segunda-feira, 15 de agosto de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Ajuste sem reforma

Folha de S. Paulo

Necessária, queda acentuada do gasto com servidor foi obtida por meios precários

As três maiores despesas do governo federal —Previdência Social, encargos da dívida pública e funcionalismo— foram alvo de estratégias de ajuste muito diferentes sob Jair Bolsonaro (PL).
A mais virtuosa delas, sem dúvida, se deu com o sistema de aposentadorias e pensões por morte. Após um debate amadurecido ao longo de mais de duas décadas, uma reforma pactuada entre Legislativo e Executivo estabeleceu normas mais sustentáveis para a concessão dos benefícios, contendo o gasto a longo prazo.

A conta dos juros da dívida não está sob influência direta do governo, dado que as taxas dependem dos imperativos do controle da inflação. O que se pode fazer é manter a credibilidade da política econômica, de modo a evitar que a insegurança de investidores se transforme em custo adicional.

Nesse caso houve claro retrocesso. Em desespero eleitoral, Bolsonaro patrocinou a violação das normas de controle da despesa e deu impulso à alta dos juros —já pressionados pela escalada inflacionária global decorrente dos impactos da pandemia e da guerra na Ucrânia.

Por fim, a folha de pessoal passou por contração acentuada, que o ministro Paulo Guedes, da Economia, destacou em apresentação ao mercado financeiro, conforme noticiou a Folha. A despesa com servidores ativos e inativos, que em anos anteriores rondava 4,2% do Produto Interno Bruto, aproxima-se dos 3,4% na projeção oficial.

Não resta dúvida de que tal ajuste foi necessário e ajudou a evitar uma deterioração fiscal ainda pior na recessão pandêmica e neste ano eleitoral. Entretanto ele se ampara em bases precárias, tanto do ponto de vista da gestão pública como da realidade política.

O gasto com pessoal caiu principalmente devido ao represamento de reajustes salariais, num contexto de inflação acelerada —que eleva o valor do PIB e a arrecadação tributária. O governo acrescenta que reduziu o número de funcionários, o que pode ser meritório mas tem efeito imediato menor.

A economia assim conseguida tende a ser efêmera, porque cedo ou tarde o funcionalismo conseguirá elevar seus vencimentos. Recorde-se que, em 2014, o gasto com pessoal caíra a 3,8% do PIB; em apenas três anos, após reposições concedidas por Michel Temer (MDB), a cifra subiu a 4,3%.

Seja qual for o vencedor das eleições, a próxima administração enfrentará pressões dos três Poderes por reajustes, razoáveis ou não. O Supremo Tribunal Federal já se precipitou ao apresentar uma proposta de aumento de 18% para o já caríssimo Judiciário brasileiro.

Por afinidades corporativistas, Bolsonaro abandonou a reforma administrativa, que poderia propiciar uma racionalização duradoura do gasto com servidores.

Providências como revisão de salários iniciais exagerados, contratações temporárias e possibilidade de redução de jornadas de trabalho ajudariam a tornar o serviço público mais barato e eficiente.

Cela trancada

Folha de S. Paulo

Projeto que barra saída temporária de presos contraria estudos e evidências

A Câmara dos Deputados abraçou uma espécie de populismo penal ao aprovar projeto que barra de forma drástica a saída temporária de detentos nas superlotadas penitenciárias brasileiras.

O texto, que voltará ao Senado, põe fim à liberação provisória de presos em regime semiaberto, amplia a competência do juiz da execução penal sobre o uso de tornozeleira eletrônica e inclui exame criminológico como uma das condições para a progressão da pena.

O período eleitoral parece dar impulso a mais uma medida que, embora aparente impor mais rigor na segurança pública, contraria os estudos acerca da realidade prisional do país. O governador de São Paulo, Rodrigo Garcia (PSDB), candidato à reeleição, já se manifestou contra a "saidinha".

A saída temporária, para visita à família ou estudos, está prevista na lei e serve à ressocialização das pessoas privadas de liberdade.

Manter todos os condenados em instalações insalubres é, além de desumano, ineficaz —para nem falar de dúvidas constitucionais em debate no Supremo Tribunal Federal. Facções criminosas que dominam os presídios terão mais mão de obra a seu dispor.

A saída não é realizada sem critério, tampouco representa grave ameaça à ordem pública. Só tem direito a ela o preso do regime semiaberto que já cumpriu ao menos um sexto da pena, se primário, ou um quarto, se reincidente. Outro requisito é bom comportamento.

A defesa da proibição se ampara em temores compreensíveis, de quando em quando reforçados por episódios de crimes cometidos por detentos beneficiados. Cumpre, porém, considerar um quadro mais amplo.

Embora não desprezível, a proporção de presos que não retornam da saída temporária é relativamente baixa. Em São Paulo, por exemplo, cerca de 95% dos favorecidos no Natal de 2020 voltaram à prisão. Condenados por crime hediondo com morte não têm direito ao benefício desde 2019.

Políticas públicas sempre podem ser aperfeiçoadas, mas com atenção a evidências e resultados esperados —não ao apelo popular imediato das medidas.

Uma agenda para o futuro do País

O Estado de S. Paulo

Pesquisadores e associações do setor produtivo, coordenados pelo Centro de Liderança Pública, se unem para qualificar o debate e buscar os consensos possíveis em torno de reformas

Ter um Congresso comprometido com uma agenda de futuro é tão ou mais importante quanto escolher um presidente da República. Se essa afirmação já era verdadeira no passado, ela ganhou ainda mais força com a eleição de Jair Bolsonaro, que entregou o comando do Orçamento e da própria pauta legislativa para o Centrão, desonrando os milhões de votos que o alçaram ao mais alto cargo da República. Felizmente, o País parece farto de tanto diversionismo e tem dado inúmeras demonstrações de que quer recuperar o tempo perdido e retomar a rota da democracia e do desenvolvimento econômico. Iniciativas como a coalizão Unidos pelo Brasil são prova de que reconstruir o País é um projeto tão urgente quanto factível, que passa pelo exercício pleno da cidadania e pela participação ativa da sociedade civil na vida pública.

Sob a coordenação do Centro de Liderança Pública (CLP), pesquisadores e associações do setor produtivo se uniram para selecionar propostas que merecem ser tratadas com atenção e celeridade pelo Legislativo a partir do ano que vem. São 14 projetos de lei que já estão em tramitação na Câmara e no Senado, focados em temáticas que visam à modernização do setor público, à sustentabilidade ambiental, ao crescimento econômico e à justiça social. O documento será entregue aos parlamentares e aos candidatos que disputam a Presidência da República. Se aprovados pelos deputados e senadores, eles têm o potencial de proporcionar um crescimento de 7,3% do Produto Interno Bruto e uma economia de R$ 96 bilhões para os cofres públicos até 2026.

No eixo ambiental, as prioridades são as propostas para dar fim ao desmatamento ilegal, regulamentar o mercado de carbono, destravar concessões florestais e simplificar os processos de licenciamento ambiental. Na busca de um Estado moderno e eficiente, as entidades defendem a aprovação de uma reforma administrativa que combata privilégios, a regulamentação de um teto de salários para servidores públicos, a atualização dos concursos públicos e uma lei de governança para garantir mais eficiência nas empresas estatais. Na área de crescimento econômico e justiça social, os projetos selecionados são a lei das debêntures de infraestrutura, o novo marco do setor elétrico, a revisão do marco do pré-sal e a reforma tributária.

Em comum a todas as propostas estão a defesa de princípios liberais e uma visão que alia solução de problemas do passado e a preparação para as oportunidades do futuro. O Brasil já teve um papel de protagonismo na agenda de desenvolvimento sustentável, e resgatar essa liderança será essencial para garantir espaço aos produtos brasileiros nos mercados internacionais. Internamente, o País já mostrou inúmeras vezes ser capaz de enfrentar desafios históricos. A despeito do fisiologismo que marcou o Legislativo, a mobilização da sociedade garantiu a aprovação de avanços como a reforma trabalhista, a reforma da Previdência, o marco do saneamento básico, a autonomia do Banco Central e a Lei do Gás. A degradação da administração federal, a instabilidade institucional e o desmonte de políticas públicas, entre muitos outros legados da administração Bolsonaro, não são irreversíveis.

Fossem os programas de governo dos candidatos à Presidência da República mais do que meras cartas de intenção, a lista de projetos selecionados pela coalizão certamente deveria integrá-los. É evidente que os temas são complexos e, em alguns casos, contrapõem interesses mesmo entre as entidades que compõem o grupo. São, afinal, os detalhes que definem a qualidade de uma proposta legislativa. Mas, ao reunir instituições como o Centro de Cidadania Fiscal, a Fundação Dom Cabral, o Instituto Millenium, a Sociedade Brasileira de Direito Público, o Movimento Brasil Competitivo, a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib) e a Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), a coalizão mostra disposição para qualificar o debate e construir os consensos possíveis.

País não cresce sem ensino profissional

O Estado de S. Paulo

A valorização da educação profissional técnica é essencial para elevar a produtividade e a competitividade da economia, ajudando a superar o apagão de mão de obra qualificada

A despeito de uma melhora contínua dos indicadores do mercado de trabalho, a existência de mais de 10 milhões de trabalhadores que não têm ocupação, constatada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE, mostra um quadro ainda marcado por dificuldades para boa parte da população. Nesse cenário, parece paradoxal que muitas empresas tenham vagas abertas e encontrem dificuldades para preenchê-las. É um paradoxo apenas aparente.

Há tempos especialistas em formação profissional falam em um “apagão de mão de obra qualificada”. Para se manterem competitivas ou alcançarem novos mercados, as empresas modernizam-se e buscam aumento de eficiência, o que exige profissionais preparados para desempenhar funções mais complexas. Mas muitas vezes não encontram profissionais com as qualificações necessárias, a despeito da abundante oferta de mão de obra.

As novas configurações do sistema produtivo mundial e a rápida transição para o que vem sendo chamado de economia do conhecimento tornaram mais aguda uma deficiência histórica do sistema de ensino do Brasil. Por um longo período, predominou no País uma visão estigmatizada da educação profissional técnica. Essa modalidade de ensino era “percebida como um tipo de formação inferior e objeto de política pública direcionada às camadas sociais desfavorecidas, que encontravam nesse tipo de formação uma alternativa para fugir da pobreza”, resume o manifesto sobre educação profissional técnica preparado pelo Movimento Brasil Competitivo (MBC). Com o manifesto, o MBC pretende mostrar a urgência de mudar essa visão e preparar o País para os desafios que as rápidas transformações do sistema produtivo em todo o mundo lhe impuseram.

A iniciativa merece atenção dos que procuram pensar o futuro do País. Além de trazer um diagnóstico da situação da educação profissional técnica, o documento propõe uma agenda mínima para promover a formação de mão de obra qualificada. Será decisivo o papel da empresa privada para o êxito de boa parte das iniciativas sugeridas.

A educação profissional técnica continua oferecendo oportunidades para jovens de famílias de baixa renda, o que, por si só, lhe dá relevância social, mas é muito mais do que isso. Ela é também determinante para dar mais eficiência à economia brasileira. A baixa produtividade do trabalho tem várias causas, mas está relacionada também à falta de qualificação dos trabalhadores.

Houve esforços do setor público e da iniciativa privada para melhorar e expandir a rede de ensino profissional técnico nas últimas décadas. Mas os resultados foram insuficientes para melhorar a classificação do Brasil entre as cerca de 30 principais economias do mundo nessa questão. Relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostra que, enquanto os países vinculados a ela registraram que 38,4% dos formandos no ensino médio estavam matriculados em cursos técnicos ou profissionais em 2019, no Brasil o índice foi de apenas 8,6%.

Para reverter esse quadro é preciso, primeiro, valorizar a educação profissional técnica como alternativa real de qualificação profissional e de inserção competitiva no mercado de trabalho, propõe o estudo do MBC. Outra sugestão é a organização do ensino focada em duas vertentes, uma voltada à preparação acadêmica e centrada na promoção da reflexão crítica, entre outros atributos, e outra voltada à preparação vocacional e à qualificação para o mundo do trabalho. A adequação da oferta de ensino profissional técnico às demandas empresariais e às vocações e potencialidades regionais é outro item proposto pelo MBC. Será indispensável também integrar a política de valorização do ensino profissional técnico às políticas de desenvolvimento e, sobretudo, às de inclusão e de combate à pobreza.

Nenhuma organização, pública ou privada, terá êxito pleno se atuar isoladamente. A mudança precisa envolver diferentes organizações e contar com a colaboração e o estímulo da sociedade, observa com razão o MBC. É tarefa de todos.

Apoiar a educação na periferia

O Estado de S. Paulo

Prefeitura de SP acerta ao pagar adicional para professores de escolas que atendem os mais pobres

A educação é chave para o desenvolvimento e para a mobilidade social, e é exatamente por isso que o maior investimento público na área da educação deve ser feito nas regiões mais pobres. O que se observa, sobretudo nas periferias das grandes cidades, no entanto, é que a educação, em vez de ser redentora, reproduz fielmente as desigualdades que prejudicam a parcela mais vulnerável da sociedade. Lá, onde a renda das famílias é mais baixa e os índices de violência, mais altos, as escolas públicas enfrentam dificuldades para atrair e manter professores. 

Por esse motivo, é digno de nota o decreto recentemente baixado pela Prefeitura de São Paulo para instituir o pagamento de um bônus para professores e profissionais de apoio que atuem em 529 escolas na periferia da cidade. O objetivo é reduzir a alta rotatividade de pessoal nesses estabelecimentos, algo que prejudica a formação de vínculos entre o corpo docente e a escola − e acaba gerando consequências negativas sobre o que mais importa: a aprendizagem dos estudantes.

Pesquisadores da área da educação já constataram que o desempenho escolar em língua portuguesa, matemática e outros componentes curriculares reflete, acima de tudo, o nível socioeconômico das famílias e a escolaridade dos pais, especialmente a da mãe. Esse ponto de partida, por assim dizer, não é determinante de quão longe cada aluno pode chegar, mas o fato é que, quanto maior a vulnerabilidade social dos estudantes fora da escola, maior também será o desafio do corpo docente.

Do ponto de vista da redução das desigualdades educacionais, o ideal seria que as escolas da periferia contassem com os melhores professores de cada rede. Afinal, é lá que estudam as crianças e os adolescentes cujos pais ou responsáveis têm menor renda e escolaridade mais baixa. O sistema educacional teria, assim, melhores condições para contrabalançar fatores externos que prejudicam o desenvolvimento escolar. 

No dia a dia de tantas redes públicas do País, no entanto, o que se vê é exatamente o contrário: as escolas têm dificuldade até mesmo para atrair e, mais ainda, para manter professores. Resultado: convivem com alta rotatividade de pessoal, o que só prejudica a qualidade do ensino e a implementação do respectivo projeto pedagógico, afetando negativamente também a continuidade de outros programas.

Diante de tal realidade, a decisão da Prefeitura é acertada e responde a um problema capaz de corroer toda a agenda de melhoria da aprendizagem. A nova Gratificação por Local de Trabalho (GLT) vai pagar de R$ 300 a R$ 1.500 mensais para docentes e de R$ 200 a R$ 500 mensais para os demais profissionais. As escolas foram selecionadas justamente por apresentar altos índices de rotatividade. Por óbvio, o bônus deve ser acompanhado de ações que garantam, entre outros aspectos, a segurança e boas condições de funcionamento das unidades. Em futuro próximo, fará bem a Prefeitura se avaliar os resultados obtidos com o novo mecanismo − de resto, uma iniciativa que caminha na direção certa.

Contencioso reforça a urgência da reforma tributária

O Globo

Só no Carf, as disputas entre os contribuintes e a Receita passaram de R$ 1 trilhão no primeiro semestre

A complexidade impenetrável do sistema tributário brasileiro tem como consequência a infinidade de reclamações dos contribuintes contra o recolhimento de impostos. Um estudo do Insper estimou que, em 2019, o contencioso tributário em todas as esferas da Justiça equivalia a 75% do PIB. Apenas no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), organismo da Receita Federal que julga queixas dos contribuintes, a média histórica dos casos à espera de decisão gira em torno de escandalosos R$ 600 bilhões. No primeiro semestre deste ano, com a greve de auditores fiscais e os efeitos da pandemia na Receita, a pilha cresceu: ficaram acumulados no Carf processos envolvendo pouco mais de R$ 1 trilhão, ou 11% do PIB.

Fosse a legislação brasileira clara, funcional e compacta, a situação seria diferente. É patente a enorme insegurança criada pela profusão de regras que resulta nas divergências entre contribuintes e governo na interpretação da legislação. Os grandes contribuintes têm pendências no Carf proporcionais ao tamanho. A Petrobras acumula um contencioso de R$ 30 bilhões. A Ambev, R$ 50 bilhões. O Itaú, cerca de R$ 60 bilhões, metade ainda relativa à fusão com o Unibanco. Julgados por 180 conselheiros — 90 representantes dos contribuintes e 90 da Receita —, os processos levam em média três anos e meio para ser decididos, tempo em que as empresas precisam manter provisões no balanço para o caso de derrota. Na Justiça comum, a situação é ainda mais desesperadora. Uma divergência tributária leva de sete a dez anos para ser julgada.

Em razão do emaranhado tributário, o Banco Mundial calculou que no ano passado as empresas brasileiras gastavam entre 1.101 e 1.483 horas por ano para se manter em dia com o Fisco, mais do que em qualquer outro país. Mais da metade de um ano de trabalho dedicada apenas a cumprir normas tributárias. A Receita contesta os dados. Afirma que 474 horas anuais são suficientes para enfrentar a burocracia. Mesmo assim, seriam 60 dias de trabalho, deixando o Brasil em 151º lugar na avaliação do Banco Mundial sobre a facilidade para pagar impostos.

Há soluções ao alcance de qualquer governo que não necessariamente passam pelo Congresso. Bastaria esclarecer as controvérsias mais comuns no Carf e obrigar a Receita a publicar opiniões mediante questionamentos prévios dos contribuintes. Isso evitaria práticas que resultassem em autos de infração e no acúmulo de processos.

Outra resposta necessária e urgente é a reforma tributária. Há dois projetos no Congresso que promovem a fusão e simplificação de impostos. O governo em nenhum momento trabalhou pela tramitação, nem contribuiu para fazer avançar um texto único. Preferiu fazer uma reforma fatiada que, além de insuficiente para resolver as distorções existentes, criava outras novas. Felizmente não prosperou.

O presidente que assumir o Planalto em 1º de janeiro terá o dever de dar à reforma tributária a prioridade exigida pela sociedade. É essencial aprová-la logo no primeiro ano de governo. Não se pode perder mais tempo para dar mais competitividade à economia brasileira. Enquanto houver uma confusão que resulta em centenas de bilhões de contencioso tributário apenas no Carf, investir no Brasil continuará sendo um risco que apenas aqueles com recursos em abundância ou os mais aventureiros se disporão a enfrentar.

Governo é omisso diante das 1.500 pistas de pouso ilegais na Amazônia

O Globo

Centenas delas estão localizadas em terras indígenas, pondo em risco o meio ambiente e a saúde

Em maio, O GLOBO noticiou que o Ibama mapeou 277 pistas de pouso irregulares no território ianomâmi, área equivalente a Portugal. Agora, reportagem do New York Times contou, além dessas, 1.269 outras pistas clandestinas em toda a Amazônia, ativas pelo menos até o ano passado, todas localizadas em áreas ricas em ouro e estanho. Centenas delas também em terras indígenas. Do total, 362 estavam dentro do raio de 20 quilômetros de algum garimpo.

Há na reserva ianomâmi três bases do Exército para monitorar a fronteira com a Venezuela. O Times mapeou 35 pistas clandestinas num raio de 80 quilômetros de uma dessas bases. Relatou o fato ao Exército e recebeu uma resposta protocolar: “O Exército reconhece que a integridade de suas fronteiras representa um desafio para o Estado brasileiro, e em particular para as forças de segurança”. Para justificar o imobilismo, informou que o Brasil tem mais de 16 mil quilômetros de fronteira com dez países para vigiar. A Força Aérea também foi procurada com insistência, mas não deu resposta.

Nos anos 1980, sob pressão internacional, a Força Aérea destruiu várias pistas na região e fechou o espaço aéreo sobre o território durante meses. Isso é o que deveria ter sido feito já há algum tempo. Antes de Bolsonaro e sua política de incentivo ao garimpo e à exploração da madeira na Amazônia, ainda havia operações militares semelhantes. Agora, o sinal verde do Planalto à ocupação de terras produz uma destruição ambiental sem paralelo.

A invasão da terra ianomâmi por 30 mil garimpeiros em Roraima segue um padrão. Definida a área a explorar, geralmente às margens de um rio, abrem-se pistas clandestinas para estabelecer a logística do transporte de garimpeiros, alimento, combustível, equipamentos e do próprio ouro.

Enquanto o crime organizado se alastra na Amazônia, sua representatividade no Congresso poderá crescer se vingar a pré-candidatura a deputado federal pelo PL de Roraima do empresário Rodrigo Martins, sob investigação da PF por apoiar a mineração ilegal na terra ianomâmi. As empresas dele em Boa Vista, uma de táxi-aéreo e outra de perfuração de poços artesianos, são acusadas de ter movimentado mais de R$ 200 milhões em dois anos. A cifra, segundo a PF, só pode ser explicada se, entre os negócios, estiverem o ouro e a cassiterita da reserva indígena.

O Times usou uma ferramenta especial para analisar milhares de fotos de satélite, a fim de encontrar sinais de mineração próximos às pistas, como as piscinas usadas pelos garimpeiros para fazer a separação do ouro com o mercúrio, que depois polui os rios e contamina os peixes consumidos em povoados e cidades. Segundo laudo da PF, o mercúrio encontrado nos quatro rios que correm no território ianomâmi (Couto de Magalhães, Catrimani, Parima e Uraricoera) está 8.600% acima do seguro para consumo humano. Quem quer que seja o vencedor das eleições de outubro, terá de enfrentar intensa pressão internacional para lidar com esse tipo de devastação que aflige a Amazônia e as populações indígenas.

Risco de destruição e muitas dúvidas na licença à BR-319

Valor Econômico

Nenhuma das recomendações feitas por um grupo de trabalho estabelecido em 2008 foi cumprida integralmente

Há quase nove anos, reportagem do Valor descrevia da seguinte forma o estado de precariedade da BR-319, a estrada que deveria ligar Manaus e Porto Velho, duas capitais com população total de 2,8 milhões de habitantes: “Sem qualquer manutenção, o trecho central da rodovia, um traçado de 405 km, foi totalmente invadido pela mata. O clima úmido e as chuvas ajudaram a transformar a camada fina do asfalto em um farelo escuro e pedras que se misturaram ao barro. Crateras surgiram por todos os lados, pontes apodreceram”. De lá para cá, nada mudou. Esse trecho continua intransitável, privando enorme contingente de brasileiros do deslocamento barato e seguro. Há uma dívida social do país com a região Norte, que ainda carece do básico em serviços públicos e ostenta indicadores vergonhosos - só 13% de cobertura da rede de esgoto em aglomerados urbanos e mais de 800 mil pessoas sem acesso à energia elétrica, vivendo em condições não muito diferentes daquelas no século XIX.

Com sua pavimentação concluída em 1973, a BR-319 foi concebida como um dos principais eixos rodoviários da Amazônia. Veículos de passeio percorriam facilmente seus 877 km em até 12 horas. Havia linhas regulares de ônibus entre Manaus e Porto Velho. Menos de duas décadas depois de inaugurada, porém, ela já se encontrava em decomposição. Hoje só se trafega na rodovia em seus quilômetros iniciais, partindo de cada extremidade. O miolo da estrada está tão deplorável que exigirá o reasfaltamento completo. É quase como construir do zero.

No fim de julho, ignorando alertas da sociedade civil e de seus próprios servidores, o Ibama emitiu licença prévia ao projeto de repavimentação da BR-319. Em teoria, isso significa que o empreendimento é viável do ponto de vista socioambiental. E que, se forem cumpridas certas condicionantes, passa-se à etapa seguinte: a licença de instalação e o início efetivo das obras. Na prática, o processo fica muito longe de transmitir o mínimo de segurança em matéria de sustentabilidade. Nas circunstâncias atuais, está mais para aventura, com sinais de destruição à vista.

Há indícios de fragilidade na decisão tomada pelo presidente do Ibama, Eduardo Bim, que recentemente classificou a si mesmo como um “psicopata” e disse não estar “nem aí” para críticas. Ao assinar a licença, Bim relevou apontamentos que constavam de pareceres técnicos do próprio órgão e dos estudos de impacto ambiental (EIA-Rima). Os documentos indicam o risco de mais grilagem em terras públicas e de ampliação do desmatamento ilegal - ainda que medidas de mitigação sejam adotadas.

Nenhuma das recomendações feitas por um grupo de trabalho estabelecido em 2008 - com representantes do Ministério do Meio Ambiente, do Ibama, do Instituto Chico Mendes e do órgão ambiental do Amazonas - foi cumprida integralmente. O relatório do grupo propunha dez iniciativas anteriores à emissão da licença prévia. Uma delas era a formação de um arco com 16 unidades de conservação (UCs), de um lado e de outro da rodovia, a fim de dificultar o avanço do desmatamento. Como se sabe, o presidente Jair Bolsonaro não criou novas UCs no país.

A mera especulação sobre o começo das obras já tem provocado estragos. Lábrea e Apuí, dois municípios localizados no sul do Amazonas e na área de influência da BR-319, são os campeões em alertas de desmatamento em 2022. O Estado, sempre citado como um exemplo de preservação, foi responsável por 31% de toda a perda de florestas durante o primeiro semestre e vê sua divisa meridional como nova fronteira de atividades ilícitas.

Some-se a isso, além de tudo, o arrocho a que têm sido submetidos os diversos órgãos ambientais no governo Bolsonaro. Em 2019, o orçamento destinado à gestão do meio ambiente era de R$ 5 bilhões, menor valor desde 2005. Os anos seguintes foram de queda contínua, e 2022 é o quarto exercício consecutivo de menor dotação em 17 anos - apenas R$ 3,4 bilhões. À luz de tais números, soa irrisória uma das condicionantes da licença recém-emitida: a instalação de três postos de segurança na BR-319, antes ou concomitantemente com as obras, a fim de fiscalizar 885 km de rodovia e seu entorno.

Da forma como foi dado, o aval do Ibama convida o Ministério Público e o Judiciário a atuar contra. Mais uma vez, provavelmente haverá gritaria sobre a demora no processo de licenciamento ambiental, bem como sobre a necessidade de desburocratização. A culpa não é (apenas) do tempo ou da burocracia, mas da fragilidade de decisões da inação do Estado em implementar soluções.

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