Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Em livro cujo título, "Minims", joga com a contraposição a "máximas", Tom Weller faz adaptação cínica de conhecido aforismo de Lincoln: "Você pode enganar todo mundo por algum tempo, ou algumas pessoas o tempo todo - e isso deve ser suficiente na maioria dos casos".
Recorri aqui um par de vezes à distinção, insinuada por Mário Henrique Simonsen num velho artigo, entre um capitalismo "verdadeiro", cujos agentes prescindem do Estado e dele se afastam, e um capitalismo "cartorial" e corrupto que se envolve com o Estado. A distinção pode ser posta em paralelo com outra, estabelecida por Max Weber, entre um capitalismo moderno, ligado pelo autor à ética protestante, e tipos tradicionais de capitalismo associados com traços como aventureirismo, avareza e busca irrestrita do ganho. As feições e as proporções da crise atual deixam patente a impropriedade de pretender vincular a motivação aventureira e gananciosa a formas arcaicas de capitalismo. E, se cabe reconhecer alguma acuidade no cinismo da "mínima" de Tom Weller e na presença difundida da motivação trapaceira nas interações humanas que ela sugere, obviamente não há razão para comprar a tentativa de Simonsen de restringir ao Estado a corrupção - sobretudo diante dos supostos realistas característicos da economia como disciplina, que remetem ao egoísmo dos agentes econômicos e ao "espírito animal".
O ânimo difundido de trapaça poderia ter, em princípio, uma resposta ao estilo de Thomas Hobbes: um Estado (com o nome reverentemente grafado, entre nós, com inicial maiúscula, sem qualquer razão legítima que a exija) erigido em Leviatã poderoso, a impor autoritariamente a boa conduta e a ordem. Não queremos, naturalmente, essa resposta. Em vez dela, queremos autonomia e liberdade, isto é, somos liberais. Há o liberalismo chamado político, que afirma direitos civis e políticos há muito associados com a ideia da democracia liberal. E há o liberalismo econômico, que afirma o valor real da capacidade de iniciativa dos cidadãos na esfera econômica como condição da autonomia autêntica.
Mas a afirmação rombuda da autonomia, ou seja, o jogo em que cada qual, no limite, faz simplesmente o que quer, traz a ameaça da trapaça, da introdução de assimetrias e hierarquias e do comprometimento, ao cabo, da autonomia mesma como valor. No que se refere ao liberalismo político, o reconhecimento disso resulta imediatamente em recomendações que se tornaram objeto de amplo consenso: em síntese, a da "juridificação" das relações sociais, com direitos a serem exercidos disciplinadamente com base nas obrigações acarretadas para cada um pelos direitos dos demais. Quanto ao liberalismo econômico, o ponto crucial é algo que se salienta na crítica socialdemocrática a ele: não é admissível, como se pretendeu no "neoliberalismo" há pouco triunfante, que se veja em qualquer intervenção estatal na atividade econômica não só um embaraço a sua eficiência (posição que a crise, na esteira da desregulação como regra, fez ruir de vez), mas, mais que isso, uma ameaça à vigência dos próprios direitos civis e políticos, ou à própria democracia - ou seja, a assimilação, sem mais, entre a democracia e o mercado em sua forma mais brutal. Bem ponderado o valor da autonomia, a dimensão "libertina" de afirmação irrestrita de si e de cada um simplesmente a fazer o que quiser é cerceada e equilibrada por outra dimensão indispensável: a da autonomia como autocontrole.
Andamos em círculo? Pois o que a ideia de autocontrole sugere é algo que presumivelmente faltará se prevalecer o cinismo de Tom Weller. E a resposta é fatalmente a de que ele não pode prevalecer de modo irrestrito. Não se fará mercado que sirva ao próprio liberalismo econômico sem adesão a normas que mitiguem o cinismo e a trapaça: a sociologia econômica há muito ressalta o elemento de confiança, que agora falta tão dramaticamente, como requisito da operação do mercado. Mas sem mitigar o cinismo, na verdade, não seria possível sequer erguer um bom Leviatã, como sugere a velha pergunta de "quem guarda os guardas". Tais ponderações se encontram subjacentes a importantes revisões recentes nos postulados convencionais da economia como disciplina, levando, entre outras coisas, a contribuições que procuram valer-se de uma perspectiva evolucionária e salientam os estímulos à cooperação e a um altruísmo ao menos condicional (supondo a retribuição solidária dos outros) que teriam sido trazidos pela evolução da espécie. Ponderações análogas levam também, por outro lado, ao questionamento de tentativas problemáticas de recorrer aos mesmos postulados econômicos convencionais para explicar a emergência e a consolidação da democracia, que alguns pretendem derivar "automaticamente" do mero jogo dos interesses - sem se dar conta de que a condição para isso é certa idealização da noção mesma de interesse que a despoja, justamente, da perfídia e do potencial de trapaça e conflito inevitavelmente contido naquele jogo.
De todo modo, a "mínima" de Tom Weller, mesmo tomada com reservas (e ela não deixa de envolver reservas explícitas: "na maioria dos casos"...), traz a advertência de que o crime (a ganância, o ânimo de trapaça, a disposição aventureira no sentido mais negativo) com frequência compensa, sim. E, do ponto de vista tanto de valores econômicos quanto diretamente de valores políticos, a questão é como lidar com a complexidade das relações entre valores e normas, de um lado, e interesses, de outro, com atenção apropriada para o laborioso esforço de construção que essa complexidade requer. E do qual resulte, quem sabe, a combinação de autonomia e interesses com solidariedade, talvez disciplinando a disposição aventureira sem coibi-la no melhor de sua ousadia.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Em livro cujo título, "Minims", joga com a contraposição a "máximas", Tom Weller faz adaptação cínica de conhecido aforismo de Lincoln: "Você pode enganar todo mundo por algum tempo, ou algumas pessoas o tempo todo - e isso deve ser suficiente na maioria dos casos".
Recorri aqui um par de vezes à distinção, insinuada por Mário Henrique Simonsen num velho artigo, entre um capitalismo "verdadeiro", cujos agentes prescindem do Estado e dele se afastam, e um capitalismo "cartorial" e corrupto que se envolve com o Estado. A distinção pode ser posta em paralelo com outra, estabelecida por Max Weber, entre um capitalismo moderno, ligado pelo autor à ética protestante, e tipos tradicionais de capitalismo associados com traços como aventureirismo, avareza e busca irrestrita do ganho. As feições e as proporções da crise atual deixam patente a impropriedade de pretender vincular a motivação aventureira e gananciosa a formas arcaicas de capitalismo. E, se cabe reconhecer alguma acuidade no cinismo da "mínima" de Tom Weller e na presença difundida da motivação trapaceira nas interações humanas que ela sugere, obviamente não há razão para comprar a tentativa de Simonsen de restringir ao Estado a corrupção - sobretudo diante dos supostos realistas característicos da economia como disciplina, que remetem ao egoísmo dos agentes econômicos e ao "espírito animal".
O ânimo difundido de trapaça poderia ter, em princípio, uma resposta ao estilo de Thomas Hobbes: um Estado (com o nome reverentemente grafado, entre nós, com inicial maiúscula, sem qualquer razão legítima que a exija) erigido em Leviatã poderoso, a impor autoritariamente a boa conduta e a ordem. Não queremos, naturalmente, essa resposta. Em vez dela, queremos autonomia e liberdade, isto é, somos liberais. Há o liberalismo chamado político, que afirma direitos civis e políticos há muito associados com a ideia da democracia liberal. E há o liberalismo econômico, que afirma o valor real da capacidade de iniciativa dos cidadãos na esfera econômica como condição da autonomia autêntica.
Mas a afirmação rombuda da autonomia, ou seja, o jogo em que cada qual, no limite, faz simplesmente o que quer, traz a ameaça da trapaça, da introdução de assimetrias e hierarquias e do comprometimento, ao cabo, da autonomia mesma como valor. No que se refere ao liberalismo político, o reconhecimento disso resulta imediatamente em recomendações que se tornaram objeto de amplo consenso: em síntese, a da "juridificação" das relações sociais, com direitos a serem exercidos disciplinadamente com base nas obrigações acarretadas para cada um pelos direitos dos demais. Quanto ao liberalismo econômico, o ponto crucial é algo que se salienta na crítica socialdemocrática a ele: não é admissível, como se pretendeu no "neoliberalismo" há pouco triunfante, que se veja em qualquer intervenção estatal na atividade econômica não só um embaraço a sua eficiência (posição que a crise, na esteira da desregulação como regra, fez ruir de vez), mas, mais que isso, uma ameaça à vigência dos próprios direitos civis e políticos, ou à própria democracia - ou seja, a assimilação, sem mais, entre a democracia e o mercado em sua forma mais brutal. Bem ponderado o valor da autonomia, a dimensão "libertina" de afirmação irrestrita de si e de cada um simplesmente a fazer o que quiser é cerceada e equilibrada por outra dimensão indispensável: a da autonomia como autocontrole.
Andamos em círculo? Pois o que a ideia de autocontrole sugere é algo que presumivelmente faltará se prevalecer o cinismo de Tom Weller. E a resposta é fatalmente a de que ele não pode prevalecer de modo irrestrito. Não se fará mercado que sirva ao próprio liberalismo econômico sem adesão a normas que mitiguem o cinismo e a trapaça: a sociologia econômica há muito ressalta o elemento de confiança, que agora falta tão dramaticamente, como requisito da operação do mercado. Mas sem mitigar o cinismo, na verdade, não seria possível sequer erguer um bom Leviatã, como sugere a velha pergunta de "quem guarda os guardas". Tais ponderações se encontram subjacentes a importantes revisões recentes nos postulados convencionais da economia como disciplina, levando, entre outras coisas, a contribuições que procuram valer-se de uma perspectiva evolucionária e salientam os estímulos à cooperação e a um altruísmo ao menos condicional (supondo a retribuição solidária dos outros) que teriam sido trazidos pela evolução da espécie. Ponderações análogas levam também, por outro lado, ao questionamento de tentativas problemáticas de recorrer aos mesmos postulados econômicos convencionais para explicar a emergência e a consolidação da democracia, que alguns pretendem derivar "automaticamente" do mero jogo dos interesses - sem se dar conta de que a condição para isso é certa idealização da noção mesma de interesse que a despoja, justamente, da perfídia e do potencial de trapaça e conflito inevitavelmente contido naquele jogo.
De todo modo, a "mínima" de Tom Weller, mesmo tomada com reservas (e ela não deixa de envolver reservas explícitas: "na maioria dos casos"...), traz a advertência de que o crime (a ganância, o ânimo de trapaça, a disposição aventureira no sentido mais negativo) com frequência compensa, sim. E, do ponto de vista tanto de valores econômicos quanto diretamente de valores políticos, a questão é como lidar com a complexidade das relações entre valores e normas, de um lado, e interesses, de outro, com atenção apropriada para o laborioso esforço de construção que essa complexidade requer. E do qual resulte, quem sabe, a combinação de autonomia e interesses com solidariedade, talvez disciplinando a disposição aventureira sem coibi-la no melhor de sua ousadia.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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