- O Globo
Preocupação com impactos socioambientais no universo dos fundos graúdos só cresce. Queimadas já deveriam ser proibidas antes
Nova York ainda ardia nas cinzas do ataque terrorista do 11 de setembro de 2001 quando o presidente George W. Bush decretou a sua guerra ao terror. O primeiro flanco que abriu foi no Afeganistão, de onde os Estados Unidos não conseguem sair até hoje. Em 2003, Bush propôs aos aliados que também se juntassem a ele na malfadada invasão do Iraque. Só que a França disse “não” através de um chanceler que já tinha o sobrenome para ser vilipendiado (Dominique de Villepin), o aliado historicamente bissexto voltou a ser visto como traidor. Seguiu-se um episódio do qual os americanos preferem não se lembrar, por tolo.
Dois congressistas do Partido Republicano, um deles presidente da Comissão de Assuntos Administrativos da Casa, instruíram todas as cafeterias do Capitólio a rebatizarem seus cardápios. As populares french fries (batatas fritas) passaram a ser listadas como liberty fries, e o ato de patriotismo de ocasião teve inevitável tribo de seguidores. Donald Trump certamente teria aprovado. Jair Bolsonaro também. Detalhe: trocou-se o nome do prato, ninguém deixou de devorar batatinhas.
À época, a embaixada da França emitiu resposta cortante — “... Em momento tão grave não estamos focando na nomenclatura que americanos dão a batatas...” — e informou que o mundialmente popular prato é originário da Bélgica, não da França. Fim da história: numa calada manhã do verão de 2006, com o desastre no Iraque sem fim à vista, o novo presidente da mesma comissão parlamentar devolveu às frites a sua designação em inglês. Em surdina, para não chamar a atenção.
29 de agosto de 2019, Palácio do Planalto, cerimônia de lançamento do Em Frente, Brasil, programa de combate a crimes violentos. Ao assinar o documento do projeto piloto, o presidente do Brasil gostou de anunciar a demissão oficial da esferográfica francesa Bic para atos de governo, e de exibir uma Compactor como sua sucessora oficial. Talvez não soubesse que a Cia. de Canetas Compactor, com sede na Baixada Fluminense, tem origem alemã e sociedade com parceiros globais, mas ninguém é perfeito. Para estes tempos de guerra amazônica com o mundo, é até um alívio quando o presidente apenas troca de stylo à bille.
Tampouco ferem ou causam danos os arroubos vernaculares de Onyx Lorenzoni, ministro-chefe da Casa Civil. Ele denuncia a esquerda por usar a questão ambiental como “aríete ecológico”(aríete = máquina de guerra com que se derrubavam as muralhas).
Mais arriscado é o mesmo Onyx garantir aos brasileiros que a suspensão de compras de couros do Brasil por parte de alguns dos principais importadores mundiais “não tem importância”. Venderemos alhures, assegura ele. Não é bem assim. Por trás dos cerca de R$ 10 bilhões que o país exporta anualmente em produtos de couro, valor que soa abstrato para quem passa batido por números, estão grifes bastante familiares para brasileiros. Muitos as conhecem por anúncios em revista, vários as cobiçam em vitrines, alguns poucos as possuem em algum armário de casa. Sem falar nas inúmeras falsificações de mochilas JanSport, adereços Kipling, botinas Timberland ou jaquetas The North Face.
Estas e outras 14 marcas internacionais pertencentes ao grupo americano VF Corporation decidiram aguardar mudanças concretas na governança ambiental do governo Bolsonaro para retomar as compras. A VFC nada tem de esquerda. Certamente, pretende continuar a crescer para além dos US$ 13,8 bilhões de lucro previstos para 2019 e não deve considerar o boicote decretado lesivo a seu negócio. Para suspendê-lo, aguarda garantias e atos do governo Bolsonaro de que o couro comprado não contribuiu para a degradação ambiental do Brasil.
Nada de novo, por sinal. Em 2013 a Asia Pulp&Paper, maior produtora de polpa e papel sediada em Jacarta e uma das maiores do mundo, teve de ceder a pressões externas para abandonar a prática de desmatamento da floresta natural indonésia, que alimentava a cadeia produtiva do grupo. A exigência fora feita por quase cem grandes clientes corporativos como a Disney, Levi Strauss e Mattel (fabricante das bonecas Barbie). A chacoalhada foi grande, o resultado final ainda inconstante, mas a mensagem foi inequívoca.
Vanessa Adachi, em reportagem desta semana no “Valor Econômico”, traça um interessantíssimo mapa múndi dos grandes negócios movidos a critérios de sustentabilidade. Um manifesto divulgado semanas atrás por 181 CEOs de empresas americanas de grosso calibre acena com o propósito de encerrar a era da supremacia dos acionistas e da necessidade de encarar a responsabilidade corporativa para além do lucro, para o bem-estar da sociedade como um todo. Paralelamente, chega a três mil o número de empresas de 64 países que compõem o chamado grupo B Corporations, de rigorosa certificação ambiental e social. Tem fila de espera. A preocupação com impactos socioambientais no universo dos fundos graúdos também só cresce.
É nesta paisagem cambiante que a moratória de 60 dias anunciada por Bolsonaro sobre queimadas no país não faz nexo. É pouco, é genérico, e proíbe o que já deveria estar proibido — as queimadas ilegais. Acordou tarde.
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