domingo, 30 de novembro de 2008

O desafio americano


Lourdes Sola
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

“O que faz da economia política economia política é a política”
(Hurrell)


“A América Latina é o Extremo Ocidente”
(Rouquié)


Diante de uma crise financeira global, do mundo desenvolvido em recessão, a capacidade do capitalismo para se auto-reformar é mais uma vez posta à prova. Nessas conjunturas críticas, a tomada de decisões faz-se num contexto político instável e movediço, em meio a névoas, como na guerra. Alguns momentos condensam o que é essencial e específico a cada crise, com deslocamentos ideológicos e mudanças na equação entre Estado e mercado - pois os governos tomam a dianteira em nome do interesse público. Mas, quando os desafios são globais, como hoje, quem define interesse público e em nome do quê? E mais, como construir consensos? É mais fácil encaminhar essas questões no espaço dos Estados nacionais, no contexto democrático maduro das democracias dominantes.

A eleição de Barack Obama nos Estados Unidos repõe essas questões em outros termos: teremos a oportunidade histórica de assistir à transformação de um político excepcional num estadista global? Pois é essa a escala dos desafios, enunciada no discurso da vitória: “Uma crise, um mundo em perigo (mudança climática), duas guerras.” A escala global é uma das diferenças com relação aos desafios confrontados por Franklin D. Roosevelt, na esteira da Grande Depressão. A outra é a seqüência de prioridades, pois, com desafios simultâneos, a opção de entrar na guerra depois de lançadas as bases políticas domésticas de um novo paradigma socioeconômico como o New Deal não existe para Obama.

A amplitude e a simultaneidade desses desafios vieram à tona de forma condensada em novembro. Em três fronts. Um: os temores políticos que uma longa depressão nos Estados Unidos reativou nos circuitos liberais, provocando deslocamentos ideológicos surpreendentes na imprensa especializada. Dois: a preeminência de temas político-econômicos no documento oficial do G-20, antes circunscritos ao espaço das democracias liberais dominantes. Três: os ataques terroristas ao centro financeiro e turístico de Mumbai, na Índia - a democracia de mercado mais antiga entre os novos emergentes. Limito-me aos dois primeiros.

Diante das cifras que reativaram os temores de deflação nos Estados Unidos, do pânico nos mercados, de mais 8 milhões de desempregados até 2010, elevando para 42 milhões esse número nos países da OCDE, o Financial Times (FT) fez soar o alarme. A defesa de um novo marco regulatório para os mercados financeiros, postulada há meses também pela The Economist e por alguns investidores, como George Soros, converteu-se em ultimato aos governos e aos bancos (FT, 21/11). Nesse dia, o editor econômico, Martin Wolf, defendia a tese de que, em contrapartida à recapitalização, “os bancos devem ser forçados a emprestar”. Dois editoriais com o mesmo título anunciavam que Os bancos devem emprestar ou então..., apontando o risco de uma estatização mais radical. Em outros tempos, isso soaria como um surto esquerdista-populista inexplicável no campo liberal. A motivação imediata? A catástrofe política e social de uma decantação dos excessos do capitalismo através de uma depressão. A inspiração mais remota? A mesma de Keynes, cujo impulso transformador se alimentou no terroir do liberalismo político, na busca de saídas econômicas para surfar entre nazismo e fascismo.

Dias antes, a cúpula do G-20 demarcava um outro espaço de convergência: a defesa formal do livre comércio por um grupo de países integrado por emergentes com maior poder de barganha. A motivação imediata - de exorcizar o espectro dos protecionismos predatórios, como nos anos 30 - não deve obscurecer seu duplo significado histórico. Por um lado, um deslocamento ideológico, pois a defesa do livre comércio é inédita em países propícios ao dirigismo e a nacionalismos defensivos ante a globalização. Por outro, a cúpula convocada por Washington aponta para uma oportunidade inédita. A inclusão (ainda que seletiva e subalterna) de emergentes numa arena decisória global pode facilitar a construção de instituições internacionais que deverão redefinir os padrões de governança global em bases mais representativas.

É contra esse pano de fundo que se situa o desafio maior do governo Obama, para além daquele demarcado pelo espaço nacional. É obrigado a operar sob as duas constrições que limitam a ação dos Estados Unidos enquanto superpotência liberal - depois da aventura unilateral de George W. Bush. Primeira: opera num espaço multipolar incompleto. A multipolaridade vige no plano econômico e geopolítico, mas não se traduz em ação estratégica compatível com critérios de governança global acordados. Tampouco há igualdade entre os “pólos”, em termos de recursos estratégicos ou de credenciais políticas e autoridade moral para tanto. A pergunta é: quem lidera e quem cria consensos em torno do que seja interesse público nesse espaço? Daí a segunda constrição: a questão democrática - que é parte do sistema de valores e do modo de fazer política da democracia mais antiga do mundo, os Estados Unidos, e parte do seu arsenal de soft power. O interesse pela disputa eleitoral nos quatro cantos do mundo sugere que o gênio da democracia escapou da garrafa. A pergunta em aberto é se o presidente eleito colocará ou não os Estados Unidos no topo do movimento reformista numa nova ordem global, mais democrática.

O nosso desafio? A centralidade da questão democrática impede alinhamentos automáticos. Mas não se atribua ao capitalismo a responsabilidade pela maximização do bem comum - que corresponde a outra lógica, a da democracia.

Lourdes Sola, professora da USP, presidente da Associação Internacional de Ciência Política, da diretoria do Global Development Network e do Internacional Institute for Democracy and Electoral Assistance (Idea)

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