quarta-feira, 8 de maio de 2024

Entrevista | Luiz Antonio Santini - Quais são os maiores desafios do SUS hoje

Por Helena Celestino / Valor Econômico

‘Por enquanto, o SUS está vivendo um gargalo, que pode se transformar numa represa’, diz o médico Luiz Antonio Santini, um dos autores de ‘SUS, uma biografia: Lutas e conquistas da sociedade brasileira’

A cena era surpreendente. Em plena Olimpíada, centenas de camas de hospital sendo empurradas palco adentro, com pacientes e médicos dançando em torno delas. Aconteceu em Londres, foi uma das imagens fortes da abertura dos Jogos Olímpicos de 2012. Era uma homenagem dos britânicos ao Sistema Nacional de Saúde, o NHS, um dos orgulhos do país. A coreografia foi tão aplaudida quanto as imagens da rainha Elizabeth e James Bond voando, lado a lado, pelos céus.

O NHS é como o SUS, só que menos abrangente. O Sistema Único de Saúde brasileiro foi inspirado no modelo britânico, mas saiu maior e mais inclusivo, dizem os sanitaristas históricos, aqueles que lideraram a luta para incluir na Constituição de 1988 o acesso universal e igualitário à saúde pública no Brasil.

Foi um marco civilizatório, dizem todos. Recentemente provou sua excelência ao salvar milhões de vidas durante a pandemia exercendo a autonomia em estados e municípios contra o negacionismo do governo Bolsonaro em relação a vacinas e à ciência. Saiu dos três anos da pandemia com prestígio alto, mas com graves sequelas: a Fiocruz estima que a fila para cirurgias tenha 1 milhão de pessoas, o cancelamento dos exames preventivos de câncer de mama e colo de útero chegou a 80% na pandemia e os transplantes renais caíram 30%. O subfinanciamento agravou-se, as tecnologias ficaram defasadas, a população a ser atendida aumentou.

“Por enquanto, o SUS está vivendo um gargalo, que pode se transformar numa represa”, alerta Luiz Antonio Santini, um dos médicos sanitaristas históricos, que lança “SUS, uma biografia: Lutas e conquistas da sociedade brasileira” (ed. Record, 350 págs., R$ 89,90), escrito com Clóvis Bulcão, historiador renomado.

Eles contam como a luta pelo SUS ficou colada aos movimentos contra a ditadura, pela anistia e a redemocratização. Esses temas reuniam pessoas vindas de várias correntes de pensamento, gente ligada às igrejas, à universidade, à saúde, à política. Alguns tornaram-se liderança, como Sergio Arouca, Hésio Cordeiro, José Ramos Temporão e, claro, Luiz Santini.

Vários políticos tiveram atuação destacada no Congresso, muitos médicos elegeram-se como deputados constituintes e levaram a questão para a Comissão da Constituinte. Chamavam-se de Partido Sanitário, para não serem misturados com nenhuma organização política. “O divisor de águas era ser democrata. A questão da saúde tornou-se uma questão de sociedade”, diz Santini.

Vitoriosos, a obrigação do Estado de prover a saúde foi inscrita na Constituição e as conquistas são muitas. Mas hoje o sanitarista diz que está na hora da refundação do SUS.

Trechos de entrevista de Santini, com participação de Bulcão:

Valor: Vocês contam a história da glória e da crise atual do SUS. Veem um movimento da sociedade para recuperá-lo?

Luiz Antonio Santini: Não consegui ainda ver isso acontecer. A ideia do livro foi provocar a discussão da importância do SUS, mas também da sua incompletude, do que está feito e do que falta fazer. A construção do SUS é um processo que não termina porque a saúde sempre vai precisar de novos modelos e do engajamento da sociedade. Antes, nos anos 70, o Brasil tinha 90 milhões de habitantes, a maior parte da população era rural, a medicina era artesanal, exercida por médicos com seus estetoscópios e pouco mais. Se voltar ao começo do século, a medicina era quase uma competição com curandeiros ou com as avós da gente e seus remedinhos. A partir da luta pela redemocratização, o Brasil fez uma grande reforma na saúde e começou o processo de criação do SUS. Só que isso é um processo contínuo.

Valor: Quais são as maiores dificuldades?

Santini: A realidade é desafiadora para o nosso sistema. Temos de fazer frente a subfinanciamento, mudanças populacionais, urbanização, mudança de tecnologias, entrada do setor privado forte no sistema - antes era praticamente um setor privado filantrópico, com atenção hospitalar de baixa complexidade.

Valor: O NHS, da Grã-Bretanha, que é parecido com o do Brasil, também sofre com subfinanciamento.

Santini: No subfinanciamento do NHS, eles gastam 9% do PIB, com todos os recursos de origem pública. No nosso, nós gastamos 10% do PIB, sendo que 3% são de dinheiro público, o resto é privado: plano de saúde, remédios, consultas. Os nossos problemas são semelhantes, mas nossas soluções são muito mais difíceis de serem implementadas.

Valor: Apesar do SUS, o acesso reflete a desigualdade de país, não?

Santini: E isso se reflete nos dados que a gente tem, há graves diferenças entre as capitais e o interior das regiões. Por exemplo, o quadro vai ser diferente em Niterói e São Gonçalo ou São João de Meriti. Niterói tem o sexto PIB do país [13º, segundo os dados mais recentes do IBGE] e a discrepância de renda é pequena. O nosso desafio é específico para garantir à população recursos igualitários à saúde, mas também é político e econômico porque reflete essa desigualdade do país.

Valor: A Fiocruz e associações de médicos têm seguro-saúde privado. É uma contradição?

Santini: Os planos de saúde são sonho de consumo e isso complica muito. Nós, da saúde, que propomos o SUS como politica para o país, nos valemos dos seguros-saúde para nossas necessidades específicas, o que nos diferencia do resto das pessoas. Os sindicatos de profissionais da saúde querem planos de saúde e, às vezes, omitem isso na pauta para não pegar mal. Mas cria uma pressão.

Valor: Como fazer o SUS entrar no sonho de consumo das pessoas?

Santini: Isso é um dilema que está colocado, mas se for bem tratado pode melhorar, porque o sistema privado não pode competir com o sistema público, tem de ser complementar. Nos transplantes acontece isso e o resultado é muito bom. Mais de 90% dos transplantes de órgão no Brasil são feitos e pagos pelo SUS. Muitos são feitos nos hospitais privados, no Einstein, no Sírio-Libanês, e o SUS paga. A não ser no transplante de córnea e o de rim entre vivos. Transplante de órgãos, de medula, hemodiálise em grande parte é pago pelo SUS. Há resistências do lado do setor privado, do ponto de vista econômico, e resistência do setor público do ponto de vista ideológico, uma maneira de pensar a abrangência do SUS sem considerar a participação do setor privado. Não é fácil resolver, mas é quase impossível sair da encruzilhada no SUS sem isso.

Valor: Quantas pessoas têm planos de saúde?

Santini: Entre 40 e 45 milhões. Este número varia de acordo com a economia do país. Na pandemia, por exemplo, saiu muita gente dos planos porque não podia mais pagar as mensalidades, e isso significou uma mexida muito forte na economia do sistema. É preciso criar um arranjo comum da saúde pública e a privada, hoje temos um jogo de perde-perde dos dois lados, temos de ter um de ganha-ganha. Talvez seja possível fazer algo semelhante ao que acontece com os transplantes.

Valor: Mas transplante não é necessidade para um número menor de pessoas?

Santini: Não é pequeno, não, o Brasil é o segundo maior transplantador do mundo. Em vários serviços médicos talvez seja possível haver um entendimento semelhante ao dos transplantes. Mecanismos que possam ser auditados e com regras estabelecidas. Nos transplantes, a fila se mexe dependendo dos exames feitos: se é compatível, onde está o órgão e o paciente. Coração não pode ficar mais de duas horas fora do corpo, então o paciente mais próximo é chamado e o transplante pode ser no Sírio ou no hospital que estiver do lado. O registro é único e o pagamento é único.

Valor: Mas como o SUS poderia atender mais rápido as pessoas em caso de câncer, por exemplo?

Santini: Duas coisas são fundamentais, uma organização que teria todos os serviços oferecidos numa única base de dados. E ao mesmo tempo teria toda a necessidade de serviços também nessa base de dados. E faz-se um batimento diário e para cada tipo de câncer você pode fazer o que chamamos de navegação do paciente - cada tipo de câncer tem necessidades temporais diferentes. A espera de um ano para fazer um tratamento de câncer de mama significa praticamente perder a oportunidade de tratar. Existe uma lei no Brasil que diz que, feito o diagnostico de câncer, o paciente tem de começar a ser tratado no máximo em 60 dias. Menos de 40% conseguem isso, 60% começam num prazo maior que esse e pode ir até 180-365 dias, o que é um absurdo.

Valor: A Parceria Público-Privada não poderia resolver isso?

Santini: Pode, mas precisa de determinação política. O desafio que se coloca é, sem abrir mão do que se conquistou, criar um novo modelo que incorpore os recursos disponíveis, inclusive o privado. No livro a gente cita a experiência de São Paulo, onde funciona melhor do que no Rio.

Valor: Como conseguir financiamento maior?

Clóvis Bulcão: A gente teve o Temporão [José Ramos Temporão, ex-ministro da Saúde de Lula] e Paulo Guedes [ex-ministro da Economia de Bolsonaro] fazendo propostas bem parecidas: reduzir o desconto dos contribuintes no Imposto de Renda por gastos de saúde, o que é uma forma de subsídio ao setor privado. Ou pelo menos estabelecer um limite, como é feito em relação aos gastos com educação. Os dois falaram a mesma língua, mas nenhum deles botou em prática.

Santini: É muito difícil mudar uma cultura. A gente tem o “sabe com quem está falando”, vício que torna essas mudanças politicamente muito difíceis. Por enquanto é um gargalo, mas pode se transformar numa represa. Nós temos taxas de morte por câncer muito maiores do que nos países da OCDE, por exemplo. Se uma pessoa espera um ano por tratamento, ela vai ter uma perspectiva de cura muito menor. Isso é uma questão de organização e gestão. Tem algumas decisões politicas importantes a serem tomadas. Os recursos estão disponíveis nessas duas frentes, portanto, o modelo do transplante pode ser aplicado para tratamento de câncer.

Valor: O senhor conta no livro que o SUS foi criado para sanear o sistema, emperrado por indicações políticas. Isso voltou?

Santini: O Rio de Janeiro é o pior caso de interferência política na gestão, talvez porque tenha a maior rede pública. Tem uma rede municipal, outra estadual e tem esses hospitais federais que não formam rede porque são oriundos dos institutos. Isso tudo vem de uma cultura de isolamento, o Rio não conseguiu implantar o SUS como nos outros estados, a influência política na gestão do Rio de Janeiro é maior do que na maioria dos outros estados. Não conheço a situação de cada um, mas não há tanta denúncia, tanto escândalo nos outros estados como no Rio. No tempo do Inamps [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, política pública em vigor antes do SUS], onde eu fui superintendente já na Nova República, isso já existia e durei menos de um ano como superintendente por ter enfrentado isso - a proposta do dr. Waldir Pires, ministro da Saúde, era de redução do déficit e uma das coisas a combater primeiro era a corrupção. E a corrupção não era nos hospitais, que tinham um corpo técnico muito competente, era via contratos com o setor privado ainda muito primitivo, eram operadores ambulatoriais. Mas a corrupção era sim um fator importante porque, se não, o sistema vira clientelista, paroquial, para atender alguém.

Valor: É isso que vem acontecendo na crise que a ministra da Saúde enfrenta?

Santini: Sim, é uma disputa sobre quem manda em cada um dos hospitais. Isso é uma das dificuldades da Nísia [Trindade], de manejar os interesses políticos aqui no Rio de Janeiro. Imagino que ela está buscando assumir o controle, mas minha preocupação é que, se não inserir esses hospitais na rede do estado e do município do Rio, vai ter dificuldades de resolver.

Valor: A saúde ainda sofre os efeitos da administração Bolsonaro?

Santini: A tragédia sanitária nas terras indígenas se agravou muito no governo Bolsonaro. Vem de mais tempo, da ocupação ilegal e do garimpo, mas Bolsonaro acentuou isso dando armas para as pessoas, destruindo a Funai, o ICMBio. A sociedade brasileira deve há muitas décadas a demarcação das terras indígenas. No caso dos yanomamis é evidente a influência do garimpo na contaminação dos rios e na tragédia que está lá.

Valor: E no Ministério da Saúde?

Santini: Também foi destruído, o SUS só não sofreu mais por causa do modelo tripartite - o modelo de gestão estados, municípios e governo federal. Se não fosse isso, teria sido liquidado. O SUS foi sustentado pelos gestores municipais e estaduais, inclusive com compra de vacinas, criação dos hospitais de campanha. Isso é que o fez funcionar. O Bolsonaro queria interromper o repasse para a assistência médica em estados e municípios, mas a Câmara mandou repassar, o STF mandou repassar. Mas isso deixa muitas sequelas: agrava o subfinanciamento, perde uma rotina de compras, compras de equipamentos, produtos, tudo isso é uma interferência na assistência e gestão. Leva tempo para recuperar.

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