Editoriais / Opiniões
Estadista de fancaria
O Estado de S. Paulo
Em sua viagem à Grã-Bretanha e aos EUA, Bolsonaro confirma sua incapacidade de agir como chefe de Estado e sua dificuldade de respeitar os limites, seja o do decoro do cargo, seja o da lei
Em seu recém-encerrado tour pelo exterior,
o presidente da República, Jair Bolsonaro, tinha dois compromissos como chefe
de Estado: participar do funeral da rainha Elizabeth em Londres e da abertura
da Assembleia-Geral da ONU em Nova York. Esteve nas duas solenidades, mas em
nenhuma delas participou efetivamente como chefe de Estado. Usando dinheiro
público e a estrutura da Presidência, Jair Bolsonaro não se comportou como
representante do Brasil, mas como um líder de facção política, fazendo comícios
eleitorais onde se exigia uma conduta de estadista.
Diante de um histórico que inclui a imitação jocosa de um doente de covid com falta de ar, sabotagem do esforço para vacinar os brasileiros, propaganda de remédios ineficazes contra a covid, ofensas a jornalistas (principalmente mulheres), manobra para indicar um filho à Embaixada nos EUA, suspeitas de rachadinha e de lavagem de dinheiro na família, incentivo ao descumprimento da lei ambiental, desgoverno nas áreas da saúde e da educação e ameaça golpista de não reconhecer o resultado da eleição, talvez alguém possa pensar que se trata de um pecadilho a confusão feita por Jair Bolsonaro entre candidato à reeleição e chefe de Estado. Não é.
Em primeiro lugar, o uso do cargo público
para fins eleitoreiros significa descumprimento da lei eleitoral em dois pontos
centrais. Há a utilização do dinheiro público para fins particulares, o que é
manifestamente ilegal. E há abuso do poder político – o detentor do cargo usa
sua posição pública para angariar votos –, instaurando-se um desequilíbrio de
forças entre os candidatos, que devem dispor de igualdade de condições.
Um presidente que a todo momento se jacta
de respeitar a Constituição deveria saber que sua atitude é francamente ilegal.
Obviamente essa confusão de funções não foi mero descuido. Foi a repetição da
mesma conduta delituosa observada no 7 de Setembro, quando Jair Bolsonaro usou
a comemoração do Bicentenário da Independência para fazer campanha eleitoral.
Não se tem notícia de que algum outro candidato a presidente tenha explorado os
eventos oficiais do Bicentenário para fazer comício ou transformado repartições
diplomáticas do Brasil no exterior em palanque. A democracia exige igualdade de
condições. A Justiça Eleitoral não pode ser conivente com abuso do poder
político ou econômico.
Ademais, há um aspecto que transcende a
lei: a dimensão do exercício da Presidência da República. Como chefe de Estado,
o presidente da República não representa apenas os seus apoiadores ou mesmo uma
parcela, por maior que possa ser, da população. Ele representa todo o País,
toda a população. Por isso, quando um chefe de Estado fala, especialmente no
exterior, ele está falando em nome de toda a população.
No entanto, e aqui está a absoluta
incapacidade de Jair Bolsonaro para o cargo, ele nunca fala em nome de todos os
brasileiros. Ele não sabe unir. Não sabe agregar. Talvez essa seja a grande
constante de seus quatro anos de governo, em que, desde o discurso de posse, em
1.º de janeiro de 2019, sempre apenas se dirigiu a seus apoiadores e a suas
pautas. Em todas as circunstâncias, ele procurou explicitamente dividir,
provocar, instigar, atritar. Até mesmo no velório da rainha Elizabeth.
Jair Bolsonaro nunca entendeu o que
significa ser chefe de Estado. Nunca captou o que implica essa função de
representação de todos. Ele sempre se portou como chefe da grei que o idolatra.
Daí que a sua viagem à Inglaterra e aos Estados Unidos tenha trazido tanta
frustração aos que assumiram a inglória tarefa de melhorar a imagem do
presidente para as próximas eleições. A pretensão era produzir imagens de Jair
Bolsonaro sério e estadista, ao lado de tantos outros chefes de Estado, mas a
criação ficcional tem seus limites.
A incapacidade de Jair Bolsonaro de
representar o País não é meramente circunstancial. Tem causas profundas. Seu
discurso na ONU, tal como seus três anteriores, foi constrangedor. Bolsonaro
reafirmou sua imensa dificuldade de respeitar os limites – seja o de sua função
como chefe de Estado, seja o do decoro do cargo que ocupa, seja o da lei.
A esbórnia do Fundo Eleitoral
O Estado de S. Paulo
Recursos têm sido repassados a candidaturas fantasmas, para justificar cota feminina, e desviados para financiar irregularmente campanhas em que partidos de fato apostam
O Fundo Eleitoral se cristalizou como mais
uma excrescência do sistema político brasileiro. Criado para reduzir a
influência de empresas no processo eleitoral depois que o Supremo Tribunal
Federal (STF) proibiu as doações de pessoas jurídicas, o fundão só aumentou de
tamanho nos últimos anos e sempre em proporções exponenciais. De R$ 1,7 bilhão
em 2018, subiu a R$ 2 bilhões em 2020 e atingiu o recorde de R$ 4,9 bilhões
neste ano. Dirigentes partidários e parlamentares argumentam que a democracia
“tem um custo”, ainda que isso consuma a verba destinada a políticas públicas
custeadas pelo Orçamento, e sustentam que um valor menor não seria suficiente
para bancar as campanhas deste ano. Agora, antes mesmo das eleições, o Estadão revelou
a quem e para que têm servido esses recursos: candidaturas fantasmas.
Reportagem publicada há poucos dias mostrou
que os dirigentes partidários repassaram R$ 5,8 milhões do fundo para
candidatos que praticamente não fizeram campanha, neófitos na disputa ou que
tiveram votação pífia em pleitos anteriores. Nomes que não foram divulgados nem
mesmo em redes sociais, muito menos em santinhos impressos, fizeram jus a
valores vultosos, em circunstâncias excêntricas quando comparadas ao tratamento
conferido a raposas do mundo político. O presidente da Câmara, Arthur Lira
(PP-AL), por exemplo, recebeu R$ 2 milhões para sua reeleição. Lira conta com
outdoors, slogan musical e um número de fácil fixação, estrutura que evidencia
o quanto o partido de fato investe em seu nome. O valor repassado a Lira, no
entanto, foi inferior aos R$ 3 milhões transferidos a Adriana Mendonça,
candidata a deputada federal pelo PROS no Amazonas e que ocupa o 14.º lugar
entre os maiores beneficiários do fundão.
A situação de Adriana, que conquistou 41
votos quando concorreu ao cargo de deputada estadual em 2018, já seria
altamente suspeita, não fosse o fato de o próprio presidente do PROS no
Amazonas, Edward Malta, admitir o papel que ela tem prestado neste ano – linha
auxiliar do ex-marido, que disputa o governo do Estado. “O recurso vai ser
usado na campanha do governador, do vice, de todos os candidatos”, disse. Não é
um caso único. Há exemplos semelhantes em diversos partidos e Estados, com
distribuição de verbas até mesmo para quem abandonou a disputa ou teve a candidatura
indeferida.
Os valores repassados pelos dirigentes
partidários por meio do Fundo Eleitoral variam em magnitude, mas se há algo em
comum a essas candidaturas fantasmas é a preferência por mulheres. O fenômeno
expõe as distorções geradas por legislações que tentam ampliar a representação
política das mulheres no Legislativo e a enorme diferença entre o discurso
público e a prática interna das siglas. Uma das leis delas prevê que as
mulheres sejam no mínimo 30% das candidaturas proporcionais; outra obriga a
distribuição de 30% da verba do fundão para candidaturas femininas. Longe de
representar um investimento concreto para ampliar a presença das mulheres no
Legislativo, esses recursos têm sido usados para financiar, de forma irregular,
as campanhas nas quais as siglas realmente apostam – quase sempre lideradas por
homens.
Esse é apenas um dos aspectos nefastos do
Fundo Eleitoral. Há muitos outros, como o fato de que as legendas abrem mão de
lançar candidatos à Presidência da República e aos governos estaduais para
priorizar as eleições proporcionais, uma vez que o tamanho da bancada de
deputados federais na Câmara é o critério de maior peso na distribuição dessa
verba. O fundão garantiu um tratamento privilegiado do erário aos partidos e os
dispensou, enquanto organizações privadas, de buscarem contribuições com
membros e simpatizantes. A recente revelação do Estadão é apenas uma
amostra de algo maior, que exige apuração célere e punição exemplar por parte
da Justiça Eleitoral, responsável pelo julgamento dos demorados processos de
prestação de contas das campanhas. Aos dirigentes partidários, cabe uma
incômoda pergunta: é para isso que o Fundo Eleitoral foi criado?
Cadeado em porta arrombada
O Estado de S. Paulo
STF fez bem ao limitar acesso a armas de fogo. Mas Bolsonaro já triplicou o número de armas em poder de civis
O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu,
por maioria de votos, a validade de alguns dispositivos de decretos do
presidente Jair Bolsonaro que facilitaram a compra e o porte de armas de fogo e
munições. É ótimo que a Corte tenha se posicionado firmemente sobre uma questão
de grande interesse público, sobretudo neste momento de recrudescimento da
violência política no País. A liberdade individual assegurada pela Constituição
não abarca a compra de verdadeiros arsenais pelos cidadãos. Mas, na prática, a
decisão de frear o armamento da população funciona como um cadeado em uma porta
que já foi arrombada.
Estima-se que cerca de 1 milhão de armas de
fogo, dos mais diversos calibres, inclusive armas de uso restrito das Forças
Armadas e das Polícias, estejam em poder de Caçadores, Atiradores Desportivos e
Colecionadores (CACs). Esse número é três vezes maior do que era em 2018,
quando Bolsonaro foi eleito. O presidente da República, não é segredo para
ninguém, está empenhado em armar a população até os dentes desde que tomou
posse. E a facilitação da emissão dos certificados CACs é um dos caminhos
adotados pelo chefe do Executivo.
Bolsonaro costuma alegar que “o cidadão
armado pode se defender contra a violência”, seja no campo ou na cidade, e “não
se submete a tiranos”. Ambos os argumentos são absolutamente falaciosos.
Estatísticas das Secretarias Estaduais de Segurança Pública e estudos de
organizações da sociedade civil, como os institutos Sou da Paz e Igarapé,
mostram que cidadãos armados têm muito mais probabilidade de morrer durante uma
abordagem de criminosos.
Já em relação à “proteção contra tiranos”,
se há, de fato, alguma ameaça autoritária que paira sobre os brasileiros, é a
eventual reeleição de Bolsonaro, alguém cronicamente insubmisso às leis e à
Constituição. Portanto, manter à distância de um comando seu esse enorme
contingente de apoiadores armados é muito conveniente para um líder com forte
pendor para sobrepor suas vontades ao ordenamento jurídico do País.
Ainda mais grave do que a política oficial
de facilitação do acesso a armas de fogo pelos cidadãos é o total descontrole
sobre o paradeiro de todas essas armas, a começar pelo fato de que certificados
CACs têm sido emitidos pelo Exército sem o devido controle.
Em resposta à Controladoria-Geral da União,
o Exército também admitiu há poucos dias que não tem condições de mapear
quantas armas estão em poder de CACs em todo o Brasil. A justificativa dos
militares chega a ser mais espantosa do que o fato em si: o Exército, que se
empenhou em montar uma numerosa força-tarefa para fiscalizar urnas eletrônicas
– função estranha às Forças Armadas –, não teria como mobilizar 12 homens
durante 180 dias para compor uma força-tarefa para realizar esse levantamento –
que deveria ser prioritário para os militares.
O próximo governo deverá colocar em seu rol de prioridades tanto a retomada do controle de armamentos em circulação no País como o lançamento de uma campanha de estímulo à entrega voluntária dessas armas, nos moldes da Campanha Nacional de Desarmamento (2011-2012). Ninguém está seguro com tantas armas longe do controle do Estado.
Projeto e realidade
Folha de S. Paulo
Haddad propõe ações que, em seu tempo de
prefeito, não progrediram a contento
À esquerda e à direita, seja para o
Executivo ou o Legislativo, campanhas costumam ser pródigas em vender ilusões
ao eleitorado.
A profusão de propostas e promessas alcança
patamares espantosos à medida que as disputas ficam mais acirradas —e quase
sempre ignora as reais condições para que se tornem exequíveis.
Uma vez no governo ou nas Casas
legislativas, o eleito logo se depara com delicadas costuras políticas, tempo
escasso para implementar seus projetos, legislações e burocracias intrincadas
e, sobretudo, frágil situação orçamentária.
Fernando Haddad (PT), candidato ao governo
paulista que lidera as pesquisas, foi prefeito de São Paulo entre 2013 e 2016.
Ao término do mandato, e com base em critérios de sua própria administração, o
programa de metas foi cumprido apenas pela metade (54,5%).
Na campanha de 2012, o petista esperava
contar com R$ 9 bilhões em recursos federais, mas menos de R$ 2 bilhões
chegaram à cidade.
O aperto no caixa inviabilizou planos
ambiciosos, como a construção de 20 CEUs (centros de educação unificada) —foi
entregue apenas 1— e 150 km de corredores de ônibus —optou-se, em ampla
maioria, pelas faixas exclusivas à direita das vias, que indubitavelmente
desafogam o transporte coletivo, mas têm eficácia menor.
Obras também ficaram pelo caminho, como um
hospital na zona leste, tema explorado por adversários na corrida ao
Bandeirantes.
Além de adotar o padrão CEU nas escolas da
rede estadual e dar prioridade aos ônibus, Haddad pretende replicar experiências
municipais que tiveram problemas de execução, como o Braços Abertos.
O programa previa moradia e tratamento aos
dependentes da cracolândia. Os participantes prestavam serviços de zeladoria e
recebiam R$ 15 por dia. Estudo apontou que dois terços dos beneficiários
reduziram o uso da droga. O abrigo nos hotéis da região, contudo, mostrou-se
temerário: o tráfico acabou se infiltrando nesses locais.
Nesta campanha, uma das metas mais
ambiciosas do ex-prefeito é criar o bilhete único metropolitano, que visa
integrar tarifas de municípios da mesma região.
Trata-se de uma vitrine petista, implantada
com êxito na capital. Há, porém, desafios hercúleos, como acomodar interesses
de prefeitos e empresários, além de entraves financeiros e tecnológicos.
Se é impossível prever se esses projetos
irão adiante em uma eventual vitória, são alvissareiras as declarações do
candidato de que pretende manter
iniciativas de sucesso em gestões tucanas, como o Bom Prato, as
câmeras corporais na polícia e a Rede Lucy Montoro.
Não é pouca coisa diante da prática
encontradiça na governança nacional de reinventar programas de quatro em quatro
anos.
Omissão demarcada
Folha de S. Paulo
Séria mostra impacto dramático do atraso na
regularização de terras indígenas
Antes de se tornar presidente da República,
Jair Bolsonaro (PL) já deblaterava contra a demarcação de terras indígenas.
Disse que não demarcaria nem um centímetro de área e manteve-se fiel à palavra
dada. Se o cumprimento de uma promessa mostra respeito ao eleitor, nesse caso
há também um conflito em potencial com a Constituição.
As "quatro linhas" da Carta, como
gosta de dizer Bolsonaro, estabelecem: "A União concluirá a demarcação das
terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da
Constituição" (art. 67 das Disposições Transitórias).
O prazo, portanto, esgotou-se em 1993.
Resta evidente que não apenas Bolsonaro mas todos os governantes pós-1988
estiveram em débito com o mandato constitucional e com os povos aos quais a
nação reconheceu o direito originário às suas terras tradicionalmente ocupadas
(art. 231).
O atual presidente saiu-se pior que Michel
Temer (MDB), que em 28 meses de mandato oficializou um único território. Os
números mais expressivos couberam a Fernando Henrique Cardoso (PSDB), com 145
unidades demarcadas, e Fernando Collor de Mello, com 112.
A lacuna histórica que o constituinte
tentou reparar, assim, continua sem solução. Persistem no Brasil, três décadas
depois de esgotado o prazo constitucional, mais de 300 terras em alguma fase do
processo de demarcação inconcluso.
Com a insegurança jurídica perene e a
hostilidade contra povos indígenas insuflada por Bolsonaro, grileiros,
garimpeiros e madeireiros ilegais invadem essas terras com audácia galopante.
Resultado do assédio: conflitos, doenças, gravidezes precoces e esgarçamento
das relações tradicionais entre aldeias, que passam a digladiar-se.
Exemplo eloquente da deterioração começou a
ser dado pela primeira
reportagem da série sobre demarcação que a Folha lançou
nesta semana. Os jaminawas do Acre ocupam desde 1997, por decisão da Funai,
terras que até hoje não foram demarcadas.
Sem poder contar com o poder público para fazer valer direitos, a terra Jaminawa do Rio Caeté vê seus jovens sem perspectiva de uma vida segura cooptados por facções criminosas atuantes na região de Sena Madureira. Aldeias passam a identificar-se como afiliadas a grupos inimigos entre si, reproduzindo o que há de pior no Brasil não indígena.
Decisão do STF sobre armas expõe manobra da
Corte
O Globo
Tribunal tem dever de acabar com o abuso
dos pedidos de vista como estratégia para protelar decisões
A maioria dos ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF)
decidiu suspender os efeitos de trechos de decretos do presidente Jair Bolsonaro
que facilitam a compra e o porte de armas. Em julgamento virtual encerrado na
terça-feira, nove dos 11 integrantes da Corte votaram para
manter a decisão do ministro Edson Fachin que os tinha
derrubado de forma liminar no começo do mês. Os dois votos contrários foram dos
ministros Nunes Marques e André Mendonça. Embora o resultado da decisão seja
desejável, o caminho que levou a ela foi inadequado.
É prudente tomar medidas para reduzir o
risco de violência tanto no período eleitoral quanto depois da divulgação dos
resultados e na posse dos eleitos. Os decretos de Bolsonaro entram em conflito
evidente com dispositivos do Estatuto do Desarmamento, aprovado em 2003. Não
faz sentido que atiradores, caçadores e colecionadores, conhecidos pela sigla
CACs, tenham permissão para adquirir até 60 armas de uso restrito. Tampouco é
razoável permitir a compra de quantidades absurdas de munição.
Além da preocupação com o aumento da
violência por motivação política, essas armas e munições acabam por alimentar o
arsenal de facções criminosas. Também é injustificável o trecho do decreto que
presumia a veracidade da “declaração de efetiva necessidade” para comprar
armas. Corrigir esses erros era e continua a ser essencial. O problema foi a
maneira como o STF chegou à decisão de terça-feira.
A Corte tem sido leniente demais com as
interrupções de julgamentos para os ministros analisarem os processos por mais
tempo — ou, no jargão jurídico, os pedidos de vista. Muitos são legítimos.
Outros têm por objetivo apenas segurar os processos quando se vislumbra um
resultado desfavorável. Na impossibilidade de vencer a votação no plenário, o
ministro descontente decide ficar sentado em cima da decisão. São pedidos de
vista meramente “obstativos”, para empregar outro termo caro aos juristas. Ao
todo, há mais de 200 ações à espera de ser devolvidas ao plenário, algumas
delas há vários anos.
Entre as ações paradas, estão as três que
questionam os decretos de Bolsonaro — duas apresentadas pelo PSB, uma pelo PT.
Começaram a ser julgadas no primeiro semestre de 2021. Em outubro, quando o
plenário já tinha os votos de Fachin, Rosa Weber e Alexandre de Moraes para
derrubar os decretos, o ministro Nunes Marques pediu vista e, desde então, não
devolveu o processo. Com o início da campanha eleitoral, PSB e PT entraram com
os pedidos de liminar. Para driblar a barreira imposta por Nunes Marques, Fachin
os atendeu de forma monocrática, outra prática condenável. Ao referendá-los, o
plenário fez vista grossa para esse drible no trâmite regular.
Em vez disso, o STF deve ao país uma saída
institucional para a questão. É preciso acabar com a festa dos pedidos de
vista. Várias saídas são possíveis do ponto de vista regimental. A mais óbvia
é, depois que acabar o prazo estipulado em 60 dias no regimento, o processo
voltar automaticamente ao plenário, a votação continuar e ser encerrada sem o
voto do ministro que pediu vista. Outras soluções menos drásticas podem ser
estudadas. O que não dá é para continuar como está.
Expansão da guerra na Ucrânia é cenário que
não interessa a ninguém
O Globo
Convocação de reservistas e plebiscitos
para anexar quatro regiões mostram que Putin quer estender conflito
Vladimir Putin marcou para os próximos dias
plebiscitos que lhe permitirão anexar mais quatro regiões da Ucrânia invadidas
por tropas russas no início do ano (a Crimeia foi anexada ainda em 2014). Convocou 300
mil reservistas para lutar na guerra e declarou que usaria
“todos os meios” a seu alcance para defender a Rússia. A expressão foi
interpretada como referência ao uso de armas nucleares, pois, a partir da
anexação, qualquer ataque ucraniano na região em conflito poderia ser
interpretado como agressão à Rússia e justificaria uma reação enérgica. Esse
não é o único motivo para seu discurso despertar preocupação.
Desde a contraofensiva ucraniana que
retomou vastas extensões do território ocupado neste mês, a Rússia se vê diante
da pressão para reagir. Putin decidiu então dobrar a aposta. No discurso, passa
a considerar o território ucraniano explicitamente como parte da Rússia ou dos
países vizinhos. É como se seu objetivo fosse eliminar o país que vê como
ameaça. Seu próximo passo seria declarar guerra formal não apenas contra a
Ucrânia, mas contra a própria Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan),
vista por Putin como a força por trás da resistência ucraniana. É um cenário
que obviamente não interessa a ninguém, nem mesmo a seus aliados.
Os dois países de que Putin mais depende
para sustentar sua agressão à Ucrânia, China e Índia, manifestaram em encontro
no último fim de semana sua frustração com a duração do conflito, que esperavam
ser bem menor que os mais de seis meses pelos quais já se estende. Putin também
aproveitou o inverno europeu para cortar o fornecimento de gás ao continente e
tentar semear a divisão entre as democracias ocidentais que se opõem a seu
projeto expansionista.
Paradoxalmente, suas provocações reiteradas
têm contribuído para fazer o Ocidente superar divergências e cerrar fileiras no
apoio à Ucrânia, como demonstram a adesão de Suécia e Finlândia à Otan e
declarações recentes dos líderes de França, Alemanha e Estados Unidos. A
convocação de reservistas também tende a ampliar as resistências a sua aventura
militar dentro da própria Rússia. Não se sabe se as elites russas estarão
dispostas a bancar a nova aposta de Putin ou se conspirarão para apeá-lo do
poder.
No momento, a maior dificuldade é saber até que ponto Putin cumprirá suas ameaças. Ele já desafiou a incredulidade do mundo outras vezes. Mas, mesmo que se atenha ao uso de armas convencionais ou que apenas procure estender por mais alguns meses a guerra até chegar a um cessar-fogo em termos que julgue aceitáveis, o preço a pagar pelo desvario da guerra terá sido altíssimo. O Ocidente precisa naturalmente oferecer apoio aos ucranianos, mas antes de tudo pensar numa saída negociada que resgate a paz na região.
Fed segue ritmo forte de ajuste, sem corte
de juros em 2023
Valor Econômico
O juro só começará a cair em 2024, mas não
muito, para 3,9%
O Federal Reserve americano manteve ontem o
ritmo inusual de aumento da taxa básica de juros e elevou-a em 0,75 ponto
percentual, para o intervalo entre 3% e 3,75%. Mais que isso, deixou claro que,
na expectativa dos membros do banco, haverá até o fim do ano mais ajustes de
juros de 1,25 ponto percentual, encerrando 2022, segundo a mediana das
estimativas, entre 4,25% e 4,5%. Para comparação, no início do ano, em março, a
projeção para a taxa era de 1,9% e, em junho, de 3,4%. O Fed indicou também que
não cortará os juros em 2023.
Com a inflação ao consumidor de 8,3% em
agosto e seu núcleo em 6,3%, o Fed mudou a chave moderada da política monetária
vigente até o primeiro semestre, aposentou a retórica de que as pressões
inflacionárias eram temporárias e preparou uma bateria de elevações dos juros
até que a inflação demonstre, sem margem a dúvidas, segundo Jerome Powell,
presidente do Fed, que faz o caminho de volta para a meta de 2%. “Não podemos
falhar”, disse ontem Powell.
As incógnitas no caminho, para os quais o
Fed naturalmente não tem respostas, são qual será a taxa de juros no fim do
ciclo e qual o tamanho da desaceleração da economia que o ciclo de aperto
provocará. Pelas projeções dos membros do Fed, não haverá uma recessão, mas
quase. O PIB crescerá apenas 0,2% neste ano e 1,2% em 2023, significativamente
abaixo, segundo Powell, da sua taxa de expansão de longo prazo, estimada em
1,8%. Os investidores e analistas têm previsões mais pessimistas, apontando uma
recessão no fim do ano ou no primeiro trimestre de 2023.
Powell praticamente abandonou sua
perspectiva de um “softish landing”, ao considerá-lo como algo “desafiador”
neste momento e “cada vez mais improvável” à medida em que se aumenta a carga
de juros necessária para derrubar a inflação.
O aperto será maior do que o esperado e
mais prolongado, como ficou claro pelas projeções. Os investidores previam que
o Fed começaria a cortar juros mais para o final de 2023, mas o banco elevará
marginalmente a taxa dos fed funds no ano que vem, para entre 4,5% e 4,75%. O
juro só começará a cair em 2024, mas não muito, para 3,9%, o que indica que
permanecerão praticamente três anos acima ou igual 4%, superior ao juro de
longo prazo, de 2,5%.
Diante de uma inflação muito alta, o Fed
acha que a dosagem dos juros em curso deverá ser suficiente para reduzir o
índice de gastos pessoais cheio a 5,4% neste ano e 2,8% no próximo, ainda longe
do alvo do banco. As previsões para 2024 são de 2,3% tanto para o PCE quanto
para seu núcleo. A meta, na prática, e se tudo der certo, será atingida
plenamente só em 2025.
Há algumas peças desajustadas entre a
retórica mais dura do Fed e suas projeções. Reequilibrar o mercado de trabalho,
hoje “extremamente apertado”, segundo Powell, e moderar os reajustes de
salários por ele provocado, exigirá que a taxa de desemprego cresça de 3,7%
(agosto) para 3,8% no fim do ano e 4,4% em 2023, mantendo-se nesse nível em
2024. É uma desocupação apenas um pouco superior àquela estimada para a
tendência de longo prazo, de 4%.
Da mesma forma, parecem pouco sólidas as
projeções de crescimento de curto prazo. A quase totalidade da carga de juros
será aplicada até o fim do ano, reduzindo o PIB a 0,2%, mas a manutenção da
taxa nesse nível restritivo, ou um pouco mais, ao longo do ano que vem levará a
uma expansão maior da economia, de 1,2%. A política monetária atua com boa
defasagem, mas Powell acredita que o aperto das condições financeiras é
igualmente relevante, atuando rápida e diretamente sobre a economia, reagindo
até antecipadamente aos sinais emitidos pelo Fed.
Powell não vê estragos grandes
necessariamente ocorrendo no mercado de trabalho, pela excepcionalidade de sua
situação hoje, com duas vagas em aberto para cada empregado que procura
ocupação. Ele disse que isso é completamente fora do padrão histórico americano
e que não será preciso uma reacomodação radical para que se chegue a um ponto
de equilíbrio. Da mesma forma, ele afirmou que diante da maior variação do
nível de preços em 40 anos, a inflação de longo prazo permaneceu todo o tempo
ancorada, facilitando assim a tarefa de “restabelecer a estabilidade de
preços”. Isto é, as menções a Paul Volcker e seu legado de firmeza e taxa de
juros de dois dígitos servem para mostrar as intenções do Fed em não levar até
o fim o combate à inflação, mas por enquanto Powell não crê que se chegue nem
perto de um aperto tão duro.
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