Sem
o auxílio emergencial e com desemprego ainda muito alto, as famílias pobres – e
muito pobres – poderão ter um ano muito penoso.
O Brasil entra em 2021 com cerca de 40 milhões de pessoas na miséria, indisfarçável legado de quase um ano de pandemia e de dois anos de desgoverno. O último balanço oficial, relativo a outubro, apontou 14,06 milhões de famílias em extrema pobreza, isto é, com renda de até R$ 89 por pessoa. Esse contingente, o maior desde 2014, correspondia a 39,99 milhões de pessoas. Os dados são do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), elaborado pelo Ministério da Cidadania. As famílias nessa condição eram 13,50 milhões no começo de 2020, antes da pandemia, e 13,07 milhões em janeiro de 2019, início do mandato do presidente Jair Bolsonaro. A covid-19 agravou um quadro já em deterioração.
As
condições de emprego já eram muito ruins quando os primeiros casos de covid-19
foram identificados no Brasil. No trimestre encerrado em fevereiro de 2020
estavam desocupados 12,3 milhões de trabalhadores, número correspondente a
11,6% da força de trabalho. A taxa foi pouco inferior à de um ano antes, de
12,4%.
Em
12 meses o novo governo havia sido incapaz de movimentar a economia e de
expandir as oportunidades de ocupação, apesar do apoio manifestado pelo setor
empresarial. O primeiro ano se encerrou com crescimento econômico de apenas
1,6%, inferior ao de 2018, embora o presidente Michel Temer tivesse encontrado
enormes dificuldades no final de seu mandato.
As famílias em extrema pobreza identificadas em outubro eram 47% do total. Na faixa seguinte, com renda per capita de R$ 89,01 a R$ 178, havia 2,9 milhões, ou 10% das famílias. Na faixa seguinte, com renda de R$ 178,01 a meio salário mínimo, estavam 21%, ou 6,3 milhões. Na faixa seguinte, com ganho pessoal acima de meio salário mínimo, ainda se poderia encontrar um grande número em condições muito modestas.
O
desastre econômico de 2020 e seus efeitos sociais foram atenuados pelo auxílio
emergencial pago até o fim do ano. A partir de setembro esse auxílio foi
reduzido de R$ 600 para R$ 300 por mês. Mas a ajuda, embora severamente
diminuída, ainda foi preciosa para as famílias em pior situação.
Além
da redução do auxílio emergencial, as famílias tiveram de enfrentar, no segundo
semestre, um forte aumento da inflação, puxado principalmente pelos preços da
comida, o item de maior peso no orçamento dos mais pobres. A disparada do custo
dos alimentos foi mostrada claramente por todas as pesquisas.
Exemplo:
uma alta de 12,69% acumulada em 12 meses foi reportada em dezembro pela
Fundação Getúlio Vargas (FGV) em seu Índice de Preços ao Consumidor (IPC). Esse
indicador é parte do Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M). A alta poderia
ter sido bem maior se tivesse ocorrido um repasse mais amplo dos aumentos
ocorridos no atacado. No caso dos produtos agropecuários, o encarecimento em 12
meses chegou a 49,43%.
Esse
tipo de pressão poderá ser menor em 2021, mas os preços da comida, segundo
especialistas, devem continuar elevados. Além disso, pressões do mercado
externo, reforçadas pelo câmbio, ainda poderão ocorrer. Poderão ser menos
fortes que as verificadas em 2020, mas, se surgirem, poderão agravar seriamente
as condições dos mais pobres.
A
demanda internacional continuará aquecendo os preços da soja e de outros
produtos, com a recuperação mais veloz dos grandes mercados. O governo deveria
dar atenção a isso e examinar as previsões do Ministério da Agricultura (quanto
à produção de arroz, especialmente). É hora de pensar mais seriamente, por exemplo,
numa estratégia de formação de estoques.
Sem
o auxílio emergencial e com desemprego ainda muito alto, as famílias pobres – e
muito pobres – poderão ter um ano muito penoso. Ministros discutem formas de
substituir o auxílio emergencial. Tem-se falado sobre reformulação do Bolsa
Família, com a possível aprovação de novas formas de benefícios. Podem ser
ideias boas, mas ninguém deveria menosprezar um dado simples e muito
importante: uma fila de 1,3 milhão de famílias espera ingresso no programa. Não
seria melhor, por enquanto, buscar uma forma de incorporar essas famílias?
Esvaziamento
de comissão está em linha com aversão à democracia participativa.
Por meio de decreto, o governo federal reinstituiu a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, extinta por ele mesmo em 2019. Dada a gravidade do trabalho infantil, a decisão em si é acertada. Mas a composição da nova comissão, bem mais restrita em relação à anterior, faz temer pela sua real eficácia.
Ao
justificar a recriação da comissão, o presidente Jair Bolsonaro alegou que ela
terá um papel “relevante para o diálogo social”. A realidade, porém, revela
justamente o oposto, uma vez que a comissão perdeu representatividade.
A
estrutura concebida em 2003, quando a comissão foi criada, previa a
participação de instâncias do governo, conselhos de direitos, organizações da
sociedade civil, organismos internacionais e do Ministério Público do Trabalho.
A nova composição será integrada apenas por três instâncias: governo,
confederações empresariais e centrais sindicais, cada uma com seis
representantes.
Assim,
a participação do poder público estará restrita ao Poder Executivo, sem a
participação de órgãos do sistema de Justiça e nem sequer dos conselhos de
direitos ou do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente, a instância
máxima na formulação, deliberação e controle das políticas públicas para a
infância e adolescência.
O
decreto prevê que poderão ser convidados até seis representantes de outros
órgãos, entidades ou organismos internacionais, mas eles não terão direito a
voto, atuando, na prática, como meros observadores.
O
esvaziamento da comissão está em linha com a aversão do Planalto à democracia
participativa. Em 2019, a maioria das comissões e conselhos de Estado foi
extinta. De fato, o setor era marcado por flagrantes excessos e anacronismos,
mas a extinção foi promovida arbitrariamente, sem maiores ponderações técnicas
ou debates com a sociedade civil. As entidades que restaram foram praticamente
reduzidas a comissões interministeriais.
Bolsonaro,
que com sua proverbial irresponsabilidade já manifestou nostalgia em relação
aos “bons tempos onde (sic) o menor podia trabalhar”, também extinguiu e depois
recriou a Comissão de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e
Adolescentes, mas sem suas atribuições originais na articulação de políticas
públicas, reduzindo-a a um órgão de consultas e estudos.
Em
2019, segundo o IBGE, dos 38,3 milhões de brasileiros entre 5 e 17 anos, 1,8
milhão estava em situação de trabalho infantil – mais de 700 mil em condições
consideradas graves. Apesar da redução de 16,8% em relação a 2016, o progresso
é insuficiente em relação à meta de erradicar todas as formas de trabalho
infantil até 2025, conforme previsto na Agenda 2030 da ONU, da qual o País é
signatário.
A
extinção da Comissão de Erradicação do Trabalho Infantil, em abril de 2019,
praticamente suspendeu a elaboração do Plano Nacional de Erradicação do
Trabalho Infantil, retomada às vésperas de 2021, o Ano Internacional para a
Eliminação do Trabalho Infantil, conforme a designação da ONU.
O
cenário foi agravado pelas crises educacional e econômica provocadas pela
pandemia. Especialistas em educação apontam que uma das sequelas mais deletérias
da interrupção das aulas presenciais é a tendência ao aumento da evasão
escolar. Ante a deterioração da renda das famílias pobres com o fim do auxílio
emergencial e a falta de perspectivas de emprego, a pressão pelo trabalho
infantil deve aumentar. Assim, há o risco de que a tendência de queda do número
de crianças trabalhadoras, que já era insuficiente, se inverta.
Essa
inversão pode ter um impacto perverso no próximo Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH) do País. Divulgado em dezembro de 2020, o IDH relativo a 2019
mostrou que o Brasil caiu da 79.ª para a 84.ª posição, entre 189 países. A
queda deixou claro que o País está não apenas estagnado, mas vem passando por
um processo de atrofia em matéria de qualidade de vida de sua população. E isso
poderá se agravar pelo modo como o governo vem lidando com a prevenção e
erradicação do trabalho infantil em um contexto de pandemia e falta de
crescimento econômico.
2021, o ano da prova – Opinião | O Estado de S. Paulo
A
pandemia é um fenômeno que só pode ser superado globalmente.
Uma pandemia é por definição um fenômeno global e só pode ser superada globalmente. “Crises como esta”, disse logo no início do cataclismo o diretor da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom, “trazem o pior e o melhor na humanidade.” Mas isso não deve ser interpretado como uma lei natural, e sim como um chamado a todas as pessoas e povos a intensificar o melhor e sufocar o pior que têm em si. Contudo, pela própria mecânica da pandemia, isso só acontecerá por meio de um esforço coordenado. “Estamos todos juntos nesta situação”, disse Adhanom. “E só venceremos juntos. Então, a regra do jogo é: juntos.” Mas, passado um ano, terá essa regra sido seguida?
“A
covid-19 é um teste para a cooperação internacional – e é um teste no qual o
mundo está fracassando.” O diagnóstico é do secretário-geral das Nações Unidas,
António Guterres, em artigo para a série O Mundo em 2021, da revista The
Economist. “Com algumas notáveis exceções, os países focaram em si mesmos e
definiram suas próprias estratégias, às vezes em contradição com aquilo que
seus vizinhos estavam fazendo. Nós vimos os resultados. Enquanto os países
seguiam em todas as direções, o vírus seguiu em todas as direções. O populismo
e o nacionalismo, onde prevaleceram, não contiveram o vírus e frequentemente
pioraram manifestamente as coisas.”
O
vírus ampliou as disparidades entre os países ricos e pobres, assim como entre
os ricos e pobres em cada país. A polarização econômica precipitada pela
pandemia inflamou a polarização política que a precedia. Grupos deixados para
trás são tentados a crer que o capitalismo e a democracia fracassaram.
A
devastação causada por um novo micro-organismo é um símile da devastação
causada pelo ser humano no macro-organismo que é o globo. “Precisamos também de
uma vacina para o superaquecimento do nosso planeta”, lembrou Guterres, que fez
ainda outra comparação: “A violência do vírus mostra a demência da guerra”. No
início da pandemia alguns povos em conflito esboçaram um cessar-fogo, mas aos
poucos retomam as hostilidades.
Mesmo
em nações desenvolvidas, surtos de desinformação intensificam os riscos de
conflitos civis. Os protestos do “Black Lives Matter”, motivados pela justa
indignação contra a violência racial, rapidamente degeneraram em violência
coletiva e o ano foi inaugurado com as inacreditáveis imagens de turbas
enfurecidas vandalizando o Capitólio, o coração da mais longeva democracia do
mundo.
As
duas superpotências econômicas flertam com uma nova “guerra fria” e os
mecanismos de controle nuclear se deterioram.
“A
cooperação internacional será crucial. Os acordos realizados há 75 anos
preveniram uma muito temida terceira guerra mundial. Mas o mundo precisa agora
de uma nova geração de governança global”, disse Guterres. “Em um tempo de
anarquia no espaço cibernético, crescimento de desigualdades, retrocessos nos
direitos humanos e um regime de comércio global inclinado contra os pobres, não
estamos mantendo o passo.”
Não
obstante, há razões para uma esperança realista. Quando os governos fecharam
suas economias para salvar vidas, mostraram que o enriquecimento não é um valor
absoluto. A ciência fabricou vacinas com uma velocidade inimaginável há um ano.
O rechaço a Donald Trump, o arquétipo neonacionalista, reabre os horizontes do
multilateralismo. O bloco europeu, em que pese o trauma do Brexit, se mostrou
compacto como nunca no combate ao vírus e suas sequelas econômicas. Os países
ricos estão organizando vastos programas de regulação das gigantes da
tecnologia em prol do bem comum. A maior poluidora do mundo, a China, apesar da
ambivalência de seu regime autocrático, prometeu zerar as emissões de carbono
até 2060, rumo a uma “civilização ecológica”.
“Enfrentamos
dois testes críticos – covid-19 e mudanças climáticas – complementados por um
terceiro: fragilidade e fragmentação”, concluiu Guterres. “Compreender que a
solidariedade é o interesse próprio nos ajudará a pôr fim a essa crise e a
emergirmos mais fortes juntos.”
Relação comercial crescente com a China exige estratégia mais sólida – Opinião | O Globo
Chineses
respondem por um terço das exportações do Brasil, e caem vendas a Europa e
América Latina e EUA
Há
quem não goste da China em Brasília. Indiferentes às inclinações ideológicas do
governo Jair Bolsonaro, os chineses fortalecem sua posição como maior parceiro
comercial brasileiro. Enquanto caíram, no ano passado, as exportações para
Estados Unidos, União Europeia e América do Sul, cresceram 7,3% as destinadas à
China. A participação chinesa nas vendas externas do Brasil subiu quatro pontos
percentuais de 2019 a 2020, de 29,4% para 33,4%.
Tal
resultado basta para demonstrar o erro crasso do Itamaraty sob Ernesto Araújo,
hostil a um cliente dessa magnitude por puro dogmatismo ideológico. Como sempre
demonstrou a diplomacia profissional brasileira, hoje escanteada na política
externa, manter canais de diálogo desobstruídos com a China não significa
concordar com a ditadura de Xi Jinping, com seu regime de partido único ou com
as arbitrariedades cometidas contra a imprensa em Hong Kong ou os uigures em
Xinjiang. É apenas questão de bom senso.
Nem
se trata de o Brasil se resignar ao papel de fornecedor de alimentos e
matérias-primas. O ponto é outro. As vantagens comparativas brasileiras no
mercado mundial de commodities agrícolas precisam ser usadas e ampliadas para
abastecer qualquer mercado importador, entre eles a China, potência com
população de 1,3 bilhão, cuja renda média tem subido sem parar.
Se
as exportações do agronegócio brasileiro chegaram perto de US$ 1 trilhão entre
2011 e 2020, é a China que está por trás desse resultado. Só na soja, ela ficou
com 84% das 526 milhões de toneladas vendidas pelo Brasil nesses dez anos. Os
chineses também são fortes importadores de carnes. Há pouco, uma peste suína
dizimou a criação na China, que passou a importar carne de fornecedores como o
Brasil. É sobretudo a ascensão chinesa que explica, em grande medida, por que o
Brasil acumulou reservas externas que se mantêm acima de US$ 300 bilhões.
É,
portanto, estratégica a relevância dos chineses para a saúde da economia
brasileira. Claro que não deve interessar ao Brasil ser tão dependente de um
único parceiro comercial. O melhor é sempre diversificar a pauta de
exportações, com a ampliação do leque de parceiros. Mas a conexão entre Brasil
e China no agronegócio justificaria uma aproximação diplomática maior.
Apesar
disso, da telefonia celular de quinta geração (5G) às vacinas, Bolsonaro e o
círculo ideológico que dita as regras da diplomacia brasileira preferem fazer
pouco dos chineses, talvez para receber aplausos nas redes sociais. Caberia ao
Itamaraty criar uma estratégia diplomática consistente para todo o continente
asiático que, sem abrir mão de valores como democracia e direitos humanos,
contribuísse para ampliar as oportunidades de negócio.
Iniciativa de autorregulação da OAB é bem-vinda – Opinião | O Globo
Definir
regras de transparência contribuirá para afastar os advogados de crimes
financeiros
Depois
de mais de 20 anos da aprovação da lei da lavagem de dinheiro, a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) discute uma proposta de autorregulação para tornar
mais nítidos os limites entre o trabalho legal, ético de aconselhamento
jurídico e a assessoria para toda sorte de traficâncias, como as constatadas no
transcorrer da Operação Lava-Jato. Pode não ser tarefa simples, mas é vital, no
combate à corrupção e ao crime organizado, manter intactas as prerrogativas de
uma profissão que simboliza o estado democrático de direito, ao mesmo tempo que
se impede seu desvirtuamento.
O
advogado necessita da proteção do sigilo e da inviolabilidade do local de
trabalho para defender seus clientes. Mas sua atividade requer, em
contrapartida, o cumprimento de normas capazes de impedir desvios. A longa
inércia da OAB fez surgirem vários projetos de lei no Congresso sobre o
assunto.
A
maioria entrava naquele escaninho infinito das leis que nunca serão aprovadas.
Até que, em setembro passado, a Lava-Jato lançou a Operação E$quema S e visitou
50 endereços de advogados em Rio, São Paulo e Brasília, como parte de uma
investigação sobre desvios de R$ 150 milhões do Sistema S do Rio. A origem
foram delações premiadas de Orlando Diniz, ex-presidente da Fecomércio, e do
doleiro Álvaro Novis.
Contratos
frios de prestação de serviços advocatícios serviram, de acordo com as
denúncias, para movimentar o dinheiro sujo. Imediatamente, entrou em debate até
que ponto os privilégios advocatícios vêm sendo usados para cometer crimes
financeiros.
O
presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, reclamou da criminalização da atividade
dos advogados. Ao mesmo tempo, encomendou ao conselheiro Juliano Breda, do
Paraná, uma proposta de normas e orientações técnicas para advogados prestarem
contas de seus serviços. A ideia é instaurar uma espécie de autorregulação, de
acordo com o estabelecido na legislação sobre lavagem de dinheiro e nos
dispositivos de organismos internacionais de qual o Brasil participa, como o
Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do
Terrorismo (Gafi/FAFT).
O
texto para discussão na OAB admite que a imunidade do advogado não é absoluta
quando ele sai da esfera advocatícia propriamente dita. Segundo a proposta,
além de obrigações de registros de clientes, o advogado precisará comunicar ao
Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) toda operação comercial e
financeira de que participe e suspeite. Deve fazer o mesmo também se atuar em
negócios no mercado imobiliário, na gestão de fundos ou outros regidos pela lei
da lavagem. Se comprovados honorários recebidos com dinheiro ilegal, o
profissional pode ser processado por receptação, como determina a lei.
Deverá
ser intenso o debate, porque há advogados contrários à regulação. Mas é preciso
fazer algo. A iniciativa da OAB é bem-vinda e só tem a contribuir no combate à
lavagem e à corrupção.
A grita contra o ICMS – Opinião | Folha de S. Paulo
Corte
de benefícios em SP não ocorre no melhor momento, mas vai no rumo correto
A
reação negativa à redução de incentivos fiscais proposta pelo governo paulista
—que já motivou um
recuo parcial da gestão João Doria (PSDB)— é mostra dos
obstáculos que sempre cercam mudanças na área tributária.
Em
seus termos originais, o projeto prevê a partir deste 2021 um corte linear de
20% nos descontos de ICMS para vários setores, incluindo áreas de impacto como
alimentação, medicamentos e energia elétrica para consumidores de maior porte
na área rural.
Com
as alterações, bens e serviços hoje beneficiados com alíquotas mais baixas ou
isenções passaram a sofrer cobrança com taxa mais próxima ao padrão do Estado,
de 18%. Diante da má repercussão, o governo Doria anunciou que manteria
incentivos para remédios,
insumos agrícolas e alimentos.
É
possível que o momento de pandemia e dificuldades econômicas não se mostre o
mais propício para uma elevação do ICMS. No mérito, porém, a medida constitui
um passo na direção correta.
Uma
das principais distorções do sistema tributário brasileiro é a coletânea sem
fim de isenções e normas especiais, não raro instituídas sem critério técnico
ou em atendimento a lobbies influentes.
Qualquer
reforma digna desse nome deverá passar por cortes de benefícios e por
convergência —idealmente até unificação— de alíquotas. Essa é a tão cobrada
simplificação dos impostos.
Em
São Paulo, claro, objetivo mais imediato é elevar a receita. Pretende-se
compensar parte das perdas durante a pandemia, estimadas em cerca de R$ 10
bilhões.
As
entidades setoriais foram rápidas em protestar e apelar a ações judiciais,
apresentando cálculos de aumento nos preços dos produtos que supostamente
ocorreriam com a majoração do ICMS.
Como
de hábito, os representantes de cada atividade a apresentam como essencial, a
fim de convencer a sociedade de que seus interesses equivalem ao interesse
coletivo.
Se
uma mera redução de incentivos gera tamanha reação raivosa, imagine-se a
resistência a um redesenho amplo do sistema de impostos, taxas e contribuições
—a reforma que todos dizem apoiar.
O
aspecto social precisa obviamente ser levado em consideração, mas as políticas
públicas em favor dos pobres carecem de melhor concepção. Não é o melhor
caminho, por exemplo, simplesmente isentar a cesta básica e alguns itens de
saúde, consumidos também pelos mais ricos.
Cumpre
tornar a carga tributária mais progressiva, com maior incidência em renda e
patrimônio, e as despesas públicas mais eficientes no combate à desigualdade,
com corte de privilégios corporativistas e foco nos estratos de baixa renda.
Sufoco a Hong Kong – Opinião | Folha de S. Paulo
Ditadura
chinesa mostra que quer eliminar qualquer vestígio de oposição na ilha
A prisão de
mais de 50 ativistas pró-democracia em Hong Kong, na
quarta-feira (6), deixa explícita a disposição do regime chinês de não apenas
sufocar os protestos pacíficos na ilha, como já vinha fazendo, mas também
impedir qualquer tipo de oposição ali.
Acusados
de subversão sob a draconiana nova lei de segurança nacional, os ativistas
foram detidos por participarem, no ano passado, de primárias independentes que
definiriam os candidatos oposicionistas para as eleições legislativas de
setembro, adiada sob a justificativa de riscos de disseminação do novo
coronavírus.
Para
as autoridades de Hong Kong, entretanto, a intenção do grupo de conquistar a
maioria na legislatura municipal —abrindo a possibilidade de bloquear propostas
do governo pró-Pequim— não passaria de uma tentativa de causar “graves danos” à
sociedade local.
O
recado não poderia ser mais claro: o mero engajamento em processos eleitorais
já severamente restritivos, com o objetivo de exercer o direito legislativo de
veto, será considerado um crime contra a segurança nacional.
Esse
recrudescimento da repressão se dá num contexto já amplamente favorável à
ditadura comunista. Apenas metade dos 70 membros do Conselho Legislativo de
Hong Kong são escolhidos por voto direto, sendo os demais indicados por grupos
alinhados à China.
Vistas
em perspectiva, as novas prisões são a mais grave ação governamental até aqui
no sentido de eliminar qualquer vestígio de oposição nas instituições da ilha.
No
ano passado, as autoridades já haviam impedido vários candidatos pró-democracia
de concorrer nas eleições. Em novembro, ademais, o governo expulsou quatro
membros oposicionistas do conselho por esposarem ideias independentistas, na
interpretação oficial. Os demais integrantes do grupo renunciaram em protesto.
Tais
medidas representam um ataque direto ao princípio de autonomia garantido pela
Lei Básica de Hong Kong e sugerem que o pleito, se vier a ser realizado, será
um evento meramente decorativo.
Condenado
mundo afora, o ato de repressão chinesa mereceu palavras duras do próximo
secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken. Não será surpresa,
pois, se os desdobramentos do caso vierem a se tornar o primeiro foco de
conflito entre as duas superpotências após o início do governo do democrata Joe
Biden.
A invasão do Capitólio nos EUA deve servir de alerta – Opinião | Valor Econômico
A
solidez das instituições americanas está milhas à frente do que observamos por
aqui
O
dia 6 de janeiro de 2021 ficará para a história como a data em que a democracia
americana, uma das mais antigas e consolidadas do globo, sofreu um gravíssimo
ataque. Incitados pelo presidente Donald Trump, alguns de seus apoiadores
invadiram o Capitólio, sede do Legislativo, com o objetivo de tentar impedir o
debate sobre a certificação da vitória concedida pelo Colégio Eleitoral ao
democrata Joe Biden, presidente eleito dos Estados Unidos no mais recente
pleito.
A
sublevação forçou a interrupção da sessão. Congressistas tiveram que procurar
abrigo, a equipe que fazia a segurança do edifício agiu de forma descoordenada
e, diante da desordem, a Prefeitura de Washington precisou decretar toque de
recolher. Após um dia caótico, o debate foi finalmente concluído.
Nas
horas seguintes, iniciou-se um debate sobre a possibilidade de se interromper o
restante do mandato de Trump, que inevitavelmente não figurará nos espaços mais
nobres da galeria de ex-presidentes americanos. O episódio também pode provocar
novas cicatrizes na já tradicionalmente dividida sociedade estadunidense.
Afinal, o presidente em exercício, comandante supremo das Forças Armadas,
adotara uma postura que pode ser considerada, no mínimo, ambígua - ao mesmo
tempo em que pedia o fim da ação dos militantes, reafirmava que a eleição da
qual saíra derrotado fora fraudulenta.
Presidente
eleito dos Estados Unidos no pleito de novembro, Biden classificou o ocorrido
como um “ataque sem precedentes à democracia dos EUA”. E como era de se
esperar, diversos líderes mundiais condenaram tanto a violência como o
simbolismo da invasão.
O
Brasil, contudo, novamente destoou. O presidente Jair Bolsonaro disse a
apoiadores que estava acompanhando todo o tema de perto e que “teve muita
denúncia de fraude” na eleição dos EUA.
Pior.
Novamente sem apresentar provas das acusações que insiste em repetir em relação
à solidez do sistema eleitoral nacional, sentenciou: “Se não tivermos o voto
impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, vamos ter problema pior que os
Estados Unidos”.
Aguardava-se,
também, o posicionamento oficial do Itamaraty. Mas, o que se viu foi o
chanceler Ernesto Araújo se manifestar pelas redes sociais em sua conta
pessoal. Embora tenha ponderado que "nada justifica uma invasão como a
ocorrida”, Araújo pontuou que grande parte do povo americano "se sente
agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo
eleitoral" que levou à vitória de Biden, em novembro. Na visão do
ministro, os manifestantes eram "cidadãos de bem" e é preciso
distinguir “processo eleitoral” e “democracia”, uma vez que questionar a
idoneidade do primeiro não significa rejeitar a segunda.
Não
é de se surpreender. Para os formuladores da política externa bolsonarista,
interesses do governo estão acima dos interesses do Estado. Não há problema
algum, dizem, se a atual postura brasileira transformar o país em um pária
internacional.
Foi
o que deu a entender o ministro das Relações Exteriores em outubro do ano
passado, por exemplo, quando discursou na formatura de uma turma de novos
diplomatas. “Sim, o Brasil hoje fala em liberdade através do mundo. Se isso faz
de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”, declarou. “Talvez
seja melhor ser esse pária, deixado ao relento do lado de fora, do que ser um
conviva no banquete de cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e
semicorruptos. Este pária não tem o seu nome em nenhuma planilha, não fez
negociatas para promover partidos amigos em outros países, não pertenceu ao
Conselho de nenhuma grande construtora exportadora de propina.”
Os
danos à imagem do Brasil no exterior já estão claros, mas as consequências para
a política doméstica ainda podem ter novos perigosos desdobramentos.
Para
muitos, está dada a senha à militância bolsonarista sobre o que deve ser feito
em 2022, caso o presidente não consiga se reeleger. O discurso do presidente e
de seus aliados mais radicais parece pronto.
O que ocorreu nos Estados Unidos, portanto, deve servir de alerta. Ainda que integrantes da cúpula do Judiciário e do Congresso brasileiros tenham condenado a ação dos militantes trumpistas e o posicionamento de Bolsonaro, a solidez das instituições americanas está milhas à frente do que observamos por aqui.
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