quinta-feira, 14 de setembro de 2023

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

Minirreforma enfraquece a lei eleitoral

O Globo

Em vez de encarar as questões mais importantes, os congressistas querem facilitar acesso a recursos públicos

Três iniciativas em andamento no Congresso representam afrouxamento na legislação eleitoral, em benefício de quem não respeita ou viola regras estabelecidas. Por isso não deveriam prosperar.

A primeira — e mais escandalosa — é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9, conhecida como PEC da Anistia. Ela isenta de culpa, portanto de multas, partidos políticos que tenham cometido irregularidades dos mais variados tipos nas últimas eleições, em particular no cumprimento das cotas de candidaturas de mulheres e negros (estas são prejudicadas com redução de recursos). É a segunda vez que o Congresso tenta aprovar um perdão eleitoral de amplo espectro. A mensagem não poderia ser mais direta. Para o cidadão comum, há leis a cumprir. Para políticos ou candidatos, não é bem assim; quando as leis não agradam, mudam-se as leis.

A segunda iniciativa é o Projeto de Lei (PL) 4438, cujo objetivo é deixar mais opacas as exigências de partidos e candidatos. O PL aumenta o risco de que as finanças partidárias não sejam examinadas, acaba com a prestação de contas parcial na campanha e amplia as oportunidades para compra de votos. Como se tudo isso não bastasse, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 192 afrouxa as regras de inelegibilidade para criminosos e contraventores.

Eis um resumo das propostas da minirreforma eleitoral que angariou apoio entre todas as tendências ideológicas do Congresso, da extrema direita à extrema esquerda.

Não falta, é certo, o que mudar na lei eleitoral. A começar pelas regras draconianas adotadas para propaganda na campanha ou para aparições de candidatos em canais de TV e programas de rádio. Enquanto nas redes sociais prevalece uma espécie de vale-tudo, as restrições impostas aos meios de radiodifusão chegam ao absurdo, como revela a presença obrigatória em debates de figuras irrelevantes, caso do folclórico padre Kelmon na última eleição. A publicidade obrigatória, de eficácia discutível, é outro tema que merece ser revisado.

Outros temas que valeria a pena retomar constavam do projeto do Novo Código Eleitoral, parado no Senado. É o caso da proposta de uma quarentena de cinco anos, imposta a procuradores, juízes, policiais e militares que desejarem concorrer a cargos eletivos. Ela reduziria o oportunismo de quem usa o cargo como trampolim político e contribuiria para profissionalizar a atividade.

É verdade que a minirreforma propõe algumas mudanças positivas. Um dispositivo do PL 4438 amplia o conceito de violência política contra a mulher e prevê medidas protetivas. O projeto também regula doações para candidatos via Pix, prática já permitida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas que carecia de regulação. É pouco, porém, diante da necessidade de aperfeiçoamentos na lei eleitoral.

Em vez de encarar as questões mais importantes, os congressistas parecem preocupados apenas em facilitar o acesso aos recursos públicos do fundo eleitoral. O Congresso parece repetir um hábito nefasto, infelizmente frequente: decisões benéficas vêm a conta-gotas, à custa de grande esforço, enquanto as nocivas vêm embaladas em pacotes preparados a toque de caixa para reduzir a exposição negativa perante a opinião pública.

Afastamento de China e Estados Unidos abre oportunidade ao Brasil

O Globo

México aproveitou ‘desacoplamento’ e se consolidou como o maior parceiro comercial dos americanos

Uma mudança relevante está em curso no comércio internacional — e o Brasil já deveria estar preparado para aproveitá-la melhor. De acordo com dados divulgados em agosto pelo Federal Reserve de Dallas, que acompanha de perto a economia americana, o México se consolidou como maior parceiro comercial dos Estados Unidos, tendo ultrapassado a China no último trimestre de 2021.

O comércio com a China cresceu a partir da aceitação na Organização Mundial do Comércio, em 2001. Desde 2014, ela liderava a lista de parceiros americanos, respondendo por mais de 15% da soma de importações e exportações. A guerra comercial deflagrada no governo Donald Trump, porém, afetou as exportações chinesas, com a imposição de tarifas sobre vários produtos, além de outras restrições.

O México soube aproveitar a oportunidade para atender o mercado americano. Nos primeiros quatro meses deste ano, respondeu por 15,4% do comércio internacional dos Estados Unidos, ante 12% dos chineses. As exportações mexicanas alcançaram US$ 157 bilhões, sobretudo de produtos industrializados (só como comparação, as brasileiras foram menos de um décimo disso, ou US$ 10,7 bilhões).

É verdade que, assim como o Canadá, o México se beneficia de um tratado de livre-comércio com os Estados Unidos (antes chamado Nafta, hoje USMCA). Também faz fronteira terrestre, uma vantagem logística. E mantém elos históricos. Mas é fundamental entender que o país adotou uma estratégia consistente para se aproveitar da política americana de desvincular sua economia da China, conhecida como “desacoplamento”.

Adotada no governo Trump e mantida na gestão Joe Biden, essa política ganhou impulso com o choque provocado pela pandemia nas cadeias globais de suprimentos. A falta de produtos chineses fez a inflação disparar, e os Estados Unidos decidiram reduzir a dependência de países longínquos. O México se tornou uma alternativa natural para a estratégia de trazer a produção a países próximos, o nearshoring.

De olho no colossal mercado americano, grandes grupos passaram a realocar suas fábricas da Ásia para o Ocidente. O Brasil também poderia se beneficiar desse movimento se estivesse atento ao que acontece no mundo. À medida que a Argentina atravessa mais uma de suas crises periódicas, o mercado consumidor americano se torna o mais importante destino dos produtos manufaturados brasileiros. Não seria difícil apostar na abertura comercial para tornar nossas exportações aos americanos mais competitivas.

Aparentemente, nenhuma autoridade brasileira anteviu no “desacoplamento” das maiores economias globais uma oportunidade para ocupar espaços. Em vez disso, o governo continua acreditando em incentivos artificiais para tentar “reindustrializar” segmentos historicamente protegidos (caso da indústria automotiva). A exemplo do México, o Brasil deveria abrir a sua economia para modernizá-la e diversificar sua pauta de exportações. O exemplo mexicano tem muito a nos ensinar.

Reforma eleitoral e anistia são retrocessos institucionais

Valor Econômico

Projetos diminuem brutalmente a transparência das campanhas eleitorais e do uso correto do dinheiro público

Quando se trata de regras que envolvem a reprodução do sistema político, deputados e senadores seguem o instinto de conservação - com algum exagero. É o caso do projeto de minirreforma eleitoral e do projeto de emenda constitucional de anistia ampla, geral e irrestrita às infrações à legislação eleitoral cometidas até hoje. Os contribuintes não precisariam se preocupar a respeito de questões próprias à organização interna de entes de direito privado, como são os partidos. Mas no Brasil essas decisões são por eles integralmente pagas. Todos os partidos são sustentados, total ou parcialmente, pelo Estado, uma anomalia que distorce o sistema democrático brasileiro.

Há dois projetos que confluem para eliminar as responsabilidades no uso dos recursos públicos destinados ao financiamento das campanhas eleitorais, assim como os erros cometidos, voluntariamente ou não, pelas legendas. As duas mudanças têm apoio de praticamente todos os partidos, de centro, direita e esquerda. O grupo de trabalho para a minirreforma eleitoral, que de míni nada tem, é coordenado por Dani Cunha, filha do ex-presidente da Câmara, condenado a vários anos de prisão, Eduardo Cunha. Novata no Legislativo, ela tem como relator o deputado petista maranhense Rubens Pereira Junior. Na recente campanha eleitoral, depois do petrolão, o PT não fez propaganda dizendo-se paladino da moralidade pública, algo que ficou na poeira do tempo das eleições passadas. De fato, as propostas de Pereira Junior mostram que o partido se afastou muito dessas pretensões.

Os termos do projeto de reforma eleitoral se afastam de qualquer coisa politicamente correta, como financiamentos para mulheres e negros (grupo que inclui pretos e pardos, pela definição do IBGE) - que na verdade reduzem -, para abraçar causas politicamente incorretas. Há uma preocupação principal em ambos os projetos: esconder o caminho do dinheiro recebido, ponto nevrálgico das campanhas. O projeto limita sanções à suspensão dos recursos do fundo partidário - em torno de R$ 1 bilhão -, mas não do fundo eleitoral, que no pleito de 2022 foi de R$ 4,9 bilhões e que no de 2024 pode aumentar, se os desejos dos partidos forem atendidos.

Sobre as prestações de contas, há um “liberou geral” no atacado e no varejo. Se aprovada a reforma, não haverá mais controle sobre o repasse a prestadores de serviços às campanhas eleitorais - não raro, vastos “laranjais”, que recebem pagamentos que irão para o bolso dos próprios candidatos. A liberalidade permite ainda outra suposição: camuflar a compra de votos. A compra de votos, por sinal, pode ser punida, pela legislação vigente, com a cassação do eleito e o pagamento de multas pelo infrator. O projeto apresentado substitui a conjunção aditiva - “e”, que inclui as duas penas, pela conjunção alternativa - “ou”. O objetivo é restringi-la a multas. Estas, por sua vez, foram limitadas e variam de R$ 10 mil a R$ 150 mil. Já as verbas do fundo eleitoral poderão cobrir despesas pessoais dos candidatos, definidas em termos genéricos suficientes para incluir todo tipo de gastos, abrindo caminho para a apropriação para fins pessoais.

A apropriação de fundos eleitorais públicos para fins pessoais está longe de ser uma exceção nas campanhas passadas. O projeto se debruça sobre esta questão e propõe uma solução simples: os candidatos não precisarão mais apresentar certidões que atestem sua idoneidade eleitoral ou privada (processos na Justiça). A ideia que inspirou a regra também é singela. Se o Judiciário é o poder concedente das certidões, já tem conhecimento prévio da ficha dos candidatos. Seria redundância apresentar o “nada consta”.

Quanto à ficha dos candidatos, o projeto dá um duplo salto carpado e abre brechas tanto na lei da ficha limpa quanto na de improbidade administrativa. Um candidato que burlou as regras terá ficha suja de 8 anos contados não mais a partir do fim do cumprimento da pena, mas a partir da data em que é decretada a perda do cargo eletivo, o que encurta bastante o período de inelegibilidade. Agentes públicos envolvidos na campanha que tenham desviado verbas só poderão ser condenados se ficar provada a intenção de lesar o erário e se for provado o enriquecimento ilícito.

A identificação dos gastos eleitorais, além disso, não terá mais como regra a imediatez propiciada pela internet. Os partidos não serão punidos se deixarem de apresentá-la em tempo real - a prestação parcial foi eliminada. O doador de recursos não precisará mais assinar recibo eleitoral do dinheiro repassado. No caso do financiamento de campanhas para mulheres e negros, há recuo em toda a linha para diminuí-lo, seja colocando o montante para mulheres na soma de partidos das federações, seja, no caso dos negros, restringindo a fatia a 20%, quando a lei determina que sejam proporcionais ao número de candidatos.

A reforma e a anistia diminuem brutalmente a transparência das campanhas eleitorais e do uso correto do dinheiro público. Deturpam a concorrência sadia pelo voto e estimulam o advento de oportunistas e pessoas sem espírito público. O Congresso deveria rejeitar ambas as iniciativas.

Ciclones políticos

Folha de S. Paulo

Governantes devem respostas mais concretas para enfrentar desastres climáticos

Vários ciclones extratropicais vêm fustigando o sul do Brasil desde junho, em particular o Rio Grande do Sul. Com eles chegam chuvas copiosas, os rios sobem e levam pessoas, casas, lavouras, pontes, carros —tudo que estiver no caminho.

Só o último evento climático extremo, na semana passada, custou 47 vidas e deixou ao menos 25 mil desabrigados; há três meses, outra enchente já havia provocado 16 mortes. São tragédias humanas e prejuízos de impacto incomum, com uma centena de municípios em calamidade pública.

O governador Eduardo Leite (PSDB) busca mitigar a provação que se abate sobre os gaúchos: máquinas e homens para ajudar na limpeza das áreas flageladas, com custo orçado em R$ 10 milhões; outros R$ 25 milhões para pagar R$ 2.500 a cada família desabrigada e R$ 700 para as atingidas que ainda contam com um teto.

É a reação esperável de um líder político às voltas com desastre dessa proporção. Porém foi inadequado inculpar modelos meteorológicos, que não teriam previsto chuvas localizadas de mais de 300 mm, por sua administração apanhada de surpresa na hecatombe.

Ao menos um instituto teria dado o alerta com cinco dias de antecedência. Não que se pudesse preparar algo de monta nesse prazo. O problema maior diante da emergência climática que assola o planeta está na recusa de governantes, planejadores, empresários e eleitores a enxergar o óbvio e se precaver para o que ela nos reserva.

Eventos climáticos extremos como esses ciclones até empalidecem quando comparados com o que se viu na Líbia —onde inundações causam mais de 5.000 mortes, talvez 10 mil, numa região desértica.

Engalfinhar-se politizando a desgraça humanitária é uma cortina de fumaça a que muitos recorrem para ocultar o elefante na sala. À esquerda, tenta-se incriminar Leite, de partido adversário, por omissão que em realidade é universal entre políticos, ao menos na proporção e na tempestividade que a emergência climática exigiria.

À direita, fabricam-se lendas sobre comportas de hidrelétricas construídas em governos petistas para ver se o temporal respinga lama na avaliação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Mas também é descabido o Planalto mobilizar aparato de Estado contra um jornalista que propaga a patranha.

O mais importante corre o risco de ficar ofuscado. Quais são os planos para preparar a população, as cidades e a economia para a mudança climática que bate à porta? Gaúchos e demais terráqueos aguardam respostas.

Rebeldia autoritária

Folha de S. Paulo

Democracia tem apoio global, mas adesão menor de jovens suscita preocupação

O debate sobre um possível enfraquecimento do regime democrático de governo baseia-se em mudanças recentes no cenário política global. E, de modo inusitado, talvez os jovens tenham papel relevante na irrupção desse fenômeno.

Os EUA viveram inédito retrocesso sob Donald Trump. Na Europa, Polônia e Hungria têm líderes que se perpetuam no poder e, nos países em que a extrema direita não venceu eleições, seus partidos têm se fortalecido.

Na África, uma sucessão de golpes pôs fim a frágeis aberturas democráticas. No Brasil, houve o ensaio golpista de Jair Bolsonaro (PL).

O quadro, porém, talvez seja menos desolador do que parece.

Pesquisa da Open Society Foundations, realizada em 30 países e concluída em julho, mostra que a esmagadora maioria (86%) considera importante viver numa democracia; para 62%, ela é preferível a qualquer outra forma de governo.

Nos dois primeiros itens, o Brasil registra índices superiores à média global, de 90% e 74%. No terceiro, ficamos abaixo, com 66%.

Quando lida com recortes, entretanto, a pesquisa traz alguns dados inquietantes. A adesão dos mais jovens à democracia é menor do que a das gerações anteriores.

Apenas 57% das pessoas entre 18 e 35 anos consideram a democracia preferível a todos os outros regimes —nas faixas etárias mais elevadas, o índice é de 71%.

Ademais, 42% dos jovens acreditam que um regime militar seja uma forma aceitável de governo, e 35% acham que um líder forte, que não ligue para o Parlamento ou para eleições, seja um caminho positivo —entre aqueles com 56 anos ou mais, os percentuais são de 20% e 26%, respectivamente.

Como explicar essa lacuna entre as gerações? Uma especulação é que, como a esquerda de modo geral ficou mais moderada e institucional, é a direita, mais especificamente a extrema direita, que se torna o polo contestador radical.

Se a juventude, com seu pendor natural pela rebeldia, está se deixando atrair por essas ideias, teríamos uma explicação para o hiato geracional e o crescimento do populismo conservador no mundo.

Caso a hipótese esteja correta, resta uma dúvida cujas implicações são relevantes. Se o gosto pelo radicalismo é apenas uma fase, o recorte populacional que hoje mostra mais tolerância com o extremismo se tornará, no futuro, mais firme na defesa da democracia.

Mas, se a juventude é o momento no qual se cristalizam preferências que serão carregadas pela vida, então o flerte com autoritarismo pode ser um problema duradouro.

Bagunça institucional

O Estado de S. Paulo

Toffoli desvirtua a AGU ao ordenar que apure supostos danos causados pela Lava Jato, e a AGU extrapola competência ao criar força-tarefa para investigar juízes e procuradores

Já teria sido suficientemente grave se o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao decidir anular todos os atos da Justiça tomados a partir do acordo de leniência firmado pela Odebrecht, tivesse se limitado a fazer revisionismo rudimentar, classificando de “um dos maiores erros judiciais da história do País” a prisão de Lula da Silva e dizendo que os processos contra o líder petista eram “uma verdadeira conspiração” contra um inocente.

Mas a decisão de Dias Toffoli extrapolou os limites de uma ação de reclamação não apenas ao tentar reescrever a história – como se o STF não tivesse participado, de uma forma ou de outra, dos atos que levaram Lula da Silva à prisão e como se o próprio tribunal não tivesse tardado anos para reconhecer a incompetência e a falta de imparcialidade do então juiz Sérgio Moro. O recente despacho do ministro do STF tem outro aspecto profundamente equivocado, e talvez ainda mais perigoso.

Dias Toffoli ordenou que a Advocacia-Geral da União (AGU) “proceda à imediata apuração para fins de responsabilização civil pelos danos causados pela União e por seus agentes em virtude da prática dos atos ilegais já decididos como tais nestes autos”. Primeiro, a ordem do ministro extrapola o âmbito de uma ação de reclamação, que tem objeto muito limitado. Em segundo lugar – e ainda mais grave –, ela promove o desvirtuamento de um órgão estatal, com o próprio STF ordenando que a AGU atue além dos limites que a Constituição lhe conferiu. Segundo o texto constitucional, cabe à AGU representar judicial e extrajudicialmente a União e realizar atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

Em outubro de 2020, criticou-se neste espaço o uso da AGU, por parte do governo Bolsonaro, para iniciativas estranhas às suas atribuições funcionais (ver o editorial A instrumentalização da AGU, 23/10/2020). Agora, a própria Corte constitucional determinou que o órgão do Executivo federal extrapole suas competências e suas funções, para apurar supostos danos causados por uma operação na qual estavam envolvidos Polícia Federal (PF), Ministério Público Federal (MPF) e Poder Judiciário.

Para piorar, como costuma acontecer, um erro desse quilate suscita outros equívocos. No mesmo dia da decisão do ministro Dias Toffoli – ou seja, como se pretendesse levantar todas as suspeitas possíveis de ação coordenada –, a AGU informou que vai criar uma “força-tarefa para apurar desvios de agentes públicos e promover a reparação de danos” causados por decisões da 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba e por membros do MPF no âmbito da Lava Jato.

Como se sabe, o atual advogado-geral da União, Jorge Messias, é um dos nomes cotados para ocupar a cadeira do STF que ficará vaga com a aposentadoria da ministra Rosa Weber. No entanto, por mais que seja compreensível seu desejo de agradar sobremaneira ao presidente Lula da Silva nas atuais circunstâncias, não lhe cabe subverter o funcionamento da AGU.

É muito grave – fere o Estado Democrático de Direito – a criação da tal força-tarefa pela AGU. O Executivo federal não tem competência para investigar juízes ou procuradores federais. A atuação da magistratura e do Ministério Público está submetida ao Judiciário e aos respectivos organismos de controle. A AGU, por meio de sua Corregedoria, pode instaurar sindicâncias e processos administrativos contra integrantes da própria AGU, diz a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União (Lei Complementar 73/1993). Em nenhum momento, a lei autoriza a abrir investigações contra o Judiciário ou contra o Ministério Público.

O ministro Dias Toffoli errou ao envolver a AGU na reclamação impetrada pelos advogados de Lula. Mas o advogado-geral da União foi além: usou o despacho do STF para colocar o Executivo investigando o Judiciário e o Ministério Público. Diante de tanta bagunça, que ironicamente vem corrigir os erros da Lava Jato, é preciso recordar o óbvio. Regime democrático é cumprimento da Constituição: o Judiciário não é órgão político, e o Executivo não é vingador.

Liderar não é só distribuir dinheiro

O Estado de S. Paulo

Lula perdeu uma oportunidade de dar conforto emocional aos gaúchos. Presença do chefe de Estado nas crises é crucial para transmitir esperança e estabilidade. Mas ainda há tempo

É lamentável que o presidente Lula da Silva ainda não tenha se dignado a visitar os gaúchos para lhes prestar solidariedade pessoalmente. Há uma semana, um ciclone extratropical devastou quase uma centena de municípios do interior do Rio Grande do Sul, levando à morte dezenas de pessoas e deixando milhares de desalojados e desabrigados. A bem da verdade, o governo federal se mobilizou para oferecer ajuda material ao Estado, mas isso não basta. Como presidente em exercício, Geraldo Alckmin viajou ao local. Mas isso tampouco é suficiente – afinal, o vice não é o presidente da República.

O que causa espanto é que Lula entende o valor desse amparo pessoal, e ainda assim não achou que era o caso de alterar sua agenda. Quando uma horda de bolsonaristas tomou Brasília de assalto no 8 de Janeiro, o presidente estava em Araraquara, no interior paulista, reunido com autoridades locais para avaliar os danos provocados pelas chuvas e confortar a população. Um mês depois, Lula viajou às cidades de São Vicente e Ubatuba, onde mais de 30 pessoas morreram em decorrência das fortes chuvas de verão. Sua presença no litoral norte de São Paulo ao lado do governador Tarcísio de Freitas, um adversário político, transmitiu à Nação, num momento de dor, a ideia de que há laços mais fortes entre os brasileiros do que divergências ideológicas seriam capazes de romper.

A presença física do chefe de Estado nos momentos de luto ou calamidade pública é fundamental para dar conforto emocional aos cidadãos afligidos. A dimensão simbólica da liderança presidencial é muito mais importante do que seu aspecto burocrático. Um estadista é visto pela sociedade como um farol de esperança e estabilidade nos momentos mais dramáticos de uma nação. A história é pródiga em exemplos de situações em que a mera aparição do líder nacional em cenários devastados – seja por guerras, tragédias naturais ou emergências sanitárias – foi a chave para revigorar espíritos e orientar os esforços de superação.

Se, do ponto de vista humanitário, a distância entre Lula e os gaúchos pode ser considerada um desastre dentro de outro, do ponto de vista político é um deslize que permitiu que parlamentares como o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) – cujo próprio pai se entregou ao dolce far niente enquanto milhares de brasileiros agonizavam vítimas do coronavírus – tripudiassem da “falta de empatia” do presidente da República, para delírio da claque bolsonarista. Decerto Lula poderia ter passado sem essa.

Por terríveis que sejam, situações de luto ou calamidade pública são propícias para o reforço dos laços entre os brasileiros. A presença do líder máximo da Nação oferece conforto, orientação e esperança aos cidadãos. São percepções cruciais para gerar confiança na capacidade do governo de gerenciar a crise e fornecer os recursos necessários, não só financeiros, para superá-la. A figura do chefe de Estado ainda tem o condão de reforçar a ideia de unidade nacional, fator decisivo para a formulação de respostas coordenadas a qualquer tipo de crise, tanto por entes federativos como por organizações da sociedade civil.

Ademais, Lula perdeu uma oportunidade de demonstrar solidariedade e empatia, reafirmando que a Nação está e estará unida em face das adversidades, presentes ou vindouras. Teria ajudado, assim, a fortalecer os laços entre os cidadãos, promovendo um senso de comunidade e pertencimento. Ainda há tempo.

Lula foi eleito, convém lembrar, para unir o País. Como candidato à Presidência, alardeou essa intenção aos quatro ventos. Como chefe de Estado, adotou “União e Reconstrução” como slogan de seu terceiro mandato. Esperase, portanto, que Lula vá além de platitudes e, por meio de palavras e gestos inequívocos, seja capaz de inspirar os brasileiros a olhar para seus concidadãos com o espírito desarmado e procurar enxergar elementos de aproximação, em que pesem as divergências próprias de qualquer sociedade livre. Para infortúnio do País, nos últimos anos houve demasiado esforço na direção diametralmente oposta.

Pau que nasce torto

O Estado de S. Paulo

Discussões sobre a regulamentação das apostas esportivas confirmam o velho dito popular

O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, anunciou nesta semana que tanto o Ministério da Fazenda quanto o Ministério do Esporte terão estruturas paralelas para gerir as apostas de quota fixa, popularmente conhecidas de apostas esportivas. À Fazenda, caberá tratar da arrecadação, registro, outorga e regulação da atividade. O Ministério do Esporte, por sua vez, deve “acompanhar” o tema, algo que nem mesmo Padilha soube explicar o que significa.

Não é preciso refletir muito, no entanto, para interpretar a enigmática frase do ministro. Foi somente depois da promessa de “turbinar” o Ministério do Esporte – leia-se ampliar a verba à disposição da pasta – que o deputado André Fufuca (PP-MA) aceitou ficar com o cargo, coroando a entrada do Centrão na base aliada. As apostas esportivas devem gerar uma arrecadação de R$ 1,6 bilhão no ano que vem, recursos que ainda não existem, mas que já são alvo de uma disputa ferrenha entre os órgãos do governo.

Originalmente, o Executivo pretendia destinar 1% da receita líquida das bets ao Ministério do Esporte, descontados os prêmios pagos aos jogadores. Na medida provisória (MP) enviada ao Congresso, editada no âmbito da enfadonha novela da reforma ministerial, o porcentual ficou em 3%. Fufuca, no entanto, trabalha para elevar a fatia da pasta no texto que irá a votação – o que deve ser parte do conceito de “acompanhar” o assunto.

O tema das apostas esportivas confirma o velho ditado popular segundo o qual pau que nasce torto morre torto. O primeiro erro foi cometido em 2018, quando uma medida provisória publicada com a intenção de direcionar recursos oriundos de loterias para o Fundo Nacional de Segurança Pública recebeu, sem qualquer debate prévio, um capítulo inteiro sobre as apostas de quota fixa, dando a essa modalidade um questionável status de serviço público.

Não parece, mas os jogos de azar ainda são ilegais no País – proibição apoiada por este jornal. Nada disso conteve a atuação das casas de apostas online, cuja onipresença pode ser vista nos patrocínios de clubes de futebol e nos anúncios na televisão brasileira.

Preocupado unicamente com a arrecadação que essa atividade poderia proporcionar aos cofres públicos, o governo Lula incorreu no mesmo erro de origem ao propor, também por medida provisória, a regulamentação e a tributação das apostas esportivas. Tanto a lei de 2018 quanto a MP editada em julho endereçavam a autorização para explorar a atividade ao Ministério da Fazenda – o que, por si só, já configurava uma forma mal-ajambrada de ignorar a Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/1941).

A entrada do Ministério do Esporte nesse debate, concomitantemente ao processo de fritura e substituição da ministra Ana Moser, é apenas a mais recente etapa de uma história que começou muito mal e que, obviamente, não poderia acabar bem. E da forma como o tema vem sendo conduzido, o texto final da medida provisória que será submetido a votação no Congresso não será o final dessa história.

 

 

Nenhum comentário: