quarta-feira, 8 de maio de 2024

Wilson Gomes - O fim da crítica política?

Folha de S. Paulo

O comentarista político é o único a quem não se permite reivindicar sua objetividade

Na crítica, o juízo de gosto jamais deve ser entendido como um juízo de valor. E vice-versa. Isso vale para qualquer atividade dessa natureza, tenha ela como objeto filmes, romances, artes plásticas ou até mesmo política.

Como todo apreciador de uma forma artística ou toda pessoa politicamente engajada, o crítico tem suas preferências e reconhece as obras e os projetos que melhor atendem às suas exigências estéticas ou morais. No entanto, a atividade analítica deve ser completamente diferente da experiência estética.

"Eu não gostei dessa obra" não deve ser confundido com "essa obra não presta". Afinal, há coisas de que pessoalmente não gosto, mas que podem ser sublimes em seu gênero; há soluções estéticas ou políticas que não aprovo, mas cuja genialidade não posso deixar de reconhecer. E é claro que adoro, como diria Machado de Assis, certas deliciosas vulgaridades, porque me falam à alma e à sensibilidade, não por seu elevado padrão estético ou político.

O gosto e as preferências continuam sendo pessoais ou coletivos, mas as razões pelas quais gostamos, os programas executados em uma determinada obra, as soluções encontradas pelo realizador e sua originalidade ou banalidade, os padrões que orientam o que é considerado medíocre ou sublime, tudo isso é discutível. Desde que os parâmetros sejam apresentados e fundamentados, isso constitui a matéria específica da crítica e o que a torna diferente da experiência estética ou da prática política.

Na política, contudo, as coisas seguem em outra direção. Sim, existe a crítica política, assim como existe a crítica de arte ou de gastronomia, embora não usemos esse rótulo no Brasil. Chamamos de análise política quando é acadêmica e de comentário político quando é nos meios de comunicação, mas trata-se exatamente da mesma atividade. O que me impressiona é como é mais facilmente aceito que a crítica artística, por exemplo, é uma atividade intelectual independente e objetiva, enquanto o comentário político profissional é tratado como uma atividade militante.

E quanto mais partidário o leitor, maior a convicção de que quem faz crítica política é um ativista com privilégios de fala, mais firme é a crença de que o juízo de valor sobre assuntos políticos decorre diretamente da inclinação política do comentarista. O comentarista político é o único crítico a quem hoje em dia não se permite reivindicar que se orienta por parâmetros objetivos e justificáveis, ou que deve ser considerado ou contestado com base nos argumentos que sustenta e não na inclinação política pessoal ou da empresa que veicula sua opinião.

Não é razoável imaginar que a primeira-dama não poderia se conceder o luxo de ir ao show de Madonna enquanto um estado brasileiro vive uma tragédia? O parâmetro por trás de um julgamento desses, uma estimativa de efeito do ato sobre a percepção pública, é do mais elementar bom senso, e ainda assim a afirmação será contestada ou reforçada com igual fúria com base em duas presunções.

Uma sobre a posição ideológica do crítico, identificado obviamente como antagonista à primeira-dama; outra sobre a posição ideológica do leitor. Se o leitor considerar o comentarista alinhado à sua própria posição, merecerá elogios pela sensatez; caso contrário, obviamente quem está errado é o crítico, justo destinatário de todo o desprezo por posição tão sórdida e parcial.

De duas coisas não se abre mão nessa percepção: o leitor partidário estará sempre certo e todo comentarista é um partidário camuflado de crítico político.

O repúdio ao analista, então, será calibrado a partir de duas estimativas. Primeiro, do alcance da publicação e seus efeitos. Segundo, da distância cognitiva e moral entre o que o crítico disse e o que o partidário considera certo.

Quanto maior a distância estimada entre os dois, ou seja, quanto mais a crítica for considerada errada, e maior a previsão de efeitos sobre as pessoas, mais o partidário se sentirá compelido a intervir para tentar "medidas corretivas" que minimizem os impactos da crítica. Tudo para evitar que leitores neutros sejam levados ao erro pela parcialidade do comentarista.

A mais comum entre tais medidas é o comentário que rebate a crítica denunciando sua parcialidade e insultando o crítico.

De forma espantosamente autoindulgente, neste caso o insulto não é um ato moralmente inaceitável de violência verbal, mas uma forma enfática de arrancar a máscara do pretenso crítico e mostrá-lo como realmente é: um sórdido militante do mal.

 

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