"The Idea of Justice" - Amartya Sen. Harvard University Press, 304 págs
O importante não é definir uma sociedade perfeitamente justa e sim estudar, avaliar e estimular o debate entre as diferentes medidas e os diferentes interesses voltados à permanente redução da injustiça. Buscar uma sociedade justa e lutar contra a injustiça não são dois lados da mesma moeda ou a imagem (revelada ou em negativo) da mesma cena. São horizontes filosóficos opostos que fundamentam visões contraditórias sobre a organização social.
Por um lado, encontra-se a tradição contratualista que vem de Hobbes, Rousseau, Kant, cuja expressão contemporânea está na maior obra de filosofia política do século XX, a do americano John Rawls, autor de "Uma Teoria da Justiça" (1971). Por outro, está a teoria da escolha social que nasce na Revolução Francesa, quando o marquês de Condorcet se dá conta da dificuldade inerente à formação de qualquer maioria representativa e racionalmente consistente. Na segunda metade do século XX, o Prêmio Nobel de Economia Kenneth Arrow oferece a demonstração matemática das dificuldades, na teoria microeconômica do bem-estar, de tomar decisões coletivas com base na agregação de preferências individuais.
Mas por que razão escolha social e contrato social colocam-se em campos opostos? Afinal, os dois valorizam a razão humana (e não a autoridade arbitrária) como base para a tomada de decisões coletivas. Ambos exprimem o desejo de alterar a situação presente em direção a um futuro melhor e nos dois casos o debate é o mecanismo por excelência da ação pública.
A maneira como o economista e filósofo indiano Amartya Sen, Nobel de Economia de 1998, reconhece essas identidades em "The Idea of Justice" é tanto mais interessante que ele foi amigo e colaborador intelectual dos mais importantes pensadores contemporâneos vinculados à tradição contratualista.
A grande diferença entre as duas abordagens é que o contratualismo desemboca no projeto de construir instituições que permitam a existência de uma sociedade justa. Partindo da premissa de que algum grau de desigualdade deve existir na vida social, John Rawls, por exemplo, propõe uma questão central: qual deve ser essa desigualdade para que possa haver, ao mesmo tempo, incentivos ao progresso material, sem que se produzam situações iníquas de miséria e privação?
Para que a resposta não reflita simplesmente os interesses dos atuais protagonistas do debate, o exercício deve ser encoberto por um "véu de ignorância" sob o qual seus participantes determinam qual é o nível de desigualdade socialmente útil, sem saber, no entanto, quem serão os ocupantes dos diferentes lugares sociais a que essa desigualdade dará origem. Portanto, abre-se o caminho para que, de forma impessoal (e com base na razão e no debate), seja concebida uma ordem justa.
A crítica de Sen não se reduz às óbvias dificuldades práticas de levar tal exercício adiante e do irrealismo do pressuposto igualitário em que ele se apoia. Em primeiro lugar, com base na teoria da escolha social, Sen contesta que possa haver um e único princípio unificador a indicar quais são as instituições justas para construir o bem-estar humano.
O contratualismo padece de uma espécie intelectualmente ingênua e politicamente perigosa de crença na capacidade unificadora da razão. Sen mostra, ao contrário, que podem ser múltiplas as razões subjacentes às escolhas dos indivíduos e são inúmeras as circunstâncias em que os julgamentos guiados e justificados racionalmente resultam em situações absolutamente opostas. Somente avaliações apoiadas nos produtos concretos dessas diferentes situações, a partir de debate aberto, bem informado e diversificado, é que podem fazer avançar a luta contra a injustiça.
Ao rejeitar a ideia de uma ordem racionalmente justa Sen rejeita igualmente o que chama de paroquialismo de procedimentos: não se trata de imaginar que a justiça é um valor relativo a cada cultura e, portanto, incomensurável. Ao contrário, o importante é que o debate público e em escala internacional permite sempre que essas diferentes ordens de justificação entrem em debate. Daí a fertilidade dos movimentos sociais, mesmo os mais radicais.
Mas, sobretudo, Sen convida a pôr em evidência, no estabelecimento dos critérios da escolha social, as liberdades substantivas dos indivíduos, suas realizações, abordando-as sempre sob um parâmetro comparativo e não a partir de um critério absoluto e transcendental de justiça. Muito longe de uma postura cética ou conformista, esse horizonte abre caminho para que a escolha social possa contar com elementos da racionalidade humana que dificilmente entram na tradição contratualista.
O livro de Sen é talvez a mais profunda crítica atual ao individualismo metodológico, dominante na economia: os indivíduos podem ter preferências que se referem, por exemplo, à justiça social ou ao bem-estar dos outros e não apenas a seus estritos interesses pessoais.
O centro de uma avaliação refletida do mundo atual deve ser ocupado pelas vidas reais dos indivíduos, pelas liberdades de que desfrutam e por seu poder real de fazer as opções que lhes sejam convenientes. Não se trata de chegar aí como resultado indireto e não antecipado de mecanismos como o crescimento econômico ou instituições como a garantia da propriedade, a liberdade de fazer negócios ou o sufrágio universal.
A luta contra a injustiça envolve uma deliberação intencional voltada a promover realizações humanas capazes de enriquecer a vida. Isso supõe traços concretos de organização social (que Sen chama de capacitações), como acesso à educação, à saúde, ao trabalho digno e também uma relação com a natureza que não se volte apenas a manter nossos atuais padrões de vida, mas possa assumir responsabilidades pela resiliência dos ecossistemas, muito além daquilo em que eles nos são imediatamente úteis.
Na Ideia de Justiça de Sen reside uma visão do ser humano como construtor de seu futuro, propenso a se indignar contra a humilhação, voltado a ampliar a liberdade, o debate racional e não como o produto inconsciente das boas instituições.
*Ricardo Abramovay é professor titular do departamento de economia da FEA da Universidade de São Paulo, coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental
(Este texto foi enviado pelo Prof. Mauricio David)
O importante não é definir uma sociedade perfeitamente justa e sim estudar, avaliar e estimular o debate entre as diferentes medidas e os diferentes interesses voltados à permanente redução da injustiça. Buscar uma sociedade justa e lutar contra a injustiça não são dois lados da mesma moeda ou a imagem (revelada ou em negativo) da mesma cena. São horizontes filosóficos opostos que fundamentam visões contraditórias sobre a organização social.
Por um lado, encontra-se a tradição contratualista que vem de Hobbes, Rousseau, Kant, cuja expressão contemporânea está na maior obra de filosofia política do século XX, a do americano John Rawls, autor de "Uma Teoria da Justiça" (1971). Por outro, está a teoria da escolha social que nasce na Revolução Francesa, quando o marquês de Condorcet se dá conta da dificuldade inerente à formação de qualquer maioria representativa e racionalmente consistente. Na segunda metade do século XX, o Prêmio Nobel de Economia Kenneth Arrow oferece a demonstração matemática das dificuldades, na teoria microeconômica do bem-estar, de tomar decisões coletivas com base na agregação de preferências individuais.
Mas por que razão escolha social e contrato social colocam-se em campos opostos? Afinal, os dois valorizam a razão humana (e não a autoridade arbitrária) como base para a tomada de decisões coletivas. Ambos exprimem o desejo de alterar a situação presente em direção a um futuro melhor e nos dois casos o debate é o mecanismo por excelência da ação pública.
A maneira como o economista e filósofo indiano Amartya Sen, Nobel de Economia de 1998, reconhece essas identidades em "The Idea of Justice" é tanto mais interessante que ele foi amigo e colaborador intelectual dos mais importantes pensadores contemporâneos vinculados à tradição contratualista.
A grande diferença entre as duas abordagens é que o contratualismo desemboca no projeto de construir instituições que permitam a existência de uma sociedade justa. Partindo da premissa de que algum grau de desigualdade deve existir na vida social, John Rawls, por exemplo, propõe uma questão central: qual deve ser essa desigualdade para que possa haver, ao mesmo tempo, incentivos ao progresso material, sem que se produzam situações iníquas de miséria e privação?
Para que a resposta não reflita simplesmente os interesses dos atuais protagonistas do debate, o exercício deve ser encoberto por um "véu de ignorância" sob o qual seus participantes determinam qual é o nível de desigualdade socialmente útil, sem saber, no entanto, quem serão os ocupantes dos diferentes lugares sociais a que essa desigualdade dará origem. Portanto, abre-se o caminho para que, de forma impessoal (e com base na razão e no debate), seja concebida uma ordem justa.
A crítica de Sen não se reduz às óbvias dificuldades práticas de levar tal exercício adiante e do irrealismo do pressuposto igualitário em que ele se apoia. Em primeiro lugar, com base na teoria da escolha social, Sen contesta que possa haver um e único princípio unificador a indicar quais são as instituições justas para construir o bem-estar humano.
O contratualismo padece de uma espécie intelectualmente ingênua e politicamente perigosa de crença na capacidade unificadora da razão. Sen mostra, ao contrário, que podem ser múltiplas as razões subjacentes às escolhas dos indivíduos e são inúmeras as circunstâncias em que os julgamentos guiados e justificados racionalmente resultam em situações absolutamente opostas. Somente avaliações apoiadas nos produtos concretos dessas diferentes situações, a partir de debate aberto, bem informado e diversificado, é que podem fazer avançar a luta contra a injustiça.
Ao rejeitar a ideia de uma ordem racionalmente justa Sen rejeita igualmente o que chama de paroquialismo de procedimentos: não se trata de imaginar que a justiça é um valor relativo a cada cultura e, portanto, incomensurável. Ao contrário, o importante é que o debate público e em escala internacional permite sempre que essas diferentes ordens de justificação entrem em debate. Daí a fertilidade dos movimentos sociais, mesmo os mais radicais.
Mas, sobretudo, Sen convida a pôr em evidência, no estabelecimento dos critérios da escolha social, as liberdades substantivas dos indivíduos, suas realizações, abordando-as sempre sob um parâmetro comparativo e não a partir de um critério absoluto e transcendental de justiça. Muito longe de uma postura cética ou conformista, esse horizonte abre caminho para que a escolha social possa contar com elementos da racionalidade humana que dificilmente entram na tradição contratualista.
O livro de Sen é talvez a mais profunda crítica atual ao individualismo metodológico, dominante na economia: os indivíduos podem ter preferências que se referem, por exemplo, à justiça social ou ao bem-estar dos outros e não apenas a seus estritos interesses pessoais.
O centro de uma avaliação refletida do mundo atual deve ser ocupado pelas vidas reais dos indivíduos, pelas liberdades de que desfrutam e por seu poder real de fazer as opções que lhes sejam convenientes. Não se trata de chegar aí como resultado indireto e não antecipado de mecanismos como o crescimento econômico ou instituições como a garantia da propriedade, a liberdade de fazer negócios ou o sufrágio universal.
A luta contra a injustiça envolve uma deliberação intencional voltada a promover realizações humanas capazes de enriquecer a vida. Isso supõe traços concretos de organização social (que Sen chama de capacitações), como acesso à educação, à saúde, ao trabalho digno e também uma relação com a natureza que não se volte apenas a manter nossos atuais padrões de vida, mas possa assumir responsabilidades pela resiliência dos ecossistemas, muito além daquilo em que eles nos são imediatamente úteis.
Na Ideia de Justiça de Sen reside uma visão do ser humano como construtor de seu futuro, propenso a se indignar contra a humilhação, voltado a ampliar a liberdade, o debate racional e não como o produto inconsciente das boas instituições.
*Ricardo Abramovay é professor titular do departamento de economia da FEA da Universidade de São Paulo, coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental
(Este texto foi enviado pelo Prof. Mauricio David)
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