segunda-feira, 16 de março de 2020

José Francisco L. Gonçalves* - Fiscalizando a política monetária

- Valor Econômico

Aguardar que as reformas tenham o condão de libertar os “espíritos animais dos empresários” é imobilismo

Logo mais, o Copom vai definir a taxa Selic para as próximas seis semanas. E vai fazê-lo em ambiente difícil, dado o nível de incerteza que tomou os mercados desde a eclosão da covid-19 em meados de janeiro. Os desdobramentos do contágio interromperam a produção em vários segmentos da economia mundial e promoveram bruscas e grandes flutuações nos preços dos ativos reais e financeiros. Seu impacto sobre o preço do petróleo pode ter efeitos prolongados sobre a atividade econômica.

Em particular, as moedas emergentes sofreram brutalmente pela corrida dos investidores, ora para o dólar, ora para outras moedas fortes. Os juros que ativos públicos em tais moedas pagam tiveram outra rodada de queda, atingindo níveis inimaginavelmente baixos. Os bancos centrais de tais países entraram mais fundo em nova rodada de expansão monetária e de seus balanços, buscando elidir a incerteza e a brutal preferência pela liquidez.

Os ativos de risco foram enormemente desvalorizados, os prêmios de risco, multiplicados. As variáveis do balanço de risco do Copom (Comitê de Política Monetária do BC) estão claramente ponderadas: o ambiente internacional desinflacionário, para ser breve, a elevada ociosidade de fatores na economia brasileira, a capacidade de a inflação não acelerar com os vários choques dos últimos anos, a expectativa de inflação abaixo da meta no horizonte relevante, a incerteza sobre a potência da política monetária, os efeitos da redução de juros já realizada.

E o mais importante atualmente, “a consequência desses efeitos para a condução da política monetária dependerá da magnitude relativa da desaceleração da economia global versus a reação dos ativos financeiro”, leia-se, o bom e velho pass-through da variação cambial para a variação dos preços em reais.

Já antes da covid-19, as expectativas sobre a atividade econômica entraram em revisão - para baixo. O terceiro ano sob os esperados efeitos das reformas foi frustrante para quem nelas concentrava confiança. Assim, o sinal sobre a eventual pressão de preços decorrente da atividade econômica incompatível com a resposta da oferta pode ser considerado desprezível ainda por um bom tempo. Mais tempo agora. A demanda externa mais fraca, os termos de troca em deterioração, as decisões de investir no setor óleo e gás, a política fiscal contracionista, a incerteza elevada, tudo conspira para menos atividade adiante.

Uma coisa é a alta do dólar e das outras moedas fortes contra as moedas emergentes. Quase nada há para fazer a este respeito. Nestes países, a preferência pela liquidez é a preferência pelos mesmos ativos que são desejados lá fora: aquelas moedas. E os juros pagos pelas moedas emergentes são o prêmio exigido por quem abre mão daquelas. O Banco Central pode apenas, como tem feito nos últimos anos, lembrar que o regime é de metas de inflação, e não de metas de câmbio, e atuar para tentar moderar as oscilações do câmbio.

Parece que a única maneira de moderar a preferência pela liquidez é criar a expectativa de que abrir mão dela é rentável, isto é, criar a expectativa de que produzir e/ou encomendar máquinas é mais rentável do que receber os juros. Mas é exatamente essa expectativa frustrada que eleva a preferência pela liquidez: nessas condições, “você pode levar o burro até o rio, mas não pode obrigá-lo a beber água” ou “a política monetária pode esganar a economia, mas não pode empurrá-la”.

Para que a política monetária seja efetiva, isto é, para que redução de juros ajude a recuperar a atividade econômica, é preciso que a preferência pela liquidez seja moderada. Apenas um gasto que não seja movido pela rentabilidade é capaz de desarmar a armadilha, o gasto público.

O gasto, não a renúncia fiscal ou a redução de impostos. O racional para o privado que paga menos impostos é converter a diferença “economizada” em poupança, não em gasto. Se o governo contrata um privado para produzir, este só recebe se contratar trabalho e outros recursos. Ao fazê-lo, detona a realização da renda oferecida pelo governo. Renda que pode gerar mais renda se seus titulares não a pouparem, senão que gastarem. Não se trata de descobrir o moto perpétuo, mas de dar chance aos privados de assumirem riscos em condições mais favoráveis. Esperar que um privado assuma o risco de dar o ponta pé inicial é demasiado ingênuo. Já vimos que não acontece.

Aguardar que as reformas tenham o condão de libertar os “espíritos animais dos empresários” é imobilismo. Sempre se pode dizer que o que já foi reformado ainda não é o suficiente e que o problema foi Brumadinho, Argentina, caminhoneiros e um vírus novo.

Mas sempre se pode lembrar de que o prêmio exigido para se abrir mão da liquidez é a medida de nossa inquietação. Inquietos ficamos aguardando a volta da confiança pelas reformas, a recuperação da confiança pelos resultados de uma política fiscal contracionista, a preferência por uma restrição ao gasto público que nega ao Estado a capacidade de fazer política contracíclica.

Inquietos ficamos com o medo da trajetória explosiva da dívida pública? Que tal usar a situação atual como ponto de partida? A situação atual, diz o Tesouro, é de uma dívida que não passa dos 80% do PIB.

Para romper círculos viciosos, é preciso um argumento teórico que dê sustentação à decisão correta, uma motivação política que lhe dê sentido prático, competência e ousadia.

Se alguém já confundiu política contracíclica com estímulo ao crescimento, não se segue que a confusão seja inevitável. E alguém lúcido pode vigiar para que a confusão não ocorra. Um governo comprometido com o ajuste fiscal e o controle das contas públicas pode convencer a sociedade de que não apenas é possível, como é desejável, excluir investimentos do teto de gastos e mostrar competência para realizá-los sem cair na tentação de desperdiçar ou malbaratar recursos públicos.

*José Francisco Lima Gonçalves é economista chefe do Banco Fator e professor do Departamento de Economia da FEA-USP.

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