Quando o mar tem mais segredo
É quando é calmaria”
O título deste artigo repete, em parte, o
do primeiro desta coluna (“Em busca de um centro: uma eleição e dois scripts”)
publicado em 12 de dezembro de 2020. Reitera um ponto que esta coluna via e
continua vendo como requerimento racional a ser feito à política brasileira. Como
no artigo pretérito, aqui se tenta interpretar possibilidades que manifestações
do soberano real, ocorridas em dado momento eleitoral, deixam abertas para a
satisfação, ou não, de tal requerimento, pela política a ser praticada após as
eleições, as quais - não é demais lembrar - são os momentos políticos magnos,
em democracias.
Porém, a magnitude do voto não provém do magma que se desprende como lava enquanto o momento eleitoral acontece. Ela se mostra tanto mais plena quanto possa orientar os atores políticos na sua lida diária com a política fria. Cada estelionato eleitoral agride essa magnitude do instante soberano e pode deixar o eleitor enfurecido por uma fúria realista, cobrada a prazo e servida também a frio, como a vingança. Quem recolhe os votos do eleitor transforma-se em seu cavalo, mas em geral não sabe que anjo mora dentro do montador que ele julga ser montaria. Anjo vingativo, que lhe “fere de esporas” enquanto fora da urna canta, em ritmo de calmaria, a música que o político incauto toca. Eis o segundo sentido (além do de lembrar Sueli Costa viva, na letra de Cacaso) da citação que epigrafa este artigo.
Admito que há, nessa pretensão analítica, uma
prescrição (o estelionato eleitoral não é bom caminho) e uma previsão (a
democracia tem uma dinâmica pela qual a demagogia inebriará e engolirá seu
dono). A suposição é que quem, na campanha eleitoral, dribla a realidade para
ser mais esperto, pensa encontrá-la, após a vitória, pronta para ser manejada
como ferramenta passiva da vontade de poder. Mas que o castigo, embora
parecendo trotar, pode vir a galope para apear o ilusionista do governo.
Prescrição e previsão compõem aí uma “moral
da história” e são, como se sabe, ingredientes traiçoeiros para a análise
política, por mais que ela se cerque de possíveis antídotos, como moderação no
preparo do conteúdo do primeiro ingrediente e prudência na adição de doses do segundo.
Seguro mesmo é só o feijão com arroz. Apenas descrever e perguntar, guardando
prescrições e previsões no esconderijo das entrelinhas. Nessa linha, digamos,
de análise liminar, precavida contra erros de avaliação, é funcional usar
palavras como “agenda” e “cenários”, boas para dissimular os ingredientes
perigosos. Mas se o tema é política, eles não estarão completamente ausentes,
ainda que sejam dissimulados com perícia.
Para quem quer ir um pouco além desse modo
de segurança, o recurso é aceitar os ingredientes traiçoeiros, submetendo-os ao
crivo da intuição. Ela indicará ao analista se uma prescrição pode ser um juízo
de valor razoável ou é um discurso sem juízo. E se dada previsão é uma hipótese
ou um delírio. Mas até a intuição não pode também ser usada sem tempero. Ela não
basta para que algo dito ou escrito resulte claro e lúcido. Ao mesmo tempo não
será veraz, para um bom leitor ou ouvinte, qualquer linha escrita que a
contrarie. São cuidados que não poderiam impedir – como não impediram - que
vários fatos posteriores fossem implacáveis em escapar ou mesmo contrariar o
que ficou dito e escrito no aqui mencionado artigo de 2020, posterior às
eleições municipais daquele ano, mas anterior à entrada em cena do fator Lula,
que embaralharia, inapelavelmente, as cartas do jogo eleitoral que se ensaiava.
Isso não quer dizer nem que as análises
anteriores tinham obrigação de adivinhar a intervenção do imprevisto, nem que
por causa dela podem ser anistiadas previamente por seus eventuais enganos.
Quando se propõem a tratar de aspectos que vão além do factual, cabe interpelá-las,
sim, a partir dos fatos subsequentes. O artigo inaugural desta coluna não
escapa a essa regra, ainda mais quando existe, como agora, a intenção de
reiterar, sob novo contexto, o seu argumento central. Quem quiser conferir, ele
está acessível, em texto e áudio, pelo mesmo link que acessa o atual.
O ponto era se o resultado das eleições
municipais de 2020 seriam preditivos da presidencial de 2022. Ele tinha sentido
porque as municipais de 2016 haviam predito o desfecho da eleição nacional de
2018. Contrariando uma “tradição” consagrada por três décadas e reconhecida
pela ciência política brasileira - de que os dois tipos de eleição tinham
sentidos políticos distintos por estarem ligadas a dinâmicas institucionais
também distintas - houve, entre as de 2016 e 2018, um sentido político comum,
de recusa da “velha política”. O carimbo da Lava-jato estava batido numa dupla
novidade, a da conexão de sentido entre pleitos institucionalmente distintos e a
da emergência urgente do que seria uma “nova política”. Diante desse feito
incomum, o resultado das urnas de 2020 pedia para ser decifrado. Após a experiência
dos dois primeiros anos de Bolsonaro, passados em litígio com a república
federativa e após a flagrante incapacidade do discurso da “nova política”, que
o presidente cavalgou, de lidar com o drama sanitário e social da pandemia, as
urnas reabilitaram a experiência da política sólida, alternativa que os
prefeitos brasileiros tiveram para enfrentar o fantasma do caos social,
simultaneamente ao desafio das urnas.
A análise, no artigo da época, evitou
cravar uma aposta e apresentou uma disjuntiva no lugar da previsão. Ou 2020
teria sido só parênteses por causa do quadro atípico da pandemia e 2022 reiteraria
o quadro inóspito da disputa polarizada de 2018, ou aquela reabilitação parcial
da elite política em 2020 seria o início de uma reconstrução de partes abaladas
do sistema republicano, processo que se consolidaria como agenda nas eleições
presidenciais de 2022. O ponto de vista preditivo do analista -que essa
disjuntiva dissimulava sem enganar o bom leitor - era o de que as urnas haviam
legitimado a reconstrução sistêmica, uma hipótese assentada na ideia de ir em
busca de um centro político.
Submetidos hoje ao crivo dos fatos, os
“cenários” alternativos então apontados para as eleições de 2022 (a reiteração
do “espírito” ultra-polarizador de 2018 ou a reconstrução sistêmica) sobrevivem
como possibilidades de um processo inconcluso. O que não sobreviveu aos fatos
foi a ideia de 2022 como esquina onde se decidiria o futuro largo. Ela fez os
cenários surgirem, na cabeça do analista, como disjuntiva. Mas o que se deu foi
o império da conjunção “e”, no lugar daquele suposto “ou”. Por um lado, a
polarização inóspita predominou na campanha, rachando o eleitorado ao meio,
descartando uma terceira via ou mesmo uma terceira força política como fiel da
balança e ainda resiste a sair de cena após dois meses de novo governo. Já o
cenário da reconstrução sistêmica não foi descartado, está na agenda política
atual e mesmo na ordem do dia, graças ao fato de ter havido segundo turno. A
ideia de reconstituir o que foi temporariamente lesado num sistema com relativa
saúde legitimou-se nas urnas com a vitória apertada de Lula. Essa foi permitida
pela formação, de fora para dentro da sua campanha, de uma frente política e
social que não só impediu a reeleição de Bolsonaro como a ascensão de um
governo de frente de esquerda, que tenderia a reproduzir, com sinal invertido,
o quadro de polarização fixado quatro anos antes. Em outras palavras, a busca de um centro
político não foi bem sucedida na eleição, nem se encerrou nela como causa
perdida. Persiste como prescrição razoável e a demonstração mais cabal disso
está sendo o modo vigoroso e unitário pelo qual o sistema reagiu ao movimento
golpista de 8 de janeiro e está procurando, para processar e punir, os seus
responsáveis. Ainda que quisesse, ou queira, o presidente eleito e empossado
não poderia, ou pode, nessas circunstâncias, negar sua condição de candidato
sistêmico, que foi, e expressão, que é, da cúpula colegiada do sistema
político.
Espera-se de uma análise do momento atual
que não se iluda com cenas de autorreferência que se reproduzem em algumas
posses festivas no novo governo, organizadas para afirmar identidades,
percepções e pretensões parciais como se fossem expressões de interesse público
capazes de justificar de modo suficiente políticas de Estado. A posição em que
se encontra o Presidente da República, como chefe de Estado, é de vértice de um
sistema cujas cúpulas legislativa e judiciária estão hoje – graças ao estresse
que a extrema-direita impôs como desafio a esse sistema – empoderadas e mais
conscientes da sua força e prerrogativas (resta ver se estarão à altura também
de suas responsabilidades na calmaria). Essa condição não permitirá a essa
pessoa, que também é chefe do Poder Executivo, ignorar que esse Poder, no novo
contexto de interação institucional, deixou de ser, também na prática, o que
jamais foi de direito, isto é, síntese e marca personalizada do poder
institucional da república. E no novo contexto político que resulta dessa nova
interação entre os poderes do Estado, ele não pode ser o detentor monopólico,
sequer superior hierárquico em relação ao Legislativo, no exercício de funções
de governo. Compartilhá-las com o Congresso (cujos membros foram também
legitimamente eleitos), com separação funcional, mas sem essa pretensão de
hierarquia, tradicionalmente reivindicada por líderes plebiscitários como
vontade do povo, é dever constitucional, não só um gesto de sabedoria e
realismo político, muito menos de concessão em nome de uma conciliação. É de
prerrogativas que aqui se fala.
O terreno da conciliação é outro, os dos
necessários pactos políticos amplos em torno das diretrizes programáticas de
governo e do conteúdo das políticas públicas. Aí sim, o presidente, como chefe
de governo, goza de prerrogativas constitucionais e legitimidade eleitoral para
ser o árbitro dos limites até onde queira, deva e possa fazer concessões a
aliados e oposições. As duas balizas são
conhecidas de toda sociedade onde vigora um sistema democrático: de um lado não
abusar de suas prerrogativas em respeito à governabilidade e para não acionar
contra si demônios exterminadores; de outro, não cometer estelionato eleitoral
em respeito ao soberano que, ludibriado, pode se tornar um anjo vingador.
Essas balizas também demarcam o terreno
pelo qual as oposições poderão se mover. Responsabilidades também lhe são
delegadas tanto pelo sistema político, como pelo eleitorado. Cumprindo-as
poderão, respectivamente, ter assento reconhecido na discussão de pactos de
governabilidade e se apresentar aos eleitores como alternativas de poder.
Fugindo a essas responsabilidades arriscam-se ao isolamento político e/ou à
marginalidade eleitoral.
Assim como há dois anos, a fala do soberano
real através das urnas de outubro último é que está determinando espaços
possíveis para movimentos do governo, da liderança do Legislativo e dos
partidos políticos. Esses trafegam entre os dois poderes em contínuo processo
de fortalecimento de seus papeis institucionais, de racionalização do sistema partidário
que formam e do sistema eleitoral em que exercem crescente protagonismo, a
partir da concretização dos efeitos da reforma incremental de suas regras,
estipulada pelo Congresso em 2016. É o tipo de processo que se aprofunda em mar
calmo e deve ser visto como portador de mudanças auspiciosas dentre as quais se
destaca a possibilidade de enfraquecer práticas de governo pessoal entre nós.
Mais que perigos vejo aí segredos a serem desvendados pela política. É o
sentido de atitudes políticas práticas que determinará se a maior
institucionalização de partidos e a cooperação de poderes que essa baliza
institucional estimula servirão para promover mudanças orientadas a bens
públicos ou para aprofundar males que já existem.
Sob esse pano de fundo institucional,
ensejado pelo despejo da extrema-direita do centro do poder, esboçam-se
distintos scripts políticos possíveis, tanto para o novo governo - que ainda
parece um ensaio de orquestra – quanto para uma nova oposição, cujo perfil é
ainda mais opaco. Dentro deles e entre eles segue irresolvida a questão da
construção do centro político. O tema do próximo artigo será um escrutínio
desses esboços alternativos, ainda hipotéticos, que as urnas estimularam quando
delas não saiu uma decisão que descortinasse um futuro mais largo. Basta olhar
os perfis político-partidários do presidente e do congresso eleitos para ver
que os eleitores os condenaram a se entender em meio à provisoriedade. Ela
decorre de solavancos do mar revolto da campanha. E pode se resolver na calmaria.
*Cientista político e professor da UFBa
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