro do proscrito ainda baliza o fenômeno
extremista, visceral numa parte morbosa do corpo orgânico da nação. Disso há
sequela dentro do próprio tribunal: o carrego de paus-mandados, plantado pela
entidade obsessora que partiu. Ali não cresce grama progressista, ali não terão
soado aplausos sinceros a Maria Bethânia.
Escandindo sílabas em ritmo pausado, avesso
ao tararatchimbum dos brucutus, a artista interpretou o hino, chamando a
atenção para o que possa haver de sentido aberto nos versos e dar espaço
interno a outras entoações. A memória da voz que arrebatou plateias jovens com
"Carcará" repercutiu na terceira idade do tribunal e no povo das
margens plácidas: um alegre alento à persistente "esperança
equilibrista" (João & Aldir) de melhores dias nacionais. "Fagulha
divina", bem disse o ministro.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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