• Saúde militarizada – Editorial | Folha de S. Paulo
Assusta o excesso de fardados na pasta que deveria ser centro contra pandemia
Na terça-feira (19), o Brasil cruzou uma barreira macabra ao contabilizar mais de mil mortos pelo coronavírus num intervalo de 24 horas. Foram 1.179 vítimas do patógeno, segundo o Ministério da Saúde.
O número é certamente maior, dada a notória subnotificação verificada aqui, mais uma entre tantas mazelas locais que a Covid-19 veio apenas sublinhar —e também pelo colapso do sistema funerário do país, que mal consegue registrar os dados básicos de seus mortos (em muitos lugares o laudo omite a cor da vítima, por exemplo).
Tem-se morrido às centenas diariamente de genéricos “problemas respiratórios”, em número várias vezes superior à média histórica brasileira, para ficar apenas numa das rubricas lavradas em atestados de óbitos que devem mascarar novas vítimas da nova doença.
Mesmo considerando somente o número oficial, é aterradora a comparação com as principais causas de morte pré-coronavírus: doenças cardiovasculares, sejam infartos ou AVCs (980 pessoas na média diária de 2018), câncer (624) e causas externas, como acidentes de trânsito e violência (412), segundo as informações mais recentes do DataSUS, do Ministério da Saúde.
As cifras são tristemente eloquentes também no número de contaminados, de 291,6 mil oficialmente contabilizados até esta quarta-feira (20), o que faz o Brasil saltar de sexto para terceiro lugar no ranking mundial, atrás apenas de EUA (1,5 milhão) e Rússia (299 mil). Um de cada sete novos casos no mundo acontece aqui.
Outra marca lamentável foi atingida nesta semana —pelo governo Jair Bolsonaro. Ao empossar um coronel do Exército como seu número dois, o ocupante interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, somou 17 militares nomeados, de qualificação ignorada, apenas nos últimos dias. É o que o humorista José Simão chamou de “Milistério”.
Blagues à parte, vai sendo desmontado aos poucos o quadro técnico organizado pelo ex-ministro Henrique Mandetta, a maioria com experiência na gestão da saúde pública federal, celebrizada em entrevistas coletivas diárias pelo uso dos coletes pretos do SUS.
A militarização começou já na gestão do sucessor de Mandetta, Nelson Teich, o Breve, cujas únicas marcas nos 29 dias de atuação terão sido o semblante sombrio e a tutelagem verde-oliva. Mas esta não se restringe à pasta.
Segundo levantamento mais recente deste jornal, feito no fim de 2019 por meio da Lei de Acesso à Informação, eram 2.500 militares em cargos de chefia ou assessoramento no governo, um recorde desde a redemocratização do país.
O número, possivelmente maior hoje, não inclui o próprio presidente Jair Bolsonaro, um tenente indisciplinado e conspirador que se tornou capitão ao ser obrigado a deixar as fileiras do Exército, seu vice, general Hamilton Mourão, e 9 de seus 22 ministros atuais.
O caso da Saúde é o mais visível. Causa alarme a presença cada vez maior de fardados numa pasta que deveria ser o centro científico e estratégico do combate à pandemia que vitimiza e empobrece uma geração no Brasil e no mundo.
Ao trocar a experiência na coisa pública pela obediência cega e a priorização da logística, Bolsonaro nem sequer disfarça seu objetivo de fazer do ministério um empório de distribuição da cloroquina e da hidroxicloroquina, suas obsessões irracionais.
As drogas —de eficácia ainda não comprovada no combate aos efeitos do coronavírus em sua fase mais branda e com efeitos colaterais importantes— tornaram-se a bandeira do governo e, desde a saída de Mandetta, sua única resposta visível à pandemia.
Nesta quarta, após determinação presidencial, o ministério divulgou documento que amplia a possibilidade de uso dos medicamentos para paciente com sinais e sintomas leves. Até então, o protocolo oficial os recomendava somente para casos graves e com monitoramento em hospitais.
No cálculo bolsonarista, não chancelado por nenhum estudo sério e não adotado por nenhum país do mundo até agora, a disseminação do medicamento levaria a uma diminuição dos casos, o que possibilitaria a implantação de um isolamento seletivo (idosos e grupos de riscos, por exemplo), com retomada das atividades normais pelo resto da população e consequente recuperação econômica.
A preocupação com a reabertura das empresas é legítima, e os governos deveriam de fato estar preparando seus planos de abandono gradual das restrições. Entretanto o presidente apequena a discussão, contaminando-a com o vírus da política inconsequente.
• Radicalismo domina a Saúde e a Cultura – Editorial | O Globo
Bolsonaro interfere no combate à Covid-19, e núcleo ideológico deve ganhar bunker na ‘guerra cultural’
Afastar dois médicos do cargo de ministro da Saúde na mais grave epidemia mundial em cem anos, deixando no posto um general do Exército, levado a liberar um protocolo que permite o uso de um medicamento sem eficácia comprovada contra a Covid-19, e ainda capaz de causar sérios efeitos colaterais, confirma que a radicalização do presidente Bolsonaro não tem limites. Nada o sensibiliza, nem o Brasil ter atingido ontem a marca de 291.579 infectados e 18.859 mortos, números trágicos, mais ainda se considerarmos a existência de grande subnotificação.
O escárnio de Bolsonaro diante da tragédia em marcha ficou registrado no vídeo em que o presidente brinca com a palavra “cloroquina”, nome do medicamento que ele insiste em incluir nas prescrições contra a Covid-19, mesmo sem qualquer respaldo médico-científico. Importa é apressar o fim da epidemia, para que os danos causados pelo Sars-CoV-2 na economia sejam abreviados e não prejudiquem seus projetos eleitorais para 2022.
Pode ser coincidência o aprofundamento da intervenção na Saúde, com as demissões de Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, ter na sequência a esperada saída de Regina Duarte da Secretaria de Cultura, depois que a atriz não se entendeu com o núcleo mais ideológico do bolsonarismo, nem conseguiu representar no governo o meio artístico, muito atingido pela crise econômica, sem que recebesse da secretária qualquer ajuda. Coincidência ou não, os fatos comprovam que o movimento de radicalização de Bolsonaro atinge o Ministério da Saúde e a Cultura.
O presidente quer o ministério alinhado à sua campanha contra o isolamento social, postura que dificilmente será apoiada por especialistas que tenham carreira a zelar. Tampouco estarão de acordo com a disseminação de um medicamento que vem sendo reprovado no uso contra a Covid-19 em testes amplos, feitos com rigor dentro e fora do país. Entrevistado ontem pela GloboNews, o infectologista Jean Gorinchteyn, do hospital Emílio Ribas, de São Paulo, citou uma pesquisa do British College, em que também se detectaram efeitos colaterais perigosos em rins, fígado e coração. Mas o entorno de Bolsonaro foi contaminado, tudo indica, em contatos com a extrema direita republicana ligada a Trump, pela expectativa de que a cloroquina resolverá as dificuldades políticas do presidente. Trump tenta a reeleição em novembro.
Bolsonaro, na prática, assumiu o Ministério da Saúde. Mantendo o general Eduardo Pazuello, para assinar novos protocolos, ou um médico que aceite esta tutela. Na Cultura, é evidente que a Secretaria na visão bolsonarista tem de ser um bunker na “guerra cultural” e também para esmagar a esquerda onde ela esteja, no meio artístico e cultural. Regina Duarte até fez alguma coreografia, como na patética entrevista à CNN Brasil, mas o chamado núcleo ideológico quer mais. Deseja ações incisivas. Bolsonaro pode ampliar seus esquadrões de radicais.
• Não é admissível criar novos tribunais, ainda mais nesta crise – Editorial | O Globo
Antes da pandemia, o custo da Justiça no país já era recorde, com gasto só comparável ao da Suíça
É inoportuna, para se dizer o mínimo, a persistência do lobby político-judicial para criação de mais um Tribunal Regional Federal (TRF), com jurisdição em Minas.
Esse projeto tem sido acalentado há pelo menos uma década por expoentes do Judiciário, como é o caso do presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio Noronha, que tem se empenhado no aval tácito do presidente Jair Bolsonaro, e de alguns parlamentares no Congresso.
Faz parte de um “pacote” de novos tribunais. Além de Minas, seriam criados TRFs no Amazonas, na Bahia e no Paraná. Cada um representaria despesa de R$ 270 milhões. Juntos, custariam R$ 1 bilhão na implantação. Além disso, seriam necessários gastos na manutenção, 18 desembargadores e novo quadro burocrático.
É absolutamente injustificável, sob qualquer aspecto. É chocante para um país à beira de encerrar mais uma década perdida, cuja economia já estava em frangalhos antes mesmo das consequências devastadoras da pandemia do novo coronavírus.
Antes da pandemia, o custo da Justiça no Brasil já era recorde, com nível de gasto que, segundo pesquisas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da American University (EUA), só tinha paralelo na Suíça, cuja população é 25 vezes menor e a renda, cinco vezes maior. A sociedade já pagava muito por um braço da burocracia estatal cuja característica é a lentidão.
O Poder Judiciário consome cerca de 1,3% do Produto Interno Bruto, ou quase 2,7% de tudo que é gasto na União, nos estados e municípios. Na atual crise, convém lembrar que o Estado brasileiro custa mais de 34% de toda a riqueza produzida. E o peso dessa fatura tende a aumentar para os cidadãos, contribuintes ou não, porque o país empobreceu.
Como Brasília, às vezes, parece viver uma realidade paralela, é preciso lembrar que o custo desse empobrecimento está recaindo, pesadamente, sobre aqueles que financiam o orçamento público — hoje, um vetor de concentração da renda nacional. Houve redução salarial significativa (de 25% a 70%) para mais de sete milhões de empregados na indústria e em serviços, sobretudo no comércio. Trabalhadores informais amargam perda total de renda. E o contingente de desempregados, que antes da crise já superava 11 milhões, segue crescente.
Não há lógica em iniciativas do gênero. As pressões no Congresso para levar adiante a aprovação de novos tribunais regionais federais só têm coerência na eventual necessidade particular de alguns líderes e partidos, direta ou indiretamente enredados em investigações.
• Políticas doentias – Editorial | O Estado de S. Paulo
O voluntarismo eleitoreiro de Trump e Bolsonaro são o exemplo mais crasso de ruptura entre a política e a ciência, no momento em que o mundo mais precisa delas
Em meio à pior crise de saúde pública desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi fundada, em 1948, seus membros aprovaram, na sua 73.ª Assembleia-Geral, uma resolução para o acesso equitativo à distribuição das tecnologias e insumos para combater o vírus, além de uma investigação independente sobre o desempenho da própria OMS. “A covid-19”, disse o diretor-geral Tedros Adhanom, “nos lembra de que, apesar de todas as nossas diferenças, somos uma só raça humana, e somos mais fortes juntos.” Mas, apesar das palavras elevadas, a Assembleia serviu mais para lembrar das fraturas que a politização da pandemia está provocando nacional e internacionalmente.
No dia de inauguração da Assembleia, o presidente dos EUA, Donald Trump, revelou que estava tomando hidroxicloroquina preventivamente. No Brasil, dois ministros da Saúde foram rifados em menos de um mês pelo presidente Jair Bolsonaro por se recusarem a recomendar o uso indiscriminado da cloroquina. Agora, o ministro interino, o general Eduardo Pazuello, acaba de aprovar o uso da droga para todos os pacientes desde os primeiros sintomas da doença. Pazuello também nomeou vários assessores – todos militares, ninguém ligado à área da Saúde.
Embora não definitivos, os estudos sobre a cloroquina se mostraram frustrantes. Tudo indica que ela não só não tem efeitos sobre a covid-19, como aumenta os riscos de danos colaterais ao coração, ao fígado, ao rim e à medula. Assim como Trump contraria as orientações das autoridades médicas americanas, Bolsonaro se choca contra os especialistas das associações médicas e do Ministério da Saúde. As sociedades brasileiras de infectologia e de pneumologia, juntamente com a Associação de Medicina Intensiva, assinaram um documento desautorizando o uso da cloroquina como tratamento de rotina. Ontem, a própria OMS alertou para os danos colaterais da droga.
No plano internacional, a Assembleia da OMS começou sob a ameaça de Trump de cortar definitivamente o financiamento americano – atualmente suspenso. Em carta ao diretor-geral, Trump disse que a OMS mostrou “alarmante falta de independência” em relação a Pequim e se recusou a compartilhar “informações críticas” por “razões políticas”. Os EUA também repudiaram uma resolução da OMS apoiando os direitos dos países pobres de ignorar patentes para acessar vacinas e tratamentos para a covid-19.
Com 72 anos, a OMS certamente precisa de reformas. Apenas 15% dos seus recursos são dedicados a prevenir epidemias, e sua conduta na crise está aberta a críticas. As alegações de que ela demorou a declarar a pandemia têm fundamentos, e, enquanto a China omitia informações e intimidava e punia médicos que denunciaram o novo vírus, o diretor-geral elogiava o país por “estabelecer um novo padrão no controle de surtos”. A China tem muito a esclarecer, e membros da comunidade internacional – como União Europeia, Austrália, Reino Unido e Japão – têm se pronunciado vigorosamente nesse sentido. Mas as acusações de Trump de que a OMS é “uma marionete da China” é puro nonsense. Com efeito, enquanto a contribuição da China em 2019 foi de US$ 86 milhões, a dos EUA foi de US$ 893 milhões, e boa parte dos técnicos da Organização é de servidores públicos americanos.
O fato é que a tensão crescente a que Trump está submetendo as relações bilaterais com a China – seja na esfera comercial, tecnológica ou militar – tem claro propósito eleitoral. Mas seu assalto à OMS não só deve enfraquecer a liderança global dos EUA, como acabará abrindo espaço para a narrativa triunfalista da China. Pior: ele ameaça minar e confundir a resposta global à pandemia, justamente no momento em que a coordenação internacional se mostra vital para encontrar tratamentos e vacinas. A OMS pode e deve passar por uma reestruturação, e a investigação aprovada na Assembleia será capital para isso. Mas no momento é a única organização global de saúde de que o mundo dispõe. O voluntarismo eleitoreiro de Trump e Bolsonaro é o exemplo mais crasso de ruptura entre a política e a ciência, precisamente no momento em que o mundo mais precisa delas.
• Crime ambiental – Editorial | O Estado de S. Paulo
Se múltiplas atividades pararam em decorrência da pandemia, o desmatamento ilegal parece seguir o seu curso, alheio aos profundos impactos
Nem uma emergência sanitária sem precedentes neste século foi capaz de deter a sanha dos destruidores da Amazônia. Em abril, o som das motosserras e do crepitar das folhas secas soou muito mais alto na região, como há uma década não se ouvia nesta época do ano. Se múltiplas atividades pararam em decorrência da pandemia de covid-19, o desmatamento ilegal da floresta parece seguir o seu curso completamente alheio aos profundos impactos causados pela doença no Brasil e no mundo. Um triste fato que ilustra bem o comportamento irresponsável e leniente do presidente Jair Bolsonaro, que tanto desdenha da gravidade da pandemia – “o Brasil não pode parar” – como faz pouco-caso das preocupações globais com a preservação do meio ambiente.
De acordo com os dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), organização de interesse social voltada para a pesquisa para o desenvolvimento sustentável da Região Amazônica, 529 km2 de floresta foram desmatados no mês passado. Para dar ao leitor a dimensão deste crime ambiental, a área desmatada em apenas 30 dias é maior do que a ocupada pela cidade de Porto Alegre (496,8 km2) e corresponde a um terço da cidade de São Paulo (1.521 km2). O total de área verde destruída no mês passado representa um salto de 171% em relação a abril de 2019. Tem-se aqui um retrato bem-acabado do profundo desprezo que o governo do presidente Jair Bolsonaro, incluindo seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, nutre pela chamada questão ambiental.
No início deste mês, o presidente Bolsonaro assinou um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), com vigência de 11 de maio a 10 de junho, que, na prática, submete o trabalho de combate ao desmatamento ilegal realizado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e pelo Instituto Chico Mendes (ICMBio) na Amazônia ao controle do Ministério da Defesa, e não ao do Meio Ambiente. Por força do decreto, toda a estratégia de combate ao desmatamento ilegal na Amazônia e as abordagens de campo deverão ser previamente autorizadas pelo Exército. Se a ideia é reforçar o combate aos crimes ambientais dando mais poder para os comandos militares da região, o tempo irá dizer, quando vierem a público os novos relatórios do SAD. O fato é que o esvaziamento de órgãos historicamente ligados à proteção ambiental, como o Ibama e o ICMBio, não é alvissareiro. Noutras palavras: tivesse genuína preocupação com a preservação ambiental, o presidente Jair Bolsonaro teria reforçado o papel desses órgãos de fiscalização, e não recorrido aos militares, como quase sempre faz quando se vê diante de um problema.
Além do dano ambiental divulgado pelo Imazon, gravíssimo por si só, o desmatamento recorde na Amazônia lança luz sobre o enorme risco sanitário a que estão expostas as comunidades indígenas da região em meio à pandemia de covid-19. A Região Norte tem sido duramente castigada pela doença. A população indígena, notadamente os ianomâmis, que já têm cerca de 20 casos de infecção pelo novo coronavírus registrados em seu Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei), é uma das mais vulneráveis.
A devastação ambiental divulgada pelo Imazon se soma à absoluta incompetência e insensibilidade do presidente Jair Bolsonaro para lidar com a pandemia de covid-19 no processo de desmoralização do Brasil no terreno das relações internacionais. Cada vez mais, ouvir a voz do País importa cada vez menos no trato de questões mundiais relevantes graças ao diligente trabalho empreendido por Bolsonaro, Salles e pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, para desconstruir a imagem brasileira no campo da diplomacia e da proteção do bioma. Com esta trinca, o Brasil caminha a passos largos para se tornar menos do que um pária internacional, mas uma nação absolutamente irrelevante numa miríade de temas caros à chamada comunidade internacional, uma inglória e inédita posição na história do País.
• Empresas fora do radar oficial – Editorial | O Estado de S. Paulo
Longe do dia a dia, governo falha no socorro de crédito a pequenas empresas
Nenhum golpe de gênio impedirá um desastre econômico neste ano, mas os danos poderiam ser menores com um pouco mais de eficiência no desenho e na execução das políticas – por exemplo, no fornecimento de crédito a pequenas empresas. Com menor fôlego financeiro, são as menos capazes de sobreviver a uma crise severa, mas são também a maior fonte de empregos e compõem a maior parte da atividade econômica. Hoje essas empresas precisam de crédito como os doentes mais graves precisam de oxigênio. No entanto, os pequenos negócios têm enorme dificuldade para obter financiamento, como relata o Sebrae, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. Segundo informe recém-distribuído, 86% das pequenas firmas em busca de financiamento ou tiveram seus pedidos negados ou ainda esperavam resposta no começo de maio. A história cobre todo o período desde o início do distanciamento social.
Boas intenções têm sido insuficientes para produzir resultados em várias ações anticrise iniciadas pelo governo. Nas políticas de crédito, assim como na distribuição de ajuda a trabalhadores informais e de baixa renda, a realidade tem ficado muito além da imaginação da equipe econômica. Há um abismo entre seus programas bem comportados e as condições efetivas de uma grande e variada população, espalhada num território continental e caracterizada por amplas desigualdades. Com menos burocracia, mais atenção aos objetivos e mais espírito prático, a equipe de governo dos EUA tem conseguido chegar mais facilmente a quem necessita de auxílio, apesar da dimensão dos programas, já superiores a US$ 2 trilhões.
Não se trata, no caso do crédito procurado por pequenos empreendedores, de mais uma queixa publicada por uma entidade do setor privado. Se fosse, mereceria atenção e muito interesse. Mas o Sebrae tem características especiais. Criado em 1972 como ferramenta oficial para apoiar o empreendedorismo, funciona desde 1990 como órgão social sem fim lucrativo. Mas opera em parceria com o governo e em seu conselho deliberativo há representantes do setor privado e do setor público. Entre esses há alguns designados por bancos oficiais.
Três pesquisas foram realizadas – em março, no começo de abril e no começo de maio. Na terceira, conduzida de 30 de abril a 5 de maio, 59% dos consultados disseram precisar de crédito para operar sem demissões e 38% informaram haver pedido empréstimo. Apenas 14% haviam conseguido financiamento, 28% esperavam resposta e 58% haviam recebido resposta negativa. As taxas de sucesso foram de 31% nas cooperativas de crédito, 12% nos bancos privados e 9% nos bancos públicos. No terceiro levantamento, 89% informaram ter perdido receita. A perda média havia sido de 60% em relação ao período anterior às políticas de isolamento.
Os problemas encontrados pelas empresas pequenas – e também por muitas médias – prenunciam, além dos efeitos de curto prazo, maiores dificuldades para a reativação da economia. Companhias sobreviventes serão contaminadas pelos calotes e pela redução adicional da demanda, resultante da maior desocupação. Na hora da reativação haverá muita mão de obra disponível, mas o número de empresas em condições de retomar os negócios terá sido desfalcado.
Ampla capacidade ociosa é um ativo precioso nas fases de recuperação, porque permite retomar o crescimento sem a necessidade de investir em capacidade produtiva. Não há capacidade ociosa em empresas falidas.
Segundo o presidente do Sebrae, Carlos Melles, as dificuldades de acesso ao crédito podem estar associadas a vários fatores, como juros altos, excesso de burocracia e falta de garantias para as operações. A busca de soluções inclui a mobilização de recursos para um fundo de aval. Já se têm obtido resultados, acrescentou. Mas a perda de tempo e o agravamento dos problemas comprovam, mais uma vez, a distância entre os gabinetes ministeriais e o Brasil real. Essa distância obviamente aumentou no atual governo.
• Investigação no Rio volta a incomodar Bolsonaro – Editorial | Valor Econômico
Presidente terá mais problemas se não parar de esquivar-se dos fatos
O passado não deixa de assombrar Jair Bolsonaro depois que ele assumiu a Presidência da República. Entre o primeiro e segundo turno da eleição presidencial, em outubro de 2018, já havia um cerco policial a um esquema de “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio envolvendo funcionários do então deputado estadual Flavio Bolsonaro, hoje senador. Mal empossado, o presidente teve de vir a público, com argumentos inconvincentes, para explicar porque um dos principais investigados, Fabrício Queiroz, seu amigo, havia depositado cheque de R$ 20 mil na conta da primeira dama, Michelle.
Assim, desde bem cedo a roupa da “nova política” e da intolerância com a corrupção de Jair Bolsonaro começou a se esgarçar. O presidente que hoje insiste, não importa a que custo, que os brasileiros voltem ao trabalho diante de uma pandemia letal, empregou pessoas com dinheiro público para não fazer nada, como uma funcionária domiciliar sua em Angra dos Reis, lotada em seu gabinete. As suspeitas que pairam sobre Flavio, o 01 do trio da fuzarca familiar, são iguais, mas diferentes. Flavio empregava parentes de milicianos em seu gabinete e o intocado Fabrício Queiroz, enquanto que a filha de Queiroz estava lotada no gabinete do deputado Jair Bolsonaro. Não trabalhava: sua ocupação autodeclarada era personal trainer.
Bolsonaro sempre foi custeado pelo Estado, durante a carreira militar ou como um inexpressivo e improdutivo deputado do baixo clero. Mais grave do que pagar com dinheiro de impostos desqualificados que não labutavam é a malversação de recursos de que Flavio é acusado. No seu caso, cruzam-se admiração e proteção a milicianos - Adriano da Nóbrega, foi por ele condecorado e visitado na prisão - com suspeitas de rachadinha comandado pelo amigo da família, Fabrício. Além disso, compra e venda de imóveis heterodoxas levantaram suspeitas sobre enriquecimento ilícito de Flavio.
As investigações não pararam, mas encaixaram-se em novo contexto nada benéfico ao presidente, ao fornecer um motivo plausível - o mesmo - para sua obsessão por ter controle sobre o comando da Polícia Federal no Rio, após declarações do empresário Paulo Marinho, em cuja casa alocava-se o QG de campanha de Bolsonaro, à “Folha de S. Paulo”. Ele disse que Flavio soubera, por intermédio de alguém da Polícia Federal, que Queiroz e outras pessoas estavam sob investigação e que uma operação para apanhar o esquema de rachadinha seria deslanchada após o 2º turno.
O advogado de Flavio, Victor Granado Alves, que participou da conversa com o informante da PF, era suspeito de participar desse esquema nas investigações em curso. A “Folha” revelou depois que Flavio solicitou, e foi atendido, o pagamento de R$ 500 mil em honorários a ele, feito pelo diretório nacional do PSL e que uma sócia do escritório de Alves, Mariana Granato, é assessora parlamentar do gabinete do senador.
O depoimento de Paulo é uma enorme rocha na estrada de meias explicações que o presidente emite. Após forçar a demissão de Sergio Moro, trocar o comando da PF e o superintendente do Rio, Bolsonaro teve que explicar o que dissera na reunião ministerial de 22 de abril, um encontro de arromba animado por palavrões, no qual Moro afirmou ter sido ameaçado.
O presidente disse que a palavra PF jamais fora mencionada na reunião. A transcrição mostra que foi. Depois disse que não havia ninguém da família sob investigação pela PF do Rio. Meia verdade: Flavio integrava uma, sobre enriquecimento ilícito na campanha, que foi arquivada. E foi alguém da PF que avisou que outra operação estava chegando bem próximo do filho. Bolsonaro soube de tudo isso enquanto os fatos se desdobravam.
O presidente afirmou ainda que havia reclamado de problemas com a segurança física de sua família na reunião de 22 de abril. Dias depois, a Globo News revelou que nada havia de errado com ela, a julgar pelos atos de Bolsonaro. O diretor do escritório do GSI no Rio, responsável pela segurança, foi promovido, o que também ocorreu com seu substituto, então diretor adjunto. Há um inquérito sobre interferência na PF em andamento e dois outros no STF, sobre fake news e financiamento de manifestações antidemocráticas, que podem envolver Carlos Bolsonaro.
O fato de Bolsonaro ter corrido para buscar apoio de outros investigados por corrupção, alojados no Centrão, é um indicador subsidiário de que o presidente está em maus lençóis. Ele pode ser encurralado pela Justiça se não parar de esquivar-se dos fatos e colocar, acima de tudo e de todos, sua família.
Nenhum comentário:
Postar um comentário