Usurpação do poder: Editorial | O Estado de S. Paulo
O ex-presidente Michel Temer alertou, em entrevista ao jornal Valor, para a ocorrência cada vez mais habitual da quebra da ordem constitucional. “O que mais temos no Brasil é a violação de natureza institucional”, disse, referindo-se aos excessos de órgãos subordinados aos Três Poderes. A denúncia é de extrema gravidade, já que significa que, por vias ocultas, o poder estaria sendo exercido fora dos cânones institucionais. Em outras palavras, haveria um exercício não democrático do poder.
“Quando a Constituição diz que ‘todo poder emana do povo’ não é regra de palanque, é regra jurídica”, lembrou Michel Temer. Sendo o Brasil um Estado Democrático de Direito, “em vez de haver um único poder no Estado, como no absolutismo (...), há três órgãos para exercer o poder. A partir deles é que há os órgãos inferiores. E esses órgãos inferiores não podem estar em busca de poder. Eles têm que acompanhar o que a estrutura do poder constitucional estabelece, por meio do Legislativo, Executivo e Judiciário. É neste sentido que digo que há equívocos institucionais muito acentuados”, afirmou o ex-presidente.
Eis o ponto central da questão e que tem sido motivo de muita confusão. Precisamente porque todo o poder emana do povo, no Estado Democrático de Direito, os órgãos subordinados aos Três Poderes não exercem poder e, portanto, não devem estar em busca de poder. O poder, por delegação do povo, é exercido pelas três instituições superiores – Legislativo, Executivo e Judiciário – na exata medida de suas competências constitucionais.
O Ministério Público, por exemplo, não exerce o poder. O que lhe cabe é a defesa da ordem jurídica e do regime democrático. Ou seja, ele é o guardião da ordem jurídica, mas não o artífice e tampouco o modulador dessa ordem. Assim, o Ministério Público é plenamente democrático no exercício de suas atribuições, respeitando de fato e de direito que todo o poder emana do povo, quando ele não busca poder para si mesmo. Um membro do Ministério Público sairia do traçado democrático se, no cumprimento de sua atividade profissional, almejasse algum tipo de influência política. O mesmo se pode dizer de todos os órgãos subordinados aos Três Poderes, como, por exemplo, os Tribunais de Contas e os órgãos públicos de fiscalização e controle.
No entanto, tem-se visto no Brasil não apenas a frequente busca de poder por órgãos que não detêm poder, como alertou o ex-presidente Michel Temer. O que é mais surpreendente é que, nessa tentativa de usurpar o poder, membros desses órgãos apelam ao princípio democrático ou à Constituição de 1988, como se a democracia significasse distribuição indistinta do poder a todos os órgãos públicos. Em alguns casos, chegam a alegar que, sem o exercício desse poder, não teriam condições de cumprir as atribuições que a Carta Magna lhes atribuiu.
Nos últimos anos, por exemplo, membros do Ministério Público afirmaram explicitamente que sua tarefa institucional de combater a corrupção incluía promover alterações no sistema político e no ordenamento jurídico. Além disso, toda tentativa voltada a promover uma atuação desses órgãos dentro dos cânones institucionais – isto é, dentro dos limites que a ordem democrática lhes conferiu – foi classificada como mordaça, censura ou diminuição da autonomia funcional. Tal reação pode ser vista, por exemplo, em relação ao projeto de lei que criminaliza o abuso de autoridade.
Diante dessas alegações que, sob a aparência de consciência democrática, buscam usurpar o exercício do poder, é preciso relembrar que a democracia não distribui indistintamente o poder aos órgãos estatais. Se assim fosse, o poder já não emanaria do povo, e sim do Estado. Por isso, a Constituição assegura que o poder seja exercido, de fato e de direito, por quem, de fato e de direito, representa o povo. Nesse sentido, é característico da democracia o cuidado – extremo respeito – com o Legislativo e suas prerrogativas. Os órgãos estatais não caminham bem quando, de alguma forma, buscam desqualificar o trabalho do Congresso perante a opinião pública. O respeito pelos Três Poderes é parte essencial da consciência democrática – e isso vale para todos, também para quem exerce temporariamente, seja porque foi aprovado em concurso, seja porque foi eleito, a função pública.
Erros amazônicos: Editorial | Folha de S. Paulo
Maioria aponta mau desempenho de Bolsonaro na política ambiental; guiado por conceitos obsoletos, governo vê preservação como entrave econômico
Para a percepção de que o governo Jair Bolsonaro (PSL) tem mau desempenho na política ambiental —compartilhada por 51% dos brasileiros aptos a votar, segundo o Datafolha— contribui, certamente, uma sequência de declarações e atos descabidos do presidente.
O questionamento dos números da alta do desmatamento, confrontos que levaram à suspensão de verbas internacionais para a preservação e acusações fantasiosas a ONGs, entre outros exemplos, associaram o mandatário à piora dos indicadores do setor, mesmo antes de um diagnóstico mais preciso de dimensões e causas.
Na origem da algaravia presidencial sobre a Amazônia estão a completa desconsideração por tudo o que já se averiguou quanto à região.
Bolsonaro se ampara no conceito ultrapassado de que há cobiça estrangeira pela Amazônia e que organizações ambientalistas e indigenistas estão a serviço desse suposto interesse espúrio. Sem tal paranoia, 75% dos eleitores consideram legítima a preocupação internacional com a floresta.
É fato que cerca de 14% do território nacional já foi reservado para terras indígenas. Outros 18%, segundo a Embrapa, destinam-se a unidades de conservação, como parques e áreas de proteção.
No Planalto se pressupõe, equivocadamente, que esses 32% representem empecilho ao desenvolvimento agropecuário. O setor mais modernizado do campo há muito adotou a ideia de que, para expandir a produção, não há necessidade de mais desmatamento.
Com efeito, dos 2,46 milhões de quilômetros quadrados utilizados pela agropecuária (29% do Brasil), 1,44 milhão são pastagens. Há enorme espaço para aumento da produtividade da pecuária bovina, que liberaria áreas para o cultivo de commodities como soja e milho.
Ao assestar sua artilharia contra terras indígenas, agências ambientais e a suposta conspiração para internacionalizar a Amazônia, Bolsonaro emite a senha para que os atores mais atrasados da Amazônia —grileiros, madeireiros e garimpeiros ilegais— reativem a máquina da devastação.
Nada difere do que tenha dito e repetido antes e depois da vitoriosa campanha eleitoral. Mais do que desprezar e desarticular políticas de combate à destruição da florestas a muito custo construídas pelo Estado brasileiro, Bolsonaro trabalha contra elas. A mobilização do Exército para extinguir queimadas é mera cortina de fumaça.
Só 0,5% das propriedades rurais estão no front do desmatamento. Esse deveria ser o alvo na mira de Brasília, mas o presidente prefere investir cegamente contra os espantalhos indígenas e estrangeiros.
Reafirmar a Lei da Anistia: Editorial | Folha de S. Paulo
Há 40 anos, acordo restabeleceu confiança na solução pacífica das divergências
Num momento em que o Brasil tem na Presidência da República um entusiasta da ditadura militar, convém repetir o óbvio: o regime que se iniciou em 1964 e terminou em 1985 merece não elogios, mas a repulsa de todo cidadão minimamente informado sobre o período.
Aqueles foram anos de violência geral contra a população, proibida até de exercer o simples direito ao autogoverno. Também foram anos de violência específica contra os opositores, perseguidos e não raro seviciados por denunciarem o abuso instalado no país.
Violência, por fim, praticada contra agentes de Estado e meros apoiadores do governo selecionados como alvo de militantes dispostos a pegar em armas para defender o seu modelo de sociedade.
Uma espiral crescente que encontrou seu auge entre 1969 e 1974, quando se intensificou o cerco à guerrilha. Nesse lustro evidenciou-se, mais do que nunca, a assimetria das forças em combate e das responsabilidades pelo clima de guerra que se implantou.
A maior parcela de culpa recai sobre os ombros de quem lançou o país nas sombras do autoritarismo; os crimes mais graves foram cometidos pelos que integraram a máquina de repressão e transformaram o tormento em política clandestina de Estado.
Quando a mão de ferro enfim começou a se abrir, os principais setores da sociedade se movimentavam num tabuleiro complicado. Embora buscassem a punição dos agentes do Estado envolvidos em crimes políticos, logo perceberam que seria mais célere e menos doloroso aceitar uma anistia irrestrita.
Editada em 1979 —ainda na ditadura, portanto—, a lei beneficiou não só os guerrilheiros que recorreram à luta armada mas também os militares que sequestraram, torturaram e mataram.
Nas quatro décadas que se seguiram, nunca faltaram críticos àquele acordo. E, de fato, pela ótica humanitária, a solução encontrada passou longe de ser a melhor. Mas foi a solução possível.
Solução referendada posteriormente pelo Congresso constituinte que produziu a Carta em vigor desde 1988 e reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2010.
Passou da hora de cessarem os questionamentos à Lei da Anistia. Se não pelo reconhecimento de que órgãos democráticos já reiteraram sua validade, ao menos porque foi esse acordo que permitiu à sociedade retomar a confiança na solução pacífica das divergências.
A anistia irrestrita é um dos pilares da nossa democracia. Impõe-se mantê-lo de pé, sobretudo quando ganham terreno forças abjetas interessadas em contaminar o espaço público, fomentar o desrespeito às regras comuns e retomar a violência como meio de impor ideias.
Melhoram as perspectivas econômicas: Editorial | O Globo
Retomada é obra coletiva, vai além das reformas essenciais e depende de regras e estabilidade jurídica
Se o avanço de 0,4% do Produto Interno Bruto no segundo trimestre afastou o risco de recessão, não foi suficiente para elevar a projeção de crescimento da economia neste ano, que provavelmente vai ficar em torno de 1%. Porém, uma análise mais detida da evolução da indústria, em especial da construção civil, dos investimentos e do quadro de desemprego sugere uma gradativa melhoria nas perspectivas econômicas.
A indústria cresceu 0,7% no segundo trimestre, alavancada pelo segmento imobiliário, com foco em habitações. A construção civil teve papel crucial no desempenho de abril a junho. Avançou 1,9% em comparação com o período anterior, de janeiro a abril. Cresceu 2% em relação ao segundo trimestre do ano passado — primeira alta em cinco anos, o que ajudou a impulsionar o investimento e a indústria.
É um alento nesse longo e penoso processo de estagnação nacional.
Contam-se anos seguidos de crescimento sofrível, com renda média por habitante ainda situada abaixo do nível de seis anos atrás. Nos ciclos recessivos anteriores, observava-se que, no vigésimo trimestre após o início da crise, as perdas já haviam sido recuperadas. No atual, tem-se recuperação de apenas 42% do que foi perdido. É uma forma de medir a distância a percorrer para retomar a rota do crescimento.
O Ministério da Economia celebrou com comedimento “a estratégia adotada pelo governo, de crescimento com responsabilidade fiscal”. Faz sentido, porque não há razão objetiva para se decretar o início de uma recuperação com base nos resultados de um único trimestre.
O que move o país ao resgate do crescimento perdido é a necessidade de progresso alimentada pelas pessoas e empresas. E elas se mantêm inconformadas com o empobrecimento no período recente, provocado por desastrosas gestões governamentais que desperdiçaram oportunidade singular — a dos benefícios do período de alta valorização das commodities.
Governo, Legislativo e Judiciário precisam manter a objetividade na reconstrução da estrutura econômica. Sem expandir a infraestrutura, o que só é viável com sólidas parcerias entre os setores público e privado, pode ser possível recuperar as perdas do ciclo de recessão, mas será virtualmente impossível sustentar o crescimento das atividades econômicas e, por consequência, do nível de emprego.
Isso porque faltam redes de água e esgotos, rodovias, ferrovias, e o potencial energético e de comunicações ainda é limitado em muitas regiões.
A reconstrução econômica é obra coletiva e vai muito além das reformas essenciais, como a da Previdência, do sistema de tributos e da gestão do Estado.
Ela depende muito, por exemplo, de segurança aos investimentos e aos contratos, com regras e a estabilidade que somente o Legislativo e o Judiciário podem prover.
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