Minirreforma enfraquece a lei eleitoral
O Globo
Em vez de encarar as questões mais
importantes, os congressistas querem facilitar acesso a recursos públicos
Três iniciativas em andamento no Congresso
representam afrouxamento na legislação eleitoral, em benefício de quem não
respeita ou viola regras estabelecidas. Por isso não deveriam prosperar.
A primeira — e mais escandalosa — é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9, conhecida como PEC da Anistia. Ela isenta de culpa, portanto de multas, partidos políticos que tenham cometido irregularidades dos mais variados tipos nas últimas eleições, em particular no cumprimento das cotas de candidaturas de mulheres e negros (estas são prejudicadas com redução de recursos). É a segunda vez que o Congresso tenta aprovar um perdão eleitoral de amplo espectro. A mensagem não poderia ser mais direta. Para o cidadão comum, há leis a cumprir. Para políticos ou candidatos, não é bem assim; quando as leis não agradam, mudam-se as leis.
A segunda iniciativa é o Projeto de Lei
(PL) 4438, cujo objetivo é deixar mais opacas as exigências de partidos e
candidatos. O PL aumenta o risco de que as finanças partidárias não sejam
examinadas, acaba com a prestação de contas parcial na campanha e amplia as
oportunidades para compra de votos. Como se tudo isso não bastasse, o Projeto
de Lei Complementar (PLP) 192 afrouxa as regras de inelegibilidade para
criminosos e contraventores.
Eis um resumo das propostas da minirreforma
eleitoral que angariou apoio entre todas as tendências ideológicas do
Congresso, da extrema direita à extrema esquerda.
Não falta, é certo, o que mudar na lei
eleitoral. A começar pelas regras draconianas adotadas para propaganda na
campanha ou para aparições de candidatos em canais de TV e programas de rádio.
Enquanto nas redes sociais prevalece uma espécie de vale-tudo, as restrições
impostas aos meios de radiodifusão chegam ao absurdo, como revela a presença
obrigatória em debates de figuras irrelevantes, caso do folclórico padre Kelmon
na última eleição. A publicidade obrigatória, de eficácia discutível, é outro
tema que merece ser revisado.
Outros temas que valeria a pena retomar
constavam do projeto do Novo Código Eleitoral, parado no Senado. É o caso da
proposta de uma quarentena de cinco anos, imposta a procuradores, juízes,
policiais e militares que desejarem concorrer a cargos eletivos. Ela reduziria
o oportunismo de quem usa o cargo como trampolim político e contribuiria para
profissionalizar a atividade.
É verdade que a minirreforma propõe algumas
mudanças positivas. Um dispositivo do PL 4438 amplia o conceito de violência
política contra a mulher e prevê medidas protetivas. O projeto também regula
doações para candidatos via Pix, prática já permitida pelo Tribunal Superior
Eleitoral (TSE),
mas que carecia de regulação. É pouco, porém, diante da necessidade de
aperfeiçoamentos na lei eleitoral.
Em vez de encarar as questões mais
importantes, os congressistas parecem preocupados apenas em facilitar o acesso
aos recursos públicos do fundo eleitoral. O Congresso parece repetir um hábito
nefasto, infelizmente frequente: decisões benéficas vêm a conta-gotas, à custa
de grande esforço, enquanto as nocivas vêm embaladas em pacotes preparados a
toque de caixa para reduzir a exposição negativa perante a opinião pública.
Afastamento de China e Estados Unidos abre
oportunidade ao Brasil
O Globo
México aproveitou ‘desacoplamento’ e se
consolidou como o maior parceiro comercial dos americanos
Uma mudança relevante está em curso no
comércio internacional — e o Brasil já deveria estar preparado para
aproveitá-la melhor. De acordo com dados divulgados em agosto pelo Federal
Reserve de Dallas, que acompanha de perto a economia americana, o México se consolidou
como maior parceiro comercial dos Estados
Unidos, tendo ultrapassado a China no último
trimestre de 2021.
O comércio com a China cresceu a partir da
aceitação na Organização Mundial do Comércio, em 2001. Desde 2014, ela liderava
a lista de parceiros americanos, respondendo por mais de 15% da soma de
importações e exportações. A guerra comercial deflagrada no governo Donald
Trump, porém, afetou as exportações chinesas, com a imposição de tarifas sobre
vários produtos, além de outras restrições.
O México soube aproveitar a oportunidade
para atender o mercado americano. Nos primeiros quatro meses deste ano,
respondeu por 15,4% do comércio internacional dos Estados Unidos, ante 12% dos
chineses. As exportações mexicanas alcançaram US$ 157 bilhões, sobretudo de
produtos industrializados (só como comparação, as brasileiras foram menos de um
décimo disso, ou US$ 10,7 bilhões).
É verdade que, assim como o Canadá, o
México se beneficia de um tratado de livre-comércio com os Estados Unidos
(antes chamado Nafta, hoje USMCA). Também faz fronteira terrestre, uma vantagem
logística. E mantém elos históricos. Mas é fundamental entender que o país
adotou uma estratégia consistente para se aproveitar da política americana de
desvincular sua economia da China, conhecida como “desacoplamento”.
Adotada no governo Trump e mantida na
gestão Joe Biden,
essa política ganhou impulso com o choque provocado pela pandemia nas cadeias
globais de suprimentos. A falta de produtos chineses fez a inflação disparar, e
os Estados Unidos decidiram reduzir a dependência de países longínquos. O
México se tornou uma alternativa natural para a estratégia de trazer a produção
a países próximos, o nearshoring.
De olho no colossal mercado americano,
grandes grupos passaram a realocar suas fábricas da Ásia para o Ocidente. O
Brasil também poderia se beneficiar desse movimento se estivesse atento ao que
acontece no mundo. À medida que a Argentina atravessa mais uma de suas crises
periódicas, o mercado consumidor americano se torna o mais importante destino
dos produtos manufaturados brasileiros. Não seria difícil apostar na abertura
comercial para tornar nossas exportações aos americanos mais competitivas.
Aparentemente, nenhuma autoridade
brasileira anteviu no “desacoplamento” das maiores economias globais uma
oportunidade para ocupar espaços. Em vez disso, o governo continua acreditando
em incentivos artificiais para tentar “reindustrializar” segmentos historicamente
protegidos (caso da indústria automotiva). A exemplo do México, o Brasil
deveria abrir a sua economia para modernizá-la e diversificar sua pauta de
exportações. O exemplo mexicano tem muito a nos ensinar.
Reforma eleitoral e anistia são retrocessos
institucionais
Valor Econômico
Projetos diminuem brutalmente a
transparência das campanhas eleitorais e do uso correto do dinheiro público
Quando se trata de regras que envolvem a
reprodução do sistema político, deputados e senadores seguem o instinto de
conservação - com algum exagero. É o caso do projeto de minirreforma eleitoral
e do projeto de emenda constitucional de anistia ampla, geral e irrestrita às
infrações à legislação eleitoral cometidas até hoje. Os contribuintes não
precisariam se preocupar a respeito de questões próprias à organização interna
de entes de direito privado, como são os partidos. Mas no Brasil essas decisões
são por eles integralmente pagas. Todos os partidos são sustentados, total ou
parcialmente, pelo Estado, uma anomalia que distorce o sistema democrático
brasileiro.
Há dois projetos que confluem para eliminar
as responsabilidades no uso dos recursos públicos destinados ao financiamento
das campanhas eleitorais, assim como os erros cometidos, voluntariamente ou
não, pelas legendas. As duas mudanças têm apoio de praticamente todos os
partidos, de centro, direita e esquerda. O grupo de trabalho para a
minirreforma eleitoral, que de míni nada tem, é coordenado por Dani Cunha,
filha do ex-presidente da Câmara, condenado a vários anos de prisão, Eduardo
Cunha. Novata no Legislativo, ela tem como relator o deputado petista
maranhense Rubens Pereira Junior. Na recente campanha eleitoral, depois do
petrolão, o PT não fez propaganda dizendo-se paladino da moralidade pública,
algo que ficou na poeira do tempo das eleições passadas. De fato, as propostas
de Pereira Junior mostram que o partido se afastou muito dessas pretensões.
Os termos do projeto de reforma eleitoral
se afastam de qualquer coisa politicamente correta, como financiamentos para
mulheres e negros (grupo que inclui pretos e pardos, pela definição do IBGE) -
que na verdade reduzem -, para abraçar causas politicamente incorretas. Há uma
preocupação principal em ambos os projetos: esconder o caminho do dinheiro
recebido, ponto nevrálgico das campanhas. O projeto limita sanções à suspensão
dos recursos do fundo partidário - em torno de R$ 1 bilhão -, mas não do fundo
eleitoral, que no pleito de 2022 foi de R$ 4,9 bilhões e que no de 2024 pode
aumentar, se os desejos dos partidos forem atendidos.
Sobre as prestações de contas, há um
“liberou geral” no atacado e no varejo. Se aprovada a reforma, não haverá mais
controle sobre o repasse a prestadores de serviços às campanhas eleitorais -
não raro, vastos “laranjais”, que recebem pagamentos que irão para o bolso dos
próprios candidatos. A liberalidade permite ainda outra suposição: camuflar a
compra de votos. A compra de votos, por sinal, pode ser punida, pela legislação
vigente, com a cassação do eleito e o pagamento de multas pelo infrator. O
projeto apresentado substitui a conjunção aditiva - “e”, que inclui as duas
penas, pela conjunção alternativa - “ou”. O objetivo é restringi-la a multas.
Estas, por sua vez, foram limitadas e variam de R$ 10 mil a R$ 150 mil. Já as
verbas do fundo eleitoral poderão cobrir despesas pessoais dos candidatos,
definidas em termos genéricos suficientes para incluir todo tipo de gastos,
abrindo caminho para a apropriação para fins pessoais.
A apropriação de fundos eleitorais públicos
para fins pessoais está longe de ser uma exceção nas campanhas passadas. O
projeto se debruça sobre esta questão e propõe uma solução simples: os
candidatos não precisarão mais apresentar certidões que atestem sua idoneidade
eleitoral ou privada (processos na Justiça). A ideia que inspirou a regra
também é singela. Se o Judiciário é o poder concedente das certidões, já tem
conhecimento prévio da ficha dos candidatos. Seria redundância apresentar o
“nada consta”.
Quanto à ficha dos candidatos, o projeto dá
um duplo salto carpado e abre brechas tanto na lei da ficha limpa quanto na de
improbidade administrativa. Um candidato que burlou as regras terá ficha suja
de 8 anos contados não mais a partir do fim do cumprimento da pena, mas a
partir da data em que é decretada a perda do cargo eletivo, o que encurta
bastante o período de inelegibilidade. Agentes públicos envolvidos na campanha
que tenham desviado verbas só poderão ser condenados se ficar provada a
intenção de lesar o erário e se for provado o enriquecimento ilícito.
A identificação dos gastos eleitorais, além
disso, não terá mais como regra a imediatez propiciada pela internet. Os
partidos não serão punidos se deixarem de apresentá-la em tempo real - a
prestação parcial foi eliminada. O doador de recursos não precisará mais
assinar recibo eleitoral do dinheiro repassado. No caso do financiamento de
campanhas para mulheres e negros, há recuo em toda a linha para diminuí-lo,
seja colocando o montante para mulheres na soma de partidos das federações,
seja, no caso dos negros, restringindo a fatia a 20%, quando a lei determina que
sejam proporcionais ao número de candidatos.
A reforma e a anistia diminuem brutalmente
a transparência das campanhas eleitorais e do uso correto do dinheiro público.
Deturpam a concorrência sadia pelo voto e estimulam o advento de oportunistas e
pessoas sem espírito público. O Congresso deveria rejeitar ambas as
iniciativas.
Ciclones políticos
Folha de S. Paulo
Governantes devem respostas mais concretas
para enfrentar desastres climáticos
Vários ciclones extratropicais vêm
fustigando o sul do Brasil desde junho, em particular o Rio Grande do Sul. Com
eles chegam chuvas copiosas, os rios sobem e levam pessoas, casas, lavouras,
pontes, carros —tudo que estiver no caminho.
Só o último evento climático extremo, na
semana passada, custou
47 vidas e deixou ao menos 25 mil desabrigados; há três meses, outra
enchente já havia provocado 16 mortes. São tragédias humanas e prejuízos de
impacto incomum, com uma centena de municípios em calamidade pública.
O governador Eduardo Leite (PSDB) busca
mitigar a provação que se abate sobre os gaúchos: máquinas e homens para ajudar
na limpeza das áreas flageladas, com custo orçado em R$ 10 milhões; outros R$
25 milhões para pagar R$ 2.500 a cada família desabrigada e R$ 700 para as
atingidas que ainda contam com um teto.
É a reação esperável de um líder político
às voltas com desastre dessa proporção. Porém foi inadequado inculpar modelos
meteorológicos, que não teriam previsto chuvas localizadas de mais de 300 mm,
por sua administração apanhada de surpresa na hecatombe.
Ao menos um instituto teria dado o alerta
com cinco dias de antecedência. Não que se pudesse preparar algo de monta nesse
prazo. O problema maior diante da emergência climática que assola o planeta
está na recusa de governantes, planejadores, empresários e eleitores a enxergar
o óbvio e se precaver para o que ela nos reserva.
Eventos climáticos extremos como esses
ciclones até empalidecem quando comparados com o que se viu na Líbia —onde
inundações causam mais de 5.000 mortes, talvez 10 mil, numa região desértica.
Engalfinhar-se politizando a desgraça
humanitária é uma cortina de fumaça a que muitos recorrem para ocultar o
elefante na sala. À esquerda, tenta-se incriminar Leite, de partido adversário,
por omissão que em realidade é universal entre políticos, ao menos na proporção
e na tempestividade que a emergência climática exigiria.
À direita, fabricam-se lendas sobre
comportas de hidrelétricas construídas em governos petistas para ver se o
temporal respinga lama na avaliação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(PT). Mas também é descabido o Planalto mobilizar
aparato de Estado contra um jornalista que propaga a patranha.
O mais importante corre o risco de ficar
ofuscado. Quais são os planos para preparar a população, as cidades e a
economia para a mudança climática que bate à porta? Gaúchos e demais terráqueos
aguardam respostas.
Rebeldia autoritária
Folha de S. Paulo
Democracia tem apoio global, mas adesão
menor de jovens suscita preocupação
O debate sobre um possível enfraquecimento
do regime democrático de governo baseia-se em mudanças recentes no cenário
política global. E, de modo inusitado, talvez os jovens tenham papel relevante
na irrupção desse fenômeno.
Os EUA viveram inédito retrocesso sob
Donald Trump. Na Europa, Polônia e Hungria têm líderes que se perpetuam no
poder e, nos países em que a extrema direita não venceu eleições, seus partidos
têm se fortalecido.
Na África, uma sucessão
de golpes pôs fim a frágeis aberturas democráticas. No Brasil, houve
o ensaio golpista de Jair Bolsonaro (PL).
O quadro, porém, talvez seja menos
desolador do que parece.
Pesquisa da Open Society Foundations,
realizada em 30 países e concluída em julho, mostra que a esmagadora
maioria (86%) considera importante viver numa democracia; para 62%,
ela é preferível a qualquer outra forma de governo.
Nos dois primeiros itens, o Brasil registra
índices superiores à média global, de 90% e 74%. No terceiro, ficamos abaixo,
com 66%.
Quando lida com recortes, entretanto, a
pesquisa traz alguns dados inquietantes. A adesão dos mais jovens à democracia
é menor do que a das gerações anteriores.
Apenas 57% das pessoas entre 18 e 35 anos
consideram a democracia preferível a todos os outros regimes —nas faixas
etárias mais elevadas, o índice é de 71%.
Ademais, 42% dos jovens acreditam que um
regime militar seja uma forma aceitável de governo, e 35% acham que um líder
forte, que não ligue para o Parlamento ou para eleições, seja um caminho
positivo —entre aqueles com 56 anos ou mais, os percentuais são de 20% e 26%,
respectivamente.
Como explicar essa lacuna entre as
gerações? Uma especulação é que, como a esquerda de modo geral ficou mais
moderada e institucional, é a direita, mais especificamente a extrema direita,
que se torna o polo contestador radical.
Se a juventude, com seu pendor natural pela
rebeldia, está se deixando atrair por essas ideias, teríamos uma explicação
para o hiato geracional e o crescimento do populismo conservador no mundo.
Caso a hipótese esteja correta, resta uma
dúvida cujas implicações são relevantes. Se o gosto pelo radicalismo é apenas
uma fase, o recorte populacional que hoje mostra mais tolerância com o
extremismo se tornará, no futuro, mais firme na defesa da democracia.
Mas, se a juventude é o momento no qual se
cristalizam preferências que serão carregadas pela vida, então o flerte com
autoritarismo pode ser um problema duradouro.
Bagunça institucional
O Estado de S. Paulo
Toffoli desvirtua a AGU ao ordenar que
apure supostos danos causados pela Lava Jato, e a AGU extrapola competência ao
criar força-tarefa para investigar juízes e procuradores
Já teria sido suficientemente grave se o
ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao decidir anular
todos os atos da Justiça tomados a partir do acordo de leniência firmado pela
Odebrecht, tivesse se limitado a fazer revisionismo rudimentar, classificando
de “um dos maiores erros judiciais da história do País” a prisão de Lula da
Silva e dizendo que os processos contra o líder petista eram “uma verdadeira
conspiração” contra um inocente.
Mas a decisão de Dias Toffoli extrapolou os
limites de uma ação de reclamação não apenas ao tentar reescrever a história –
como se o STF não tivesse participado, de uma forma ou de outra, dos atos que
levaram Lula da Silva à prisão e como se o próprio tribunal não tivesse tardado
anos para reconhecer a incompetência e a falta de imparcialidade do então juiz
Sérgio Moro. O recente despacho do ministro do STF tem outro aspecto
profundamente equivocado, e talvez ainda mais perigoso.
Dias Toffoli ordenou que a Advocacia-Geral
da União (AGU) “proceda à imediata apuração para fins de responsabilização
civil pelos danos causados pela União e por seus agentes em virtude da prática
dos atos ilegais já decididos como tais nestes autos”. Primeiro, a ordem do
ministro extrapola o âmbito de uma ação de reclamação, que tem objeto muito
limitado. Em segundo lugar – e ainda mais grave –, ela promove o desvirtuamento
de um órgão estatal, com o próprio STF ordenando que a AGU atue além dos
limites que a Constituição lhe conferiu. Segundo o texto constitucional, cabe à
AGU representar judicial e extrajudicialmente a União e realizar atividades de
consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
Em outubro de 2020, criticou-se neste
espaço o uso da AGU, por parte do governo Bolsonaro, para iniciativas estranhas
às suas atribuições funcionais (ver o editorial A instrumentalização da AGU,
23/10/2020). Agora, a própria Corte constitucional determinou que o órgão do
Executivo federal extrapole suas competências e suas funções, para apurar
supostos danos causados por uma operação na qual estavam envolvidos Polícia
Federal (PF), Ministério Público Federal (MPF) e Poder Judiciário.
Para piorar, como costuma acontecer, um
erro desse quilate suscita outros equívocos. No mesmo dia da decisão do
ministro Dias Toffoli – ou seja, como se pretendesse levantar todas as
suspeitas possíveis de ação coordenada –, a AGU informou que vai criar uma
“força-tarefa para apurar desvios de agentes públicos e promover a reparação de
danos” causados por decisões da 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba e por
membros do MPF no âmbito da Lava Jato.
Como se sabe, o atual advogado-geral da
União, Jorge Messias, é um dos nomes cotados para ocupar a cadeira do STF que ficará
vaga com a aposentadoria da ministra Rosa Weber. No entanto, por mais que seja
compreensível seu desejo de agradar sobremaneira ao presidente Lula da Silva
nas atuais circunstâncias, não lhe cabe subverter o funcionamento da AGU.
É muito grave – fere o Estado Democrático
de Direito – a criação da tal força-tarefa pela AGU. O Executivo federal não
tem competência para investigar juízes ou procuradores federais. A atuação da
magistratura e do Ministério Público está submetida ao Judiciário e aos respectivos
organismos de controle. A AGU, por meio de sua Corregedoria, pode instaurar
sindicâncias e processos administrativos contra integrantes da própria AGU, diz
a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União (Lei Complementar 73/1993). Em
nenhum momento, a lei autoriza a abrir investigações contra o Judiciário ou
contra o Ministério Público.
O ministro Dias Toffoli errou ao envolver a
AGU na reclamação impetrada pelos advogados de Lula. Mas o advogado-geral da
União foi além: usou o despacho do STF para colocar o Executivo investigando o
Judiciário e o Ministério Público. Diante de tanta bagunça, que ironicamente
vem corrigir os erros da Lava Jato, é preciso recordar o óbvio. Regime
democrático é cumprimento da Constituição: o Judiciário não é órgão político, e
o Executivo não é vingador.
Liderar não é só distribuir dinheiro
O Estado de S. Paulo
Lula perdeu uma oportunidade de dar
conforto emocional aos gaúchos. Presença do chefe de Estado nas crises é
crucial para transmitir esperança e estabilidade. Mas ainda há tempo
É lamentável que o presidente Lula da Silva
ainda não tenha se dignado a visitar os gaúchos para lhes prestar solidariedade
pessoalmente. Há uma semana, um ciclone extratropical devastou quase uma
centena de municípios do interior do Rio Grande do Sul, levando à morte dezenas
de pessoas e deixando milhares de desalojados e desabrigados. A bem da verdade,
o governo federal se mobilizou para oferecer ajuda material ao Estado, mas isso
não basta. Como presidente em exercício, Geraldo Alckmin viajou ao local. Mas
isso tampouco é suficiente – afinal, o vice não é o presidente da República.
O que causa espanto é que Lula entende o
valor desse amparo pessoal, e ainda assim não achou que era o caso de alterar
sua agenda. Quando uma horda de bolsonaristas tomou Brasília de assalto no 8 de
Janeiro, o presidente estava em Araraquara, no interior paulista, reunido com
autoridades locais para avaliar os danos provocados pelas chuvas e confortar a
população. Um mês depois, Lula viajou às cidades de São Vicente e Ubatuba, onde
mais de 30 pessoas morreram em decorrência das fortes chuvas de verão. Sua
presença no litoral norte de São Paulo ao lado do governador Tarcísio de
Freitas, um adversário político, transmitiu à Nação, num momento de dor, a
ideia de que há laços mais fortes entre os brasileiros do que divergências
ideológicas seriam capazes de romper.
A presença física do chefe de Estado nos
momentos de luto ou calamidade pública é fundamental para dar conforto
emocional aos cidadãos afligidos. A dimensão simbólica da liderança
presidencial é muito mais importante do que seu aspecto burocrático. Um
estadista é visto pela sociedade como um farol de esperança e estabilidade nos
momentos mais dramáticos de uma nação. A história é pródiga em exemplos de
situações em que a mera aparição do líder nacional em cenários devastados –
seja por guerras, tragédias naturais ou emergências sanitárias – foi a chave
para revigorar espíritos e orientar os esforços de superação.
Se, do ponto de vista humanitário, a
distância entre Lula e os gaúchos pode ser considerada um desastre dentro de
outro, do ponto de vista político é um deslize que permitiu que parlamentares
como o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ)
– cujo próprio pai se entregou ao dolce far niente enquanto milhares de
brasileiros agonizavam vítimas do coronavírus – tripudiassem da “falta de
empatia” do presidente da República, para delírio da claque bolsonarista.
Decerto Lula poderia ter passado sem essa.
Por terríveis que sejam, situações de luto
ou calamidade pública são propícias para o reforço dos laços entre os
brasileiros. A presença do líder máximo da Nação oferece conforto, orientação e
esperança aos cidadãos. São percepções cruciais para gerar confiança na
capacidade do governo de gerenciar a crise e fornecer os recursos necessários,
não só financeiros, para superá-la. A figura do chefe de Estado ainda tem o
condão de reforçar a ideia de unidade nacional, fator decisivo para a
formulação de respostas coordenadas a qualquer tipo de crise, tanto por entes
federativos como por organizações da sociedade civil.
Ademais, Lula perdeu uma oportunidade de
demonstrar solidariedade e empatia, reafirmando que a Nação está e estará unida
em face das adversidades, presentes ou vindouras. Teria ajudado, assim, a
fortalecer os laços entre os cidadãos, promovendo um senso de comunidade e
pertencimento. Ainda há tempo.
Lula foi eleito, convém lembrar, para unir
o País. Como candidato à Presidência, alardeou essa intenção aos quatro ventos.
Como chefe de Estado, adotou “União e Reconstrução” como slogan de seu terceiro
mandato. Esperase, portanto, que Lula vá além de platitudes e, por meio de
palavras e gestos inequívocos, seja capaz de inspirar os brasileiros a olhar
para seus concidadãos com o espírito desarmado e procurar enxergar elementos de
aproximação, em que pesem as divergências próprias de qualquer sociedade livre.
Para infortúnio do País, nos últimos anos houve demasiado esforço na direção
diametralmente oposta.
Pau que nasce torto
O Estado de S. Paulo
Discussões sobre a regulamentação das
apostas esportivas confirmam o velho dito popular
O ministro das Relações Institucionais,
Alexandre Padilha, anunciou nesta semana que tanto o Ministério da Fazenda
quanto o Ministério do Esporte terão estruturas paralelas para gerir as apostas
de quota fixa, popularmente conhecidas de apostas esportivas. À Fazenda, caberá
tratar da arrecadação, registro, outorga e regulação da atividade. O Ministério
do Esporte, por sua vez, deve “acompanhar” o tema, algo que nem mesmo Padilha
soube explicar o que significa.
Não é preciso refletir muito, no entanto,
para interpretar a enigmática frase do ministro. Foi somente depois da promessa
de “turbinar” o Ministério do Esporte – leia-se ampliar a verba à disposição da
pasta – que o deputado André Fufuca (PP-MA) aceitou ficar com o cargo, coroando
a entrada do Centrão na base aliada. As apostas esportivas devem gerar uma
arrecadação de R$ 1,6 bilhão no ano que vem, recursos que ainda não existem,
mas que já são alvo de uma disputa ferrenha entre os órgãos do governo.
Originalmente, o Executivo pretendia
destinar 1% da receita líquida das bets ao Ministério do Esporte, descontados
os prêmios pagos aos jogadores. Na medida provisória (MP) enviada ao Congresso,
editada no âmbito da enfadonha novela da reforma ministerial, o porcentual
ficou em 3%. Fufuca, no entanto, trabalha para elevar a fatia da pasta no texto
que irá a votação – o que deve ser parte do conceito de “acompanhar” o assunto.
O tema das apostas esportivas confirma o
velho ditado popular segundo o qual pau que nasce torto morre torto. O primeiro
erro foi cometido em 2018, quando uma medida provisória publicada com a
intenção de direcionar recursos oriundos de loterias para o Fundo Nacional de
Segurança Pública recebeu, sem qualquer debate prévio, um capítulo inteiro
sobre as apostas de quota fixa, dando a essa modalidade um questionável status
de serviço público.
Não parece, mas os jogos de azar ainda são
ilegais no País – proibição apoiada por este jornal. Nada disso conteve a
atuação das casas de apostas online, cuja onipresença pode ser vista nos
patrocínios de clubes de futebol e nos anúncios na televisão brasileira.
Preocupado unicamente com a arrecadação que
essa atividade poderia proporcionar aos cofres públicos, o governo Lula
incorreu no mesmo erro de origem ao propor, também por medida provisória, a
regulamentação e a tributação das apostas esportivas. Tanto a lei de 2018
quanto a MP editada em julho endereçavam a autorização para explorar a
atividade ao Ministério da Fazenda – o que, por si só, já configurava uma forma
mal-ajambrada de ignorar a Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei
3.688/1941).
A entrada do Ministério do Esporte nesse debate, concomitantemente ao processo de fritura e substituição da ministra Ana Moser, é apenas a mais recente etapa de uma história que começou muito mal e que, obviamente, não poderia acabar bem. E da forma como o tema vem sendo conduzido, o texto final da medida provisória que será submetido a votação no Congresso não será o final dessa história.
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