Se alguém ainda tem dúvida a respeito do que a classe média pode fazer pelo Brasil, é mais indicado olhar primeiro para trás e prestar atenção em alguns sinais deixados à margem do caminho, aparentemente desencontrados mas significativos, para perceber as diferenças que passaram a responder pela atual normalidade política, sem precedente nos anais da República.
Coube ao voto indireto na eleição de Tancredo Neves em 1985 ser a base sobre a qual se edificou a democracia (da qual a esquerda radical, sob a batuta do PT, discordou e até hoje não se penitenciou), capaz de suportar as vicissitudes da longa transição que começou, pelo voto direto, com a eleição do presidente Fernando Collor, cujo mandato se encerrou antes do prazo, mediante pedido de renúncia assimilado como impeachment.
Desde que se esgotaram, em três das quatro eleições entre 1945 e 1960, as turvas fontes de contestação da legitimidade dos governantes eleitos sem a salvaguarda da maioria absoluta, a eleição dos presidentes da República se tornou mais importante do que os candidatos, os partidos e os próprios eleitores. Agora, sob a proteção da maioria absoluta, nenhum resultado foi pretexto para exercícios de suspeita corrosiva.
Com exceção da primeira sucessão presidencial depois do Estado Novo, quando se elegeu o general Dutra, que havia sido o condestável da ditadura, todas as outras eleições viveram clima de beligerância eleitoral grávida de golpismo. A começar da volta triunfal de Getúlio Vargas, pelo voto “que não enche barriga” como ele próprio dizia, reinstalou-se a crise que assediou a eleição e os governos de todos os presidentes eleitos, desde a apuração das urnas de que vieram. A morte de Getúlio Vargas não encerrou o ciclo maldito. A eleição de JK se fez no intervalo entre dois governos fatais, o de Getúlio Vargas antes e o de Jânio Quadros depois, e que vitimou seu vice João Goulart. Seguiu-se a mais longa curva que, não obstante, veio a dar na democracia como fatalidade e por falta de opção depois de vinte anos sem eleição direta.
Desta vez, tudo faz crer, não tanto como aparência mas em sinais claros, a classe média chegou a tempo: é a sua oportunidade de servir e se servir da democracia. Passou a fazer parte do processo político por conta própria, e não como favor retórico da parlapatice política. Depois de esgotar a produtividade do sindicalismo de resultados pequeno burgueses, o ex-presidente Lula passou a cortejar a classe média que, no seu modo de entender, é constituída pelos que passam a fazer três refeições por dia (no pressuposto de viver – se é que pode aplicar o verbo - de uma ração diária). Já se viu que também nada entende de classe média.
O fato é que a classe média veio para ficar e prosperar na medida das limitações de quem já está plenamente consciente de que poucos, pouquíssimos, podem ascender ao estágio superior, e todos se empenharão para não voltarem ao nível inferior de onde vieram. É por aí, e não por fora do que já mostrou que a democracia e a classe média podem ter mais em comum do que possa separá-las.
Nessa zona obscura, já havia sinais de presença da classe média como parcela a que a história reservaria atuação acima de qualquer aspiração social limitada em suas possibilidades naquele “país essencialmente agrícola” e ainda em dúvida sobre a própria industrialização. Mas a classe média, depois da segunda guerra, se identificou com a idéia esboçada pelo nacionalismo econômico, cujo carro-chefe era a causa do petróleo e cujo slogan foi o primor da redundância na forma inicial: “nosso petróleo é nosso” subtendia o imperialismo e suas conexões, a guerra fria e tudo que se negava como democracia ao alcance de todos. Foi a grande sobrevivente e vai querer escrever a história daqui por diante.
Wilson Figueiredo é jornalista
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