domingo, 11 de janeiro de 2009

A difícil acomodação dos poderes

Renato Lessa*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Antes de retaliar o Judiciário, Legislativo precisa levar mais a sério seu próprio papel representativo

Salvos melhores juízo e memória, a eliminação da vitaliciedade dos juízes do Supremo Tribunal Federal não chegou a ser veiculada pelos liberticidas que nos governaram entre 1964 e 1985. É certo que cogitaram - e praticaram - cassações e aposentadorias, na cândida suposição de que ao fazê-lo atingiam antes pessoas julgadas indesejáveis e não a instituição. Vitimaram assim, com a truculência que os caracterizou, gente do calibre de Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal. Não me parece que o Supremo e o País tenham melhorado com a liberal iniciativa.

Décadas mais tarde e em plena vigência de liberdades nunca antes vividas neste País, para usar o idioma do autoencantamento histórico, o tema da vitaliciedade dos juízes do Supremo volta à baila. Desta feita, em um quadro que sugere retaliação contra o que parlamentares percebem como excessos legiferantes do Judiciário e de sua tutela sobre o campo da política. A suposta necessidade de “enquadramento” dos tribunais, afirmada por diversos parlamentares, associa-se, ainda, à grita ritual e habitual dos candidatos à presidência da Câmara contra o despotismo do Poder Executivo, exercido por meio de, mais uma vez, excessos na edição de medidas provisórias e de suas prerrogativas legislativas especiais.

Os sinais de intenção de enquadramento dos magistrados aparecem em duas propostas: estabelecer um mandato de 11 anos para os juízes do Supremo e fixar um limite de oito meses para decisão da Justiça Eleitoral em processos sob sua jurisdição.

Em entrevista concedida ao Estado, o proponente da primeira medida - deputado Flávio Dino (PC do B-MA) - adiciona à proposta considerações doutrinárias e não-conjunturais. A necessidade do mandato seria decorrente do fato de que o Supremo não mais exerce um papel “técnico” e sim de natureza cada vez mais “política”, o que traria como corolário, a seu juízo, a necessidade de fixação de mandatos. Em outro momento da entrevista, o deputado toca em um ponto procedente: o da necessidade de fazer do Supremo uma corte constitucional, sem competências criminais. Isso corresponde ao espírito da Constituição e faz do Supremo uma corte eminentemente política. O ponto procede e se as coisas assim fossem, o presidente de um dos poderes da República teria sido poupado de constrangimentos recentes.

Bases doutrinárias à parte, há dois planos a considerar para interpretar o quiproquó: o da pequena política e o da ordem constitucional. O primeiro é o que sempre está sob observação direta e, para quem pensa que a política é um jogo estratégico entre atores racionais, constitui o campo da política por excelência. O segundo diz respeito ao desenho de país - e de suas instituições - que foi configurado pela carta de 1988.

Se tomarmos o campo da pequena política, o surto de criatividade reformista emanado de próceres da Câmara deve ser interpretado antes por sua causa material e não pelo que se anuncia como sua causa final, como diria o bom Aristóteles. São antes as iniciativas do Supremo, tomadas em 2008, que contam como elemento propulsor, do que propósitos republicanos de aperfeiçoamento institucional: a súmula antinepotismo provocou no Parlamento indisfarçável revolta. O desconforto é compreensível, posto que os humanos mudam de hábito a contragosto e com imensa dificuldade. A adição da cassação, pelo TSE, de um deputado por infidelidade partidária acrescentou à pintura a defesa heroica da Câmara contra a “intromissão” da corte eleitoral. O próprio debate, cujos conteúdos vieram a público, havido nessa mesma corte a respeito da elegibilidade dos candidatos “ficha suja”, contribuiu para a imagem de um Judiciário algoz da assim chamada classe política. Mesmo derrotada a proposta de estabelecer inelegibilidades, a divulgação por parte da Associação de Magistrados Brasileiros da lista dos possíveis meliantes provocou revolta entre muito dos profissionais da política.

A cultura de retaliação, por parte da Câmara, já está em curso há algum tempo. É o caso notório da demora na votação dos projetos de aumento salarial dos ministros do Supremo e de membros do Ministério Público, em pauta desde 2006. Se a proposta é indefensável, que seja refutada. A manutenção da matéria, sem solução a vista, sugere a abertura de oportunidade para barganha. É o que se depreende do comentário de um dos vice-líderes do governo na Câmara: “Resolvendo as questões pendentes, aumenta a boa vontade do Congresso com as demandas do Judiciário”. Edificante, não?

(Por outro lado, o próprio Legislativo participa da feitura do veneno que diz intoxicá-lo. A ação da Mesa do Senado contra a Mesa da Câmara, a respeito do aumento do número de vereadores no País, no âmbito do Supremo pouco condiz com a grita a respeito da tribunalização da política.)

Mas, para além da pequena política, há dimensões mais fortes e relevantes. A ordem constitucional implantada no Brasil com a Carta de 1988 introduziu novidades fundamentais. Duas delas devem ser destacadas, para dar maior sentido às lamúrias do Poder Legislativo.

A primeira diz respeito à primazia do Poder Judiciário na tutela da vida pública. Primazia que decorre da precedência de valores e orientações normativas na Constituição - inscritos no preâmbulo e no título da referente aos direitos fundamentais -, que pode ser resumida na ideia de Estado Democrático de Direito. O desenho de país que daí deriva define os cidadãos brasileiros como sujeitos de direitos que devem ser concretizados pelas instituições do Estado, tanto no âmbito legislativo como no executivo. Ao Supremo, em sua faceta de tribunal constitucional, cabe a jurisdição a respeito da convergência entre a Constituição e o que (não) fazem governos e legislaturas. Para que isto seja possível, cidadãos, partidos, órgãos classistas, prefeitos, governadores, etc., têm a sua disposição instrumentos de interpelação do Supremo, para que este exerça a sua supervisão, com implicações materiais.

A segunda inovação diz respeito ao reconhecimento de que o Poder Executivo - o presidente da República - deve possuir forte capacidade decisionista. A materialização desse aspecto, por meio das medidas provisórias e de todas as prerrogativas legislativas do Executivo, diminui o espaço tradicional da atividade do Poder Legislativo. Em poucas palavras, o Executivo governa através de sua capacidade direta de legislar.

O quadro de expansão e de afirmação dos poderes Executivo e Judiciário na configuração do País não foi acompanhado por igual movimento no campo do Legislativo. Este se caracteriza como um espaço no qual o Executivo - do modo que for possível - obtém maiorias para governar, tanto quanto como um lugar para que expectativas de acesso a benefícios governamentais se materializem. A menoridade do Legislativo decorre dessa dinâmica autárquica de suas relações de tensão e complementaridade com o Executivo.

A saída para o Legislativo poderia ser eminentemente ortodoxa: levar a sério o fato de que ele se constitui como o lugar da representação. Com efeito, se desde 1988 os mecanismos de supremacia do Executivo e do Judiciário têm se consolidado, nada de semelhante pode ser dito com relação ao estado da representação política. O choro dos parlamentares faz sentido, mas o problema parece exigir mais do que lamúrias e retaliações.

*Renato Lessa é professor-titular de filosofia política do Instituto Universitário de Pesquisas do RJ (Universidade Candido Mendes) e da Universidade Federal Fluminense e presidente do Instituto Ciência Hoje

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