- Folha de S. Paulo
Jair Bolsonaro se compraz em apostar no caos
Há momentos nos quais Bolsonaro revela por inteiro sua, digamos, visão do que seja democracia. Nenhum é melhor do que aqueles minutos usados para ofender os jornalistas, ao lhes dar o ar de sua graça; ou quando, nas manifestações domingueiras, sua presença estimula e avaliza os insultos ao Congresso e ao Judiciário.
Segundo essa percepção, típica do populismo, a democracia é tão somente uma forma de escolha periódica do chefe do Executivo, cuja ação não deve ser travada pelos demais Poderes do Estado, pela imprensa ou por outros órgãos da sociedade. Eis porque ele os confronta e provoca dia sim, outro também.
Mas o presidente não está só em seu desdém pelas instituições que constituem a essência da democracia pluralista. Na quinta-feira da semana passada, por exemplo, o seu vice, general Hamilton Mourão, publicou extenso artigo no jornal O Estado de S. Paulo. Nele, mostra que compartilha com o titular muito mais do que a louvação do regime autoritário implantado em 1964, a admiração pelo coronel torturador Brilhante Ustra, ou o desprezo pela cultura e os direitos dos povos indígenas.
Com o estilo claro e o domínio do idioma que tanto faltam ao presidente, Mourão repete, travestidas de argumentos, as agressões aos Poderes de Estado, governos subnacionais e imprensa, presentes nos impropérios ou arremedos de discurso que Bolsonaro perpetra. Segundo o general, são aqueles os que ultrapassam os limites de suas atribuições constitucionais, tentam se apropriar de funções do Executivo federal, desorganizam o combate à epidemia, prejudicam a imagem do país no exterior —em suma, levam o Brasil ao desastre.
Nada mais distante dos princípios que sustentam a democracia liberal pluralista, como é praticada mundo afora. Esta requer barreiras institucionais à concentração de poder no Executivo, por meio de freios exercidos pelo Legislativo e pelo Judiciário —e, nos sistemas federativos, por governos subnacionais—, e reconhecimento dos direitos das minorias e da diversidade de opiniões na população, que se exprimem numa imprensa livre, independente e sem medo de criticar os governos.
Os desatinos de Bolsonaro em face da crise sanitária, social e econômica desencadeada pela pandemia da Covid-19 talvez terminem levando à sua destituição, embora esse não seja —ao menos por enquanto— um desfecho líquido e certo. Sua saída poderá reduzir a tensão e a insegurança criadas por um governante que se compraz em apostar no caos. Mas não nos livrará das ameaças de uma visão populista e antipluralista à convivência democrática entre os brasileiros. Nossas escolhas são trágicas.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Nenhum comentário:
Postar um comentário