segunda-feira, 16 de março de 2020

Celso Rocha de Barros* - É hora do populismo de WhatsApp calar a boca

- Folha de S. Paulo

Não somos ricos como os EUA; não temos dinheiro para comprar uma segunda chance

O melhor argumento do conservadorismo popular é que os pobres estão perto demais do naufrágio para fazer marola.

O jovem rico que passa alguns anos bebendo e faltando aula vai ter outra chance, vai ser sustentado enquanto se recupera, vai fazer cursinho por quantos anos for necessário até entrar na faculdade. O jovem pobre que tentar a mesma coisa nunca mais vai ter qualquer chance de sair da pobreza. A moça rica que engravidar na adolescência vai fazer seu aborto em uma clínica de qualidade. A moça pobre na mesma situação vai ter que largar a escola para criar filho. O direito a fazer besteira é tão desigualmente distribuído quanto a renda.

O mesmo vale para países. Se os Estados Unidos quiserem brincar de Donald Trump, é estúpido, mas eles têm dinheiro para isso. Nós, brasileiros, nunca tivemos dinheiro suficiente para brincar de Bolsonaro, e agora isso vai ficar mais claro do que nunca.

A primeira reação de Donald Trump à crise da Covid-19 foi fingir que não estava acontecendo nada. O país perdeu a chance de conter o contágio em sua fase inicial, o que teria sido importantíssimo.

Mas as instituições americanas são muito mais fortes do que as brasileiras, e os Estados Unidos são muito mais ricos que o Brasil.

Quando a coisa ficou feia, democratas e republicanos no Congresso chegaram a um acordo para iniciar um ambicioso programa de combate à epidemia. O governo tem dinheiro mais do que suficiente para aplicar tantos testes de Covid-19 quanto forem necessários, para ajudar os empregados que tiverem que faltar ou as empresas que sofrerem com a recessão. Eles são os adolescentes ricos que têm dinheiro para comprar segundas, terceiras, quartas chances.

Do nosso lado, a situação é bem diferente. Durante as três semanas em que teve início uma guerra de preços de petróleo e uma epidemia global, o Brasil ficou parado esperando o resultado de uma passeata contra a democracia convocada pelo Presidente da República.

Bolsonaro declarou que a Covid-19 era “uma fantasia” e aproveitou para dizer que a eleição de 2018 foi fraudada. Adiou o Ustrapalooza em cadeia nacional de rádio e TV, elogiando os manifestantes, feliz porque o parlamento havia recebido “um recado tremendo”.

A bolsa de valores colapsou, o dólar disparou, as previsões de crescimento desse ano viraram uma piada, a Covid-19 se espalhou.

Nós não somos ricos como os americanos, não temos dinheiro para comprar segunda chance. Somos a jovem pobre que talvez não consiga abortar o golpismo com segurança.

A crise exige falar sério sobre problema difícil. Os economistas estão pensando em formas de flexibilizar de alguma forma os limites legais estabelecidos para os gastos públicos (teto, metas, etc.) como forma de combater a crise. É tecnicamente muito difícil. O Ministro da Saúde mostrou-se uma grata surpresa, admitindo desde o início a gravidade da crise e acionando o Mais Médicos. Sua tarefa também é tecnicamente muito difícil.

Por isso é hora do Brasil dar voz a burocratas qualificados, cientistas, e, sobretudo, políticos de cabeça fria. É hora do populismo de WhatsApp calar a boca. Independentemente do resultado dos exames, é hora de manter a família Bolsonaro e os olavistas em quarentena.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

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