segunda-feira, 18 de maio de 2020

O que a mídia pensa - Editoriais

• Bolsonaro e as atividades essenciais – Editorial | O Estado de S. Paulo

À medida que governadores e prefeitos de cidades de grande e médio portes são obrigados a ampliar as medidas de isolamento social, adiando a reabertura do comércio, o presidente Jair Bolsonaro vai fazendo o oposto. Depois de ter baixado no dia 7 de maio um decreto que inclui atividades industriais e construção civil como atividades essenciais, em meio ao avanço da pandemia da covid-19, na semana passada ele assinou outro decreto, desta vez incluindo academia de ginástica, salão de beleza e barbearia no rol de serviços essenciais.

“Academia é vida. As pessoas vão aumentando o colesterol, tem problema de estresse (sic). Vai ter vida mais saudável. Fazer cabelo e unhas é questão de higiene”, alegou. Um dia antes de anunciar o novo decreto ele informou que já tem outras atividades em mente para listar como essenciais. “Devo botar mais profissões como atividades essenciais. Vou abrir a economia”, disse ele a apoiadores, em frente ao Palácio do Planalto. Ao todo, a lista já contém 57 atividades classificadas como essenciais.

Ao serem classificadas como essenciais, do ponto de vista da União essas atividades e serviços ficam autorizados a continuar em operação no período de quarentena. O problema é que a estrutura federativa do País confere aos Estados e municípios prerrogativas legais para que, em suas jurisdições, possam fazer o oposto, adotando sistemas mais drásticos de rodízio de automóveis e circulação de pessoas e exigências mais severas para reabertura de fábricas e lojas. Têm poderes, inclusive, para adotar planos de emergência, restringindo o acesso da população ao transporte público para reduzir risco de contágio.

O compartilhamento de prerrogativas faz parte da estrutura descentralizada do federalismo – um modelo político-administrativo que está em vigor desde a primeira Constituição republicana brasileira, promulgada em 1891. Inspirada no modelo adotado nos Estados Unidos, essa estrutura descentralizada deixa para os poderes locais e regionais a responsabilidade sobre o cotidiano da vida econômica e social, ao mesmo tempo que atribui à União a responsabilidade pela articulação dessas atividades no plano nacional. Esse modelo pressupõe equilíbrio, diálogo e negociação entre municípios, Estados e União. O exemplo mais conhecido entre nós está na área da educação, na qual os secretários municipais e os secretários estaduais de Educação criaram duas entidades para representá-los nas negociações com a União.

Portanto, quando decide alargar o rol de atividades essenciais, como forma de limitar o âmbito de ação de prefeitos e governadores, Bolsonaro está cometendo um erro crasso. Por maior que seja a amplitude de seus decretos, ele não dispõe de prerrogativa legal para interferir na autonomia dos prefeitos e governadores. Com suas iniciativas demagógicas, Bolsonaro pode incitar politicamente patrões e empregados contra os governos municipais e estaduais. Mas não pode ir além dessa atitude deletéria.

Fosse mais responsável e conhecesse a Constituição que jurou cumprir, em vez de dificultar o combate à pandemia ele estaria exercendo um papel de articulador, estabelecendo marcos normativos e diretrizes nacionais em matéria de saúde pública, contribuindo para que o Brasil adotasse uma política racional e eficiente de combate ao avanço da covid-19.

Nem mesmo nos Estados Unidos, o país que tem a maior estrutura político-administrativa federativa do mundo, o presidente Donald Trump – ídolo de Bolsonaro – teve sucesso quando pressionou governadores republicanos para suspender as medidas de isolamento social. Alguns governadores chegaram a antecipar o retorno às aulas, mas o fizeram levando em conta os laudos técnicos de suas assessorias, e não os apelos de Trump.

É por isso que de nada adianta Bolsonaro insistir em ampliar o rol de atividades essenciais e pressionar as instâncias superiores do Judiciário a obrigar prefeitos e governadores à obediência. Isso só serve para desorientar os cidadãos expostos ao vírus letal.

• Pandemônio nas relações internacionais – Editorial | O Estado de S. Paulo

O Brasil precisa disseminar o antídoto da mobilização solidária em doses industriais

“No final do governo militar, Tancredo Neves declarou que se há um consenso de todas as forças políticas e partidárias do Brasil é na política externa. Hoje é o contrário – é o anticonsenso”, afirmou o diplomata Rubens Ricupero em debate na Brazil Conference Harvard MIT – promovida com apoio do Estado – com os ex-chanceleres Celso Lafer, Celso Amorim e Aloysio Nunes, além do professor Hussein Kalout.

Com debatedores de trajetórias tão diversas, saltou aos olhos o consenso sobre o desserviço prestado pelo governo. Como lembrou Celso Lafer, os princípios da diplomacia nacional definidos pelo Conselho do Império e corporificados na Constituição de 88 – “inteligente sem vaidade, franca sem indiscrição, enérgica sem arrogância” – têm sido furiosamente subvertidos pela estratégia do confronto que caracterizou a atuação de Jair Bolsonaro como militar, parlamentar, candidato e agora como presidente. “Sua diplomacia opera não na base da cooperação, mas do combate. Um combate a inimigos imaginários, fruto de uma visão de mundo que tem muito pouca relação com a realidade.” Para Aloysio Nunes, essa “tendência fantasmagórica” faz do governo uma “continuidade da campanha eleitoral” que agride os alicerces da diplomacia: a memória institucional (violentada pela “tábula rasa” dos cânones do Itamaraty), o realismo político (substituído por “uma perseguição de quimeras”) e o pragmatismo (degradado pela subserviência, nem “sequer aos EUA, mas a Donald Trump”).

A pandemia, ponderou Ricupero, pode acentuar tendências globais como o desgaste do sistema multilateral do pós-guerra, o declínio da liderança dos EUA e o acirramento de sua disputa com potências como China, Rússia e Irã. Além disso, apontou Kalout, a economia global terá de articular “um trinômio que aglutine a bioeconomia, o salto tecnológico e o desenvolvimento social”. Para os debatedores, a tradição brasileira do “pluralismo de contatos” oferece oportunidades de protagonismo, como um sistema global de prevenção de pandemias; um modelo que potencialize a produção agropecuária e minimize o impacto ambiental; a segurança alimentar; ou a cooperação com países em desenvolvimento (oferecendo, por exemplo, lições aprendidas com a implementação do SUS ou do Bolsa Família).

Ricupero apelou para uma plataforma de reconstrução das pontes detonadas pelo governo. Pouco depois, ele, seus colegas de mesa e os ex-chanceleres Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Francisco Rezek publicaram um manifesto catalogando agressões desta “antidiplomacia” a princípios constitucionais, como o apoio a medidas coercitivas em vizinhos; o voto na ONU pela ampliação de embargo unilateral; a aprovação oficial de assassinato político; ou a política de negação aos povos autóctones. “O sectarismo de ataques inexplicáveis à China e à OMS, somado ao desrespeito à ciência e à insensibilidade às vidas humanas, tornou o governo objeto de escárnio e repulsa internacional”, impondo “custos de difícil reparação como o desmoronamento da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de investimentos.”

Em réplica que antes de invalidar essas alegações as corroborou, o chanceler Ernesto Araújo ofendeu os signatários (“paladinos da hipocrisia”) e falou de “grandes acordos comerciais” e um “Brasil com mais prestígio do que jamais teve junto a quem conta”. Quem? O ministro não disse. Já seus críticos poderiam citar desde publicações prestigiadas pela elite econômica (Economist, Financial Times) ou médica (Lancet) à Comissão de Direitos Humanos da ONU. Mas, para Araújo, vozes como essas são expressão de uma “bolha”.

Como advertiu Aloysio Nunes, a pandemia escancara mazelas brasileiras, mas pode “despertar forças adormecidas na sociedade”. A mobilização solidária “é um belíssimo antídoto contra o populismo – a ideia de que uma pessoa resolve tudo sozinha”. O País precisa disseminar esse antídoto em doses industriais. Isso deve isolar ainda mais o governo, mas é a melhor maneira de reverter o isolamento internacional no qual ele está precipitando a Nação.

• Despencando na crise – Editorial | O Estado de S. Paulo

BC mostra impacto inicial da pandemia no conjunto da atividade econômica

O primeiro grande tombo da economia brasileira, desde a chegada do novo coronavírus, foi de 5,9%, segundo o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br). Essa foi a queda no mês de março, quando o País começou a reagir aos sinais da pandemia. Com o início do isolamento, a redução do consumo e a perda de ritmo na maior parte dos setores, a atividade caiu para o nível mais baixo desde março de 2009, quando o Brasil enfrentava a recessão causada pelas quebras no mercado financeiro internacional. Numa de suas bravatas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva usou a palavra marolinha para descrever o choque externo. O efeito foi mais parecido com o de uma ressaca, mas sem as mortes trazidas pela “gripezinha” mencionada pelo presidente Jair Bolsonaro. Como no Hemisfério Norte, os primeiros efeitos da covid-19 no Brasil foram prenúncios, até subestimados inicialmente, de milhares de mortes e de grandes perdas econômicas.

Os estragos agora previstos para a economia brasileira são muito maiores que aqueles sugeridos pelo IBC-Br em seus dados trimestrais e anuais. Segundo esses dados, a atividade no primeiro trimestre foi 1,95% menor que nos três meses finais de 2019. A comparação com o período janeiro-março do ano passado mostra um recuo de 0,28%. Em 12 meses ainda há um avanço de 0,75%, menor que o apontado em comparações anteriores, mas com certeza muito melhor que os números esperados nos levantamentos seguintes.

O balanço econômico oficial do primeiro trimestre deve ser conhecido no dia 29, data programada para divulgação do Produto Interno Bruto (PIB) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esses dados são publicados a cada três meses. Os números do IBC-Br, apresentados mensalmente, são menos detalhados e menos precisos, mas normalmente permitem uma boa percepção da tendência e do ritmo dos negócios.

A tendência é aquela mostrada pela queda mensal de 5,9% em março. A piora combina com os últimos números setoriais. Em março a produção da indústria foi 9,1% menor que no mês anterior, depois de ter aumentado 0,5% em fevereiro. Pela primeira vez em oito anos a queda ocorreu nos 15 locais cobertos pela pesquisa mensal. Ainda em março as vendas do comércio varejista caíram 2,5%, numa baixa atenuada pelo desempenho dos supermercados, onde as famílias se abastecem dos itens menos dispensáveis. O recuo nos serviços chegou a 6,9%, no pior resultado da série iniciada em janeiro de 2011.

O agravamento do quadro foi evidenciado pelos primeiros indicadores de abril. A fabricação de veículos foi a mais baixa da indústria automobilística desde 1957. Foram produzidas 1,8 mil unidades, soma equivalente a um dia de trabalho normal numa instalação como a da Fiat em Betim (MG). Estoques acumularam-se na maior parte das indústrias e do comércio, chegando a níveis próximos dos observados na recessão de 2015.

A Confederação Nacional do Comércio calcula queda anual de vendas de R$ 9,7 bilhões para R$ 5,6 bilhões. No mercado, a mediana das projeções do PIB apontava recuo de 4,11% em 2020, segundo a pesquisa Focus divulgada no dia 11 pelo BC. Essa pesquisa envolve consultas a cerca de uma centena de instituições financeiras e consultorias. Alguns grandes bancos e escritórios estimam, no entanto, desempenho bem pior, com quedas superiores a 7%. No dia 13 o governo federal apresentou sua nova estimativa – uma baixa de 4,7%. Para a produção industrial a mediana das previsões, segundo aquela pesquisa Focus, é de recuo de 3%. Esse número pode parecer otimista, mas qualquer queda será desastrosa, porque a base de comparação, 2019, é muito ruim.

O efeito mais doloroso da crise começa a aparecer nos indicadores de emprego. No primeiro trimestre a desocupação, de 12,2% da força de trabalho, foi 1,3 ponto maior que a dos três meses finais de 2019. Eram 12,9 milhões de desempregados e o número, tudo indica, aumentou em abril. Tem aumentado em outros países, mas nenhum outro presidente pergunta “e daí?” quando lhe falam das mortes na pandemia.

• Pauta-bomba ameaça a recuperação – Editorial | O Globo

Projetos de elevação de impostos sobre bancos e empresas em geral têm de ser barrados no Congresso

Menos difícil será a reconstrução do país se governo e políticos tomarem as decisões certas sobre o que fazer e também o que não fazer. Este é o momento de se evitarem fórmulas fáceis na aparência, mas que criarão ainda mais dificuldades, postergando a retomada do crescimento. Em vez disso, a economia voltará ao estado de semiestagnação em que se mantinha até o fim do ano passado. Uma questão-chave será como enfrentar um gigantesco déficit fiscal que já cresce — os R$ 124 bilhões negativos do ano passado devem ser multiplicados por seis ou sete —, com um programa de ajuste bem formulado, reformas, algumas das quais já desenhadas e sem populismo.

A pauta do Congresso é o espelho dos anseios da sociedade, em que se misturam propostas bem fundamentadas e projetos que, se aprovados, explodirão como bombas à frente. É preciso desativá-las. Deputados e senadores têm deliberado sobre projetos de urgência, para permitir o atendimento a milhões de trabalhadores informais, às pequenas e médias empresas etc., a fim de preservar sinais vitais da economia, para se manter uma base a partir da qual a roda da produção volte a girar no mais curto espaço de tempo possível. Mas, se uma série de propostas que tramitam no Congresso longe da atenção geral for aprovada, a crise da saúde passará, e a econômica se aprofundará.

Projetos que constituem uma pauta-bomba de grande poder de destruição estão em diversos estágios de discussão no Legislativo. Costumam fazer sentido aos menos informados e deixam transparecer uma boa intenção em defesa dos pobres, principalmente das vítimas indefesas da crise deflagrada pelo novo coronavírus. Mas, na verdade, emperrarão a volta do crescimento e, sem empregos e salários, a economia não gira. Prejudicarão os pobres.

Os bancos estão sendo um setor especialmente visado nesta corrida de políticos em busca de recursos para socorrer a receita tributária dos governos. Há uma cesta de propostas: limitação dos juros do cartão de crédito e do cheque especial — agora por lei —, proibição de execuções judiciais cíveis de consumidores, com retroatividade a janeiro, quando não havia registro de Covid-19 no país; novo aumento da Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL) das instituições financeiras, desta vez para 50%; moratória no crédito consignado.

De imagem historicamente antipática, não só no Brasil, talvez pelo grande volume de dinheiro que passa por ele, o setor bancário, se estrangulado tributariamente — os bancos já sustentam uma carga tributária de 45%, contra 34% na indústria —, disseminará dificuldades na economia, pelo aumento na seletividade na concessão de crédito, por exemplo. A indesejada tendência à concentração bancária também ganhará um reforço. Resultado: mais dificuldades para os tomadores de empréstimos.

O avanço sobre a receita de pessoas jurídicas e renda das físicas é um caminho insano na recessão. Entre diversos projetos que buscam a ilusória bala de prata contra a crise fiscal reaparece um indefectível empréstimo compulsório sobre as empresas em geral, resgatado do baú da década de 80 do século passado. Cobrado sobre combustíveis e venda de veículos novos, jamais foi devolvido. Hoje aconteceria o mesmo, por suposto.

Além disso, incidiria sobre lucros em queda — se eles existirem. Se aprovado, levará empresas à falência. Devedoras de bancos, forçarão estes a fechar as portas. Falências, crise bancária, o caminho mais curto para uma depressão histórica. Deve ficar entendido que não há saídas fáceis. As soluções existem e precisam ser entendidas pelos políticos.

• Com base na Ciência, Argentina e Uruguai controlam a pandemia - Editorial | O Globo

Alberto Fernández e Lacalle Pou têm conseguido enfrentar a Covid-19 com algum êxito político

Há sete semanas o presidente argentino Alberto Fernández só decide sobre a pandemia depois de consultar um comitê de onze infectologistas e epidemiologistas. Iniciativas balizadas pelo conhecimento científico lhe permitiram manobrar com relativo êxito, até agora, no controle da disseminação do novo coronavírus.

Fernández impôs medidas duras, inclusive policiais, para garantir o distanciamento social, principalmente, na região metropolitana de Buenos Aires, onde se concentra praticamente metade da população argentina. Ele não está numa situação política das mais confortáveis, porque governa um país em grave crise social, abalado pela superinflação (mais de 50% ao ano) e que amarga o nono calote da sua dívida externa — estimada em US$ 350 bilhões (quase R$ 2 trilhões).

São fortes as pressões contra a quarentena, mas ele resiste: “Sair sem critérios, agora, seria levar à morte milhares de argentinos”, repete. Pesquisas de opinião indicam que Fernández acertou ao balizar as decisões sobre a pandemia na Ciência, por mais drásticas que sejam para a vida econômica e social de 44 milhões: as taxas de aprovação do seu governo agora beiram 80%.

Do outro lado da bacia do Prata, no Uruguai, o presidente Luis Lacalle Pou vive situação política similar à de Fernández. A propagação do vírus entre uruguaios ocorre de maneira mais lenta do que entre argentinos — e, em ambos os casos, muito longe da curva de contágio no Brasil.

Lacalle Pou é um liberal, cujo ideário político é quase oposto ao do peronista Fernández, situado na centro esquerda. As pressões que enfrenta são, também, opostas. Parte dos uruguaios clama ao governo por medidas duras, como toque de recolher em Montevidéu. Ele resiste, com base em recomendações técnicas, e tem conseguido aumento nas taxas de aprovação. Argumenta com a necessidade de prudência na escalada de medidas sanitárias numa situação em que, por enquanto, não há risco de colapso da rede de saúde.

Cautela não significa descuido. Há dias, Lacalle Pou visitou postos militares na fronteira com o Brasil, percebido como ameaça epidemiológica. Ao mesmo tempo, agiu para garantir US$ 1,5 bilhão (R$ 8,5 bilhões) em créditos de órgãos multilaterais a fim de socorrer empresas e pessoas afetadas.

Por caminhos diferentes, e com base em recomendações científicas, os presidentes do Uruguai e da Argentina, sócios do Brasil no Mercosul, estão conseguindo atravessar a pandemia com algum êxito político.

• Salvo-conduto – Editorial | Folha de S. Paulo

MP de Bolsonaro dificulta em excesso punir servidores por erros na pandemia

As decisões concretas de Jair Bolsonaro, com exceções cada vez mais raras, são guiadas pelo objetivo de proteger suas tropas —ele próprio, família, aliados e corporações do serviço público, em particular policiais e Forças Armadas.

Publicada na quinta-feira (14), a medida provisória 966, que pretende aumentar a imunidade de servidores contra processos civis e administrativos, é um exemplo dessa exorbitância corporativista.

Entre especialistas do direto, o texto foi considerado de baixa qualidade técnica e vago o bastante para, no limite, conceder carta branca a funcionários do Estado —e talvez também a Bolsonaro e seus auxiliares de primeiro escalão.

A MP determina que, no enfrentamento da pandemia de Covid-19 e seus impactos sociais e econômicos, agentes públicos somente poderão ser responsabilizados “se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas”.

Diz ainda o texto que o “mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público”. Soa como um salvo-conduto, em que provas de ação daninha são tornadas quase irrelevantes.

A responsabilidade deixa de ser objetiva? Consultados em reserva, ministros do Supremo Tribunal Federal consideram que a medida atenta contra a Constituição.

Os critérios de enquadramento das atitudes dos servidores se mostram fluidos. Institui-se um princípio de irresponsabilidade jurídica e, em decorrência, um incentivo para o cometimento de irregularidades, dada a frouxidão do dispositivo legal baixado por Bolsonaro.

Parece inviável, por exemplo, comprovar o que constitui um erro “grosseiro”. Trata-se de “erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”, lê-se na MP. A uma subjetividade essencial são juntados predicados vaporosos.

Com boa vontade, pode-se dizer que a MP parece derivada, em tese, da boa intenção de evitar a paralisia decisória devido a rigorismos indevidos na fiscalização de atos de agentes públicos.

O mesmo objetivo deu origem à controversa lei 13.655/18, de teor semelhante —contestada pela comunidade jurídica e por órgãos de controle, bem como alvo de questionamento no Supremo.

Se pode existir o problema, a emenda piorou o soneto, com o acréscimo de insegurança jurídica.

Não será por meio de mais uma tentativa de estabelecer um excludente de ilicitude —para usar um termo da agenda policial cara a Bolsonaro— que vão se corrigir falhas legais ou punições extravagantes de funcionários públicos.

No fim das contas, o presidente mexeu de modo açodado com uma legislação estabelecida e orientada pela Constituição. Causa indignação, mas não espanto.

• Enfermeiros sob risco

Número elevado de mortes na pandemia evidencia condições de trabalho precárias

Essenciais na linha de frente do combate à Covid-19 em todo o mundo, enfermeiros e enfermeiras enfrentam desafio extra no Brasil.

Os dados mais recentes do Conselho Federal de Enfermagem apontam que as mortes desses profissionais oficialmente confirmadas e suspeitas somam 108 no país, com 4.128 contaminados até 12 de maio, a maior parte em São Paulo.

Trata-se de números que não podem ser tidos como normais, mesmo em tempos de pandemia.

O Brasil responde por 38% dos óbitos globais dessa categoria, segundo o Conselho Internacional dos Enfermeiros. Nesse quesito supera, inclusive, os EUA, onde o total de casos fatais na população é maior que o nosso —mas não mais de 27 médicos e enfermeiros foram levados pela doença.

Os dados alarmantes refletem a constante insegurança ocupacional a que são submetidos esses profissionais no país. Enquanto sobe a curva de contaminação pelo novo coronavírus, permanece a precariedade das condições de trabalho no setor de saúde —resultante de restrições orçamentárias, sim, mas também de gestão deficiente.

No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, enfermeiros estão entre os servidores da saúde que continuam trabalhando sem receber salários em diversas unidades.

Com análises caso a caso, a categoria mereceria constituir exceção na correta proposta do governo federal de suspensão de reajustes de vencimentos do funcionalismo —uma contrapartida necessária ao socorro financeiro da União aos governos subnacionais.

Há mais problemas a enfrentar além da remuneração, contudo. Faltam ainda aos profissionais de enfermagem, em muitos locais, o mínimo essencial para o combate à pandemia, como o acesso a máscaras de proteção e outros equipamentos de proteção individual.

Outras medidas devem incluir escalas de trabalho que isolem, na medida do possível, as unidades de atendimento de casos suspeitos ou confirmados de Covid-19 das demais, para evitar contaminação.

Colocar enfermeiros e enfermeiras sob maior ameaça tão somente contribuirá para o agravamento da crise sanitária já instalada. Protegê-los se faz essencial na pandemia, mas também depois dela.

• Discussão fora de hora sobre imprimir dinheiro – Editorial | Valor Econômico

A história mostra que em situações extremas, a separação entre os bancos centrais e os respectivos tesouros pode ser tênue

O Banco Central poderá ter que lançar, no futuro, um programa de expansão quantitativa, dependendo da evolução da crise causada pelo novo coronavírus. Mas essa é uma discussão fora de hora. Ainda há espaço para cortes na taxa básica de juros, caso se mostre necessário ampliar os estímulos para levar a inflação à meta.
Bancos centrais de economias desenvolvidas, do Japão, dos Estados Unidos e da Zona do Euro, já fizeram os seus programas de expansão quantitativa em crises passadas e na atual. Não há nada que impeça o Brasil de fazer o mesmo, caso se encontre numa armadilha de liquidez. O essencial é que a operação se limite às suas funções monetárias, sem que o Banco Central se aventure no financiamento dos gastos fiscais, que mais adiante fatalmente levariam o Brasil de volta à trilha da hiperinflação.

Boa parte da confusão sobre uma possível emissão de dinheiro para financiar a dívida pública se deve à falta de maiores explicações do governo sobre porque pediu que fosse concedido ao Banco Central, na emenda Constitucional nº 106, de 7 de maio de 2020, poderes para comprar títulos de emissão do Tesouro nos mercados secundário e internacional durante o estado de calamidade pública decorrente da pandemia.

Ajuda pouco o ministro da Economia, Paulo Guedes, ter dito mais de uma vez que o Banco Central poderá imprimir dinheiro para combater a crise. Declarações como essa do chefe maior da área fiscal levantam o fantasma de que o Banco Central venha a financiar os gastos do Tesouro.

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, mencionou algumas vezes que a emenda constitucional permite fazer no Brasil uma “operação twist”. Ou seja, a exemplo do que fez o Federal Reserve, comprar títulos públicos para reduzir a inclinação da curva de juros futuros e baratear os custos de captação das empresas. Mais recentemente, explicou que, por enquanto, a intenção é usar o instrumento apenas para estabilizar o mercado de dívida pública quando estiver disfuncional. Em momentos de pânico, pode ser útil a atuação do Banco Central para reconstruir os referenciais de preços.

Hoje, o Tesouro Nacional vem desempenhando com uma boa dose de competência essa função, mas os seus recursos são mais limitados.
Com o aprofundamento da crise econômica, porém, pode se tornar necessário o Banco Central usar instrumentos não convencionais de política monetária para cumprir as metas de inflação. O mercado projeta uma inflação de 1,76% para este ano e 3,25% para o próximo, abaixo das metas, respectivamente de 4% e 3,75%. Nessas condições, é dever do BC prover estímulos. Os juros estão em 3% ao ano e, ao longo dos meses, poderão seguir caindo, caso se mostrem infundados os receios do BC de que há limites para baixar a taxa Selic devido à nossa fragilidade fiscal. Se os juros chegarem a zero com a inflação abaixo da meta, chegará a hora de uma expansão quantitativa.

Mas será preciso observar a linha tênue que existe entre uma operação monetária e fiscal. O texto da Emenda Constitucional cria algumas salvaguardas, ao permitir apenas a compra de papéis no mercado secundário, e não diretamente do Tesouro. Outro detalhe importante é que, no Brasil, não existem os depósitos voluntários dos bancos. Eles poderiam fazer a dívida pública desaparecer, se o BC comprar títulos e enxugar o excesso de liquidez por meio desse instrumento.

Na essência, a diferença entre o BC comprar títulos públicos para fazer política monetária e para financiar o Tesouro está no prazo das operações. Se a aquisição for temporária, é uma operação monetária, se for permanente, passa a ser uma operação fiscal. Se os passivos acumulados pelo BC para comprar títulos forem contabilizados na estatística da dívida pública, os limites fiscais desse tipo de operação ficarão sempre explícitos.

Alguns economistas têm argumentado que o ponto é justamente esse: os gastos fiscais para combater a pandemia são elevados e, portanto, será preciso que o BC imprima dinheiro para financiar o Tesouro. A história mostra que em situações extremas, como guerras, a separação entre os bancos centrais e os respectivos tesouros pode ser tênue. Mas, vista de hoje, essa discussão também é prematura. O desafio concreto é desenhar políticas públicas efetivas que façam com que os recursos, de fato, cheguem a quem mais precisa. E, antes de taxar a sociedade com um imposto inflacionário, que afeta sobretudo os mais pobres, cabe exigir a contribuição entre aqueles que são mais privilegiados no Orçamento.

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