Saída dos EUA da OMS cria riscos geopolíticos
O Globo
Desestabilização com a perda de verbas da
organização global terá impacto maior em países mais pobres
Entre as decisões tomadas por Donald Trump na
volta à Casa Branca, a saída dos Estados Unidos da
Organização Mundial da Saúde (OMS)
é a que deverá ter mais impacto nas populações mais pobres de países onde a
ação do Estado em prol dos desassistidos é rarefeita. Em seu primeiro governo,
Trump só retirou o país da OMS em 2020, e a medida foi revogada por Joe Biden
logo no início de seu governo, em 2021. Por isso os efeitos negativos sobre a
estrutura e a ação da OMS não foram sentidos. Agora serão.
Os Estados Unidos são, de longe, os maiores financiadores da organização que reúne 194 países. Com o desembolso de cerca de US$ 1 bilhão anualmente, respondem por algo como um quinto do orçamento. A contribuição financeira americana aumentou com a pandemia, tendo chegado a US$ 1,28 bilhão em 2022 e 2023, quase 40% mais que a segunda fonte de recursos, a Alemanha. O temor é que, sem os aportes de Washington, diversas ações fiquem comprometidas, em especial nas regiões menos desenvolvidas. A revista científica Science afirmou em editorial que, com uma OMS enfraquecida, o mundo ficará mais exposto e menos seguro diante de novas doenças ou pandemias. Como princípio, em organizações dessa natureza, cuja missão é agir em benefício de toda a humanidade, é razoável que a maior carga de recursos recaia sobre os países mais ricos.
Um exemplo ilustrativo de ação positiva da
OMS, citado pelo infectologista e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz Julio
Croda, é o surto da febre hemorrágica Marburg, que Ruanda tem conseguido
conter. O mapeamento desses perigos epidemiológicos depende de uma rede mundial
de vigilância, em que o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos
Estados Unidos, ocupa papel essencial. A ciência médica de ponta desenvolvida
nos Estados Unidos também é crítica para a OMS. O distanciamento de seus
organismos federais representa um retrocesso na vigilância sanitária global. E
os próprios americanos dependem da OMS para lidar com ameaças que surgem
noutros países.
É verdade que diversas críticas de Trump à
OMS são pertinentes. A organização demorou a reconhecer a natureza aérea da
transmissão do coronavírus e adotou um papel hesitante diante da
responsabilidade da China logo no início da pandemia. Sua iniciativa para um
programa global de vacinação também se revelou insuficiente diante do
nacionalismo vacinal praticado nos países mais ricos, que tiveram acesso às
primeiras doses fabricadas contra a Covid-19. Por fim, a OMS sofre com as
amarras burocráticas que emperram grande parte dos organismos multilaterais.
A saída dos Estados Unidos abre oportunidade
para que outros países ocupem o espaço aberto no orçamento, de modo que as
contribuições sejam mais equilibradas. Por abrigarem as maiores populações,
China e Índia deveriam contribuir mais. O US$ 1 bilhão que os Estados Unidos
deixarão de financiar anualmente poderia ser reposto pela China ou por outros
países do Brics. Ao mesmo tempo, haveria nessa hipótese resistências em
Washington à perda de poder global que a saída da OMS necessariamente
acarretaria. Os riscos criados pela desestabilização financeira da OMS vão além
da questão da saúde pública e se estendem a disputas geopolíticas.
Febre de patinetes elétricas exige que
autoridades criem normas de convívio
O Globo
Multiplicação de acidentes com ferimentos e
até mortes vem sendo tratada no mundo como ‘epidemia’
Depois do arrefecimento da primeira onda
alguns anos atrás, as metrópoles brasileiras voltaram a ser tomadas pelas
patinetes elétricas, usadas não só como opção de lazer, mas também para
deslocamentos de curta e média distância. Alugadas por meio de aplicativo, como
as bicicletas compartilhadas, com variedade de pontos para retirada e entrega,
as patinetes vêm ganhando adeptos em diferentes faixas etárias (em geral, o uso
é vedado a menores). À medida que crescem as corridas, crescem também os
problemas. As lesões causadas por quedas já vêm sendo tratadas mundialmente
como uma “epidemia”.
No Brasil, as patinetes estão disponíveis em
capitais como São
Paulo, Rio
de Janeiro, Porto Alegre e Florianópolis. De fácil acesso, não poluem e
podem ser úteis para pequenos trajetos em cidades engarrafadas. Mas os usuários
precisam estar atentos aos riscos. Aparentemente inofensivas, elas podem
contribuir para levar mais gente às emergências. A situação se torna mais
desafiadora com a caótica disputa por espaço nas ciclovias entre corredores,
ciclistas, skatistas e usuários de bicicletas elétricas.
Os feridos em quedas de patinetes elétricas
triplicaram nos Estados Unidos desde 2019, segundo estudo publicado na revista
médica Injury Prevention, liderado pelo epidemiologista Edwin Akomaning, da
Universidade Estadual de Dakota do Norte. O levantamento identificou 3.700
vítimas num período de quatro anos, considerando apenas os prontuários que
citavam explicitamente esses veículos. As rodas menores, na comparação com as
bicicletas, provavelmente contribuem para maior risco de desequilíbrio, levando
a quedas e lesões, conclui o estudo.
Lesões nas mãos e nos braços são as mais
comuns em acidentes com patinetes e representam quase 32% dos casos analisados
noutro trabalho, publicado na revista médica The American Surgeon por
pesquisadores do Hospital Niguarda, de Milão. Em seguida aparecem os ferimentos
na cabeça (19,5%). A grande maioria dos acidentados (80%) sofreu quedas
espontâneas, 19% tinham consumido álcool, e apenas 3,9% estavam com capacetes,
cujo uso é recomendado.
As plataformas que operam no Brasil alegam
que os acidentes são mínimos em relação à quantidade de corridas. Mas podem ser
sérios, mesmo em baixa velocidade, uma vez que o usuário em geral anda sem
proteção. No último ano, há notícia de pelo menos um acidente com morte em
Porto Alegre — o usuário atravessava a rua com a patinete quando colidiu com
uma moto.
É legítimo que cidadãos possam alugar
patinetes para se deslocar ou se divertir, mas é fundamental que o poder
público crie regras sensatas de convivência. São necessárias campanhas
educativas e a produção de estudos e estatísticas sobre acidentes, de modo a
orientar políticas públicas. As autoridades devem ainda incentivar o uso de
capacetes e reforçar a fiscalização, de modo a impedir que menores usem o
serviço. Seria péssimo se a novidade criasse mais problemas do que resolve.
Pretextos que Trump pode usar para atingir o
Brasil
Valor Econômico
Diplomacia brasileira caminha sob gelo fino e
o presidente Lula não pretende dar pretextos a conflitos com Trump, mas pode
não ser o suficiente diante de um presidente provocador e voluntarioso
O menu de ações que o presidente dos Estados
Unidos, Donald Trump, já apresentou - e ele está bastante incompleto - é tão
abrangente que nenhum país pode se sentir tranquilo de que não terá
complicações já ou mais à frente. Afinal, é raro que o líder da maior economia
do mundo ameace elevar tarifas de importação de todo o mundo ou retaliar quem
se atreva a taxar multinacionais americanas. O Brasil não deveria estar na
primeira linha dos alvos de Trump, tanto porque os EUA obtêm no país um dos
poucos superávits comerciais ao redor do mundo, como porque esse comércio é,
para Washington, pouco relevante diante dos US$ 2,8 trilhões de compras totais
feitas no exterior em 2024. Mas poderá ser objeto de represálias assim mesmo
por ações passadas que simplesmente não agradam a Trump, que tem na
volubilidade uma de suas marcas registradas.
À medida que o presidente americano expõe sua
“revolução do bom senso”, para o desespero dos outros países, fica claro que
nenhum deles está a salvo do arbítrio da Casa Branca. Trump, antes da posse,
implicou com as tarifas brasileiras, que seriam muito altas, e insinuou que
poderia revidar. Fez cara feia para as intenções do Brics, que o Brasil passou
a presidir, de comerciar cada vez mais com moedas próprias e se livrar aos
poucos da dependência do dólar - e prometeu taxá-los. Já no poder, retirou-se do
pacto por imposto mínimo (15%) sobre as multinacionais, sacramentado por perto
de 140 países e pela OCDE, para evitar que fizessem arbitragem tributária e
pagassem o mínimo necessário, em geral em paraísos fiscais. O Brasil também
está nesse grupo e começa este ano a cobrar o tributo.
O Brasil sediará a COP30 e Trump decidiu
novamente abandonar o Acordo de Paris, além de emitir uma torrente de
instruções para que as proteções ambientais que limitam a exploração de
petróleo sejam extintas. A atitude do governo dos EUA diante da COP pode variar
do desprezo olímpico, algo pouco do feitio de Trump, ao boicote explícito.
Seja qual for a forma, um estrago enorme,
sobre o qual a COP de Belém não tem influência, diz respeito ao financiamento
climático essencial para prevenção, mitigação e adaptação ao aquecimento
global. As COPs e suas variantes, como a da biodiversidade e a dos oceanos,
exigiram que os países desenvolvidos destinem mais de US$ 1 trilhão para esses
fins. A CO29 forjou um acordo que elevaria a contribuição dos países ricos a
US$ 300 bilhões. Se já não havia muita chance de os países ricos atenderem
totalmente às demandas, isso agora se torna quase impossível diante da recusa
de Trump em colocar um centavo nessas causas.
Imigração está, ao lado das tarifas, entre as
obsessões do novo presidente. Ele já chegou a aventar bloqueio de entrada nos
EUA e outras medidas restritivas aos países poucos ativos na vigilância da
imigração ilegal. Há um grande contingente de brasileiros nessa situação em
território americano e esse é mais um tema que pode causar dores de cabeça ao
Itamaraty.
A aliança de Trump com as big techs do Vale
do Silício carrega mais potencial de conflito. Na quinta, falando para a
plateia de Davos, Trump considerou uma “forma de taxação” as multas aplicadas
pela União Europeia a elas por quebrarem as regras da concorrência. “Temos
grandes reclamações contra a UE”, afirmou, querendo ditar regras até mesmo
sobre o que devem ou não fazer as instituições nacionais de defesa da
competição.
O Brasil, assim como outros países, tem com
as big techs contenciosos a serem resolvidos, como o da disseminação de fake
news. Um caso notório envolve o X de Elon Musk, hoje propagandista das causas
da extrema direita pelo planeta. Há simpatia de Trump e Musk por Jair Bolsonaro
e este é mais um dos temas divisivos que podem esfriar as relações entre os
dois países.
Os efeitos econômicos das ameaças tarifárias
são mais imediatos. Por ser uma economia mais fechada, e com poucos setores
competitivos, impostos sobre produtos brasileiros nos EUA, que importam do
Brasil boa fatia de manufaturados, podem causar algum estrago na indústria
nacional. De qualquer forma, o país exportou apenas 2,23% do PIB para os EUA em
2024, situação distinta da do México e Canadá, que vendem para o mercado
americano o equivalente a 25% de seus PIBs e podem entrar em recessão se Trump
os taxar em 25%.
Há efeitos indiretos que serão nocivos para o
mundo e especialmente agora para o Brasil, cujas contas fiscais não estão em
ordem e que assistiu à megadesvalorização do dólar. Com exceção da
desregulamentação, todas as demais prioridades econômicas de Trump são
inflacionárias - alguns dizem estagflacionárias, porque elevam a inflação e
reduzem o crescimento -, a começar pelas tarifas e pela redução da carga
tributária em um país com déficits fiscais grandes e crescentes. O Fed tende a
reduzir pouco, ou até mesmo a não reduzir os juros o que deve valorizar o
dólar. As medidas têm o poder de deprimir o comércio internacional e reduzir o
fôlego já cadente da economia chinesa, com mais adversidades para o Brasil.
A diplomacia brasileira caminha sob gelo fino
e o presidente Lula não pretende dar pretextos a conflitos com Trump. Porém
pode não ser o suficiente diante de um presidente provocador e voluntarioso.
Déficit do Tesouro é maior do que sugerem
balanços oficiais
Folha de S. Paulo
Ao manipular gastos e receitas, governo Lula
melhora Orçamento; sem ajuste, país corre risco de cair em crise econômica
Manobras orçamentárias —para inflar receitas,
mascarar despesas públicas e driblar limites legais— começaram a ser utilizadas
em grande escala no final do segundo governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), tornaram-se
prática corrente da também petista Dilma
Rousseff e voltaram com toda força na ofensiva frustrada de Jair
Bolsonaro (PL)
pela reeleição.
Como o acúmulo histórico desses expedientes
distorce resultados e pode levar a comparações indevidas, estudiosos passaram a
fazer análises mais sofisticadas dos balanços do Tesouro Nacional, expurgando
não só os efeitos da contabilidade criativa como os de eventos extraordinários,
caso da pandemia. Tais cálculos se mostram novamente úteis neste terceiro
mandato de Lula.
A administração petista tem propagado que
conseguiu reduzir o déficit primário (excluindo gastos com juros) a 0,1%
do PIB no
ano passado, algo como R$ 11 bilhões, o que parece um tremendo progresso ante
os 2,4% de 2023.
Já estão excluídos dessa conta cerca de R$ 30
bilhões em despesas classificadas como extraordinárias para o enfrentamento de
tragédias climáticas. Há mais a considerar, entretanto.
Como
mostrou na Folha o colunista Marcos Mendes, o rombo subiria a
0,9% se contabilizados, além dos dispêndios emergenciais, desembolsos relativos
a 2024 antecipados em 2023 —quando não estavam em vigor as atuais regras
fiscais— e receitas adiadas de um ano para o outro. Em outras palavras, o
governo piorou o resultado de 2023 para obter melhora mais acentuada em 2024.
Segundo estimativas da Instituição Fiscal
Independente (IFI), ligada ao Senado, que
descontam a influência de fatores atípicos, as despesas do governo cresceram
4,3% acima da inflação no
ano passado, depois de uma alta de descomunais 11% no retrasado.
Outro colunista deste jornal, Bráulio
Borges, chamou
a atenção para estudo do próprio Tesouro Nacional acerca do chamado
resultado fiscal estrutural, que expurga fatores temporários e cíclicos para
aferir a real evolução da política orçamentária.
Por essa metodologia, o superávit de 0,55% do
PIB oficialmente apurado no último ano Bolsonaro —com a ajuda da alta do petróleo e
de um calote nos precatórios— dá lugar a um déficit de 0,8% do produto
potencial.
Ainda que tal cálculo possa sustentar o
discurso político da herança desfavorável recebida, é inescapável que os
números pioraram dramaticamente sob Lula, com déficit de 2% no primeiro ano de
governo e de 1,16% nos três primeiros trimestres de 2024.
O que se vê com clareza, portanto, é que a gestão petista foi iniciada com aumento inaudito do gasto público, que hoje se reflete em alta da inflação e dos juros. Obter uma melhora na comparação com a calamidade de 2023 significa pouco na busca pelo reequilíbrio orçamentário. Sem ajustes bem mais profundos e rápidos, o governo levará o país a uma crise econômica.
Colômbia revive sangrento conflito entre
guerrilhas
Folha de S. Paulo
Disputa do narcotráfico na fronteira com a
Venezuela leva Petro a atuar por decretos e negociar com ditadura de Maduro
Passados oito anos do acordo de paz com as
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), Bogotá vê-se novamente
diante de uma
crise humanitária deflagrada pelo conflito entre guerrilhas que, há
muito, arriaram suas bandeiras ideológicas e se conflagram pelo comando do
narcotráfico.
Desde o último dia 16, cerca de 40 mil
moradores da região de Catatumbo, no norte do país, abandonaram suas casas
diante dos riscos do fogo cruzado e do aliciamento forçado de jovens. A guerra
entre o Exército de Libertação Nacional (ELN) e a Frente 33, dissidência das
Farc que não depôs armas em 2016, já custa mais de 80 vidas.
A violência põe por terra os esforços do
governo esquerdista de Gustavo Petro de alcançar
a "paz total", sua promessa ao tomar posse em 2022. A retomada da
negociação com a ELN, comprometida desde agosto passado, tornou-se uma
incógnita.
Fica evidente a ausência do Estado em região
altamente sensível, seja pela presença dos grupos armados em disputa pelo
tráfico de drogas, seja pela fronteira com a Venezuela, abrigo tradicional de
guerrilhas remanescentes.
Na sexta (24), Petro instituiu "estado
de comoção interna", que lhe permite adotar medidas por decreto durante 90
dias sem aval do Congresso. As Forças Armadas foram acionadas para garantir
segurança e rotas de fuga de civis.
Também se dispôs ao diálogo com o ditador
Nicolás Maduro. Apesar de não legitimar o regime autoritário da Venezuela,
Petro está ciente da necessidade da guarida aos cerca de 1.800 civis que
buscaram abrigo do outro lado da fronteira.
Bogotá sabe da influência de Maduro sobre as
guerrilhas, que adquiriram caráter binacional há cerca de 20 anos. De Caracas,
busca um meio de apaziguá-las.
Dificilmente, porém, conseguirá o apoio que
precisa para desarmá-las em definitivo —mesmo ao baixar o tom de suas críticas
a Maduro e ao desviar-se de qualquer atribuição do caos local ao regime
venezuelano.
A contenção do maior conflito interno da
Colômbia em oito anos, a retomada de negociações com o ELN e o reforço da
presença das instituições no norte do país são desafios urgentes.
Entre acertos e erros, a Colômbia despendeu esforços para estancar a nefasta estatística de 215 mil mortos em meio século de conflitos. O acordo de 2016 com a principal guerrilha, as Farc, hoje mobilizada como partido político, prova não haver outro caminho para o povo colombiano desfrutar da garantia a seus direitos fundamentais e à prosperidade.
A arte lulista de iludir
O Estado de S. Paulo
Lula avisou a ministros que pode desistir de
disputar a eleição em 2026. É uma artimanha tipicamente lulista: o presidente
não pensa em outra coisa que não seja se manter no poder
Na mesma reunião ministerial em que anunciou,
sem rodeios, que “2026 já começou”, convertendo seu governo num insolente
comitê de campanha, o presidente Lula da Silva também recorreu a uma de suas
cartadas típicas, sobretudo em períodos pré-eleitorais: a arte de iludir, com a
qual invariavelmente sugere sinais opostos a suas reais intenções para obter
dividendos políticos no futuro próximo.
Na parte pública da reunião, Lula tratou de
invocar mais uma vez a “defesa da democracia”, atribuindo a seu governo (ou
melhor, a si próprio) a missão de liderar a resistência nacional contra a
“volta ao neofascismo, ao neonazismo e ao autoritarismo”, segundo suas próprias
palavras. Já no momento fechado do encontro, o presidente fez chegar aos
ministros a ideia de que seu nome poderá não estar nas urnas em 2026. “Deus no
comando”, teria dito, segundo relatos, creditando a incerteza a um conjunto de
variáveis, entre elas a saúde principalmente. Ao cogitar a hipótese de
desistir, Lula teria mencionado ainda recentes episódios que colocaram sua vida
em risco, como o problema técnico na aeronave presidencial e a cirurgia na
cabeça após uma queda no banheiro.
Noves fora as inevitáveis incertezas do
destino, que impedem qualquer ser humano – mesmo aqueles convictos de seus
poderes divinos, como Lula – de ter a mais plena segurança sobre o que fará e
onde estará daqui a quase dois anos, não há dúvida de que o presidente não
pensa em outra coisa senão continuar governando o Brasil e liderando a esquerda
tradicional lulopetista. Nesse ponto não lhe falta convicção: para Lula, não só
governar é estar no palanque, como ele se sente o único que efetivamente pode
salvar o Brasil do “neofascismo” e do “neonazismo”, que é como ele qualifica o
bolsonarismo.
A reação de ministros aliados, espontânea ou
calculada, foi de “preocupação”. Providencialmente, integrantes da cúpula do PT
difundiram a jornalistas as razões para tanto: hoje, segundo petistas, os
principais nomes que podem vir a lhe suceder não teriam condições de
representar o partido na corrida eleitoral. Seria o caso dos ministros Fernando
Haddad, Camilo Santana e Rui Costa. Essa é a costumeira artimanha de lulistas,
possivelmente inspirados no próprio Lula: difunde-se uma dúvida sobre a
disposição do Grande Líder; faz-se chegar à militância o nome dos eventuais
substitutos; conclui-se que nenhum tem condições de conquistar corações e
mentes de eleitores; e, por fim, volta-se ao essencial, isto é, Lula precisa
ser o candidato.
A prestidigitação lulista já ocorreu em
outros tempos, mas rigorosamente nada o impediu até aqui de disputar sete
eleições presidenciais, tornando-se o recordista de candidaturas na história de
nossa república. Ensaiou desistir – apenas ensaiou, sublinhe-se – em 1998,
quando meses antes já parecia certa a sua derrota para um imbatível Fernando
Henrique Cardoso pós-Plano Real, e em 2002, quando impôs ao PT carta branca
para ele e José Dirceu atraírem alianças para além dos satélites tradicionais
da esquerda. Lula não hesitou em ser o candidato nem mesmo quando estava claro
que sua candidatura seria barrada. Foi o caso de 2018, ano em que o lulopetismo
quis ter o seu nome na urna mesmo com Lula preso. Coube a Haddad então cumprir
o papel de boneco de ventríloquo na eleição.
A “vontade de Deus” a que Lula se referiu na
reunião, portanto, parece ter muito mais a ver com seu método de fortalecer o
próprio nome e manter-se como o único farol a iluminar o espectro da esquerda
tradicional liderada pelo PT. É inegável que até aqui o estratagema deu certo
para si mesmo. Resta saber se o demiurgo será bem-sucedido novamente. Há quem
veja no recado uma forma de galvanizar apoios entre partidos, mas lideranças do
Centrão já alertaram publicamente que, ao contrário, isso pode abrir espaço
para defecções numa base já ideologicamente frágil. Pode também ser uma forma
de colocar à prova uma providencial fragilidade dos seus substitutos, o que só
revela o horizonte rarefeito na esquerda – enquanto na direita já existe uma
profusão de nomes dispostos a herdar o espólio de Jair Bolsonaro, à sombra da
liderança de Lula poucos emergem para valer. Assim caminha o lulopetismo.
É hora de desistir de Angra 3
O Estado de S. Paulo
Não se trata de rejeição à fonte de energia
nuclear, mas de uma questão sobre quem pagará a conta de uma decisão equivocada
que vem sendo referendada pelo governo há quatro décadas
O governo está prestes a decidir se vai ou
não retomar as obras de Angra 3. Há mais de 40 anos, a conclusão da usina
nuclear é uma pedra no sapato de diferentes administrações. O problema nunca
foi a fonte de energia em si, mas o custo de um projeto que se tornou cada vez
mais alto ao longo do tempo, ensejando dúvidas sobre até que ponto valeria a
pena gastar ainda mais dinheiro com o empreendimento.
Segundo o BNDES, a tarifa necessária para
garantir a viabilidade econômico-financeira de Angra 3 seria de R$ 653,31 por
megawatt-hora (MWh), considerando tudo o que já foi gasto no projeto e o que
ainda falta para concluí-lo. Também segundo o banco, terminar a usina exigirá
investimentos de R$ 23 bilhões, enquanto abandoná-la custaria R$ 21 bilhões.
Diante de uma diferença tão pequena de
valores, a decisão pareceria fácil, mas os Ministérios da Fazenda e de Minas e
Energia discordam sobre o que deve ser feito. Enquanto a Fazenda teme que a
retomada gere prejuízos à União, o ministro Alexandre Silveira tem uma visão
“intransigente” a favor do término da obra.
Com base nos mesmos números, a estatal
Empresa de Pesquisa Energética (EPE) calculou o quanto a retomada de Angra 3
custaria ao consumidor. De posse do estudo, o Estadão revelou que
seriam até R$ 61,55 bilhões a mais nas contas de luz dos brasileiros ao longo
de 40 anos a partir de 2031.
A relação custo-benefício parece duvidosa. Se
o governo optasse por termoelétricas a gás no lugar de Angra 3, o consumidor
gastaria muito menos – ao todo, R$ 21,09 bilhões. É uma comparação bastante
justa, pois, em ambos os casos, se trata de energia firme e produzida 24 horas
por dia, o que amplia a segurança do sistema elétrico.
Angra 3 já consumiu R$ 12 bilhões em valores
históricos e tem 65% das obras concluídas. Possui, no entanto, uma tecnologia
mais antiga que a atualmente adotada, o que torna sua conclusão especialmente
desafiadora.
Os benefícios da conclusão de Angra 3,
segundo a EPE, seriam indiretos e não mensuráveis. A estatal mencionou a não
emissão de gases de efeito estufa, a geração de empregos de alta qualificação e
o estímulo à indústria nuclear e à segurança do sistema elétrico, dado que a
usina, diferentemente de fontes intermitentes, ficaria acionada o tempo todo.
Abandonar a usina no estágio em que se
encontra, por óbvio, também geraria custos. A diferença é quem pagaria por
eles. Seriam R$ 21 bilhões, mas eles incorreriam, sobretudo, à Eletrobras, que
contratou os empréstimos com o BNDES e a Caixa, e incluem rescisão de
contratos, devolução de benefícios fiscais, desmobilização da obra e custo de
oportunidade sobre o capital investido.
O consumidor, por outro lado, não teria
qualquer prejuízo financeiro. E dado que há alternativas mais baratas, um dos
principais especialistas em energia do País, o ex-diretor da Agência Nacional
de Energia Elétrica (Aneel) Jerson Kelman, defende o abandono da obra. Para
Kelman, diante dos números, se o governo entende que precisa incentivar o setor
nuclear, cabe a ele assumir todo o custo da usina.
“Usinas nucleares não emitem gases de efeito
estufa e geram energia continuamente, ao contrário das fontes eólica e solar.
Se estivesse funcionando, Angra 3 seria útil para o sistema elétrico. Como não
está, cabe perguntar se concluí-la seria a alternativa de mínimo custo para o
consumidor de eletricidade. A resposta é não”, afirmou.
Não se trata de um dilema técnico nem de
preferência ou rejeição a uma fonte de energia, mas de uma questão sobre quem
pagará a conta de uma decisão equivocada que vem sendo referendada há décadas
sem perspectiva real de que a usina efetivamente produza energia um dia.
Tampouco parece ser um acaso que a
Eletrobras, atualmente uma companhia sem controlador definido em bolsa, esteja
disposta a triplicar o número de assentos da União em seu Conselho de
Administração para se livrar do problema que a usina se tornou e repassá-lo
integralmente ao governo. Que o governo tenha a coragem de defender o
consumidor e corrigir esse erro de maneira definitiva.
Agro volta a acelerar em 2025
O Estado de S. Paulo
Na contramão de indústria, comércio e
serviços, agropecuária retoma dinamismo econômico
A safra recorde prevista para este ano tende
a fazer o agronegócio ser em 2025, mais uma vez, o esteio da economia, como
ocorreu em 2023. Na divulgação, neste mês, de seu terceiro prognóstico para o
setor, o IBGE elevou para 322,6 milhões de toneladas a produção de cereais,
leguminosas e oleaginosas, alta de mais de 10% em relação a 2024. Melhora
providencial diante do início da desaceleração econômica que vem sendo
anunciada por indicadores recentes da indústria, comércio e serviços.
Castigado por fatores climáticos em 2024, ano
marcado pelos efeitos dos fenômenos El Niño e La Niña, o PIB do agro teve
recuperação rápida. Recuou por dois trimestres consecutivos, mas no terceiro
trimestre avançou 1,26%, de acordo com cálculo recém-divulgado pelo Centro de
Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP, em parceria com a
Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). A queda em relação a
2023 será menor do que a esperada.
A capacidade de reação do agro conduz, mais
uma vez, à comparação com outros setores da economia que não apresentam
dinamismo semelhante, apesar dos incentivos governamentais. São inúmeros os
exemplos de programas de estímulo que não se traduzem em ganhos para a economia
e que não passam de benesses, como as sucessivas operações de socorro aos
setores automotivo e de aviação, entre outros tantos segmentos industriais.
É evidente que há robustos subsídios à
agricultura e à pecuária – o Plano Safra 2024/25 recebeu R$ 475,56 bilhões em
recursos para financiamentos –, mas o Brasil está entre os países que menos
subsidiam sua produção, de acordo com monitoramento feito pela Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Com subsídios variando entre 1%
e 2% em relação à receita bruta do produtor, está muito distante dos países da
União Europeia, dos Estados Unidos e da China, cujos porcentuais variam entre
12% e 20%.
As empresas do agronegócio, porém, há muito
adotam políticas que as mantêm na vanguarda tecnológica, uma mostra de como
incentivos públicos devem ser revertidos em avanço econômico do País. Afinal, o
objetivo principal de políticas subsidiadas não é – ou não deveria ser –
distribuir recursos para socorrer este ou aquele segmento eventualmente em
apuros, mas sim incentivar produção e produtividade, promover o desenvolvimento
tecnológico e criar competitividade.
Não fosse o ranço explícito do lulopetismo ao
agronegócio, o histórico do setor, que garante o bom desempenho da balança
comercial e vem se firmando na liderança da comercialização de commodities no
mundo, poderia servir de modelo para a elaboração de políticas públicas em
outros segmentos. A agropecuária é a atividade com menor peso no cálculo do PIB
e, no entanto, seu bom desempenho tem sustentado em grande parte o crescimento
econômico. Se o governo Lula da Silva parasse de mirar em resultados imediatos e
planejasse políticas de longo prazo com base nessa experiência, o País
avançaria em inovação e competitividade.
Cerrado: no coração selvagem do Brasil
Correio Braziliense
Estima-se que o Cerrado abrigue
aproximadamente 330 mil espécies e um vasto número de espécies não descritas
Imagine um vasto bioma tão grande quanto o
México, incrustado no coração do Brasil, repleto de vida e segredos. Agora
imagine que, de toda essa imensidão, menos de 10% está protegida — uma área
menor que o estado do Amapá. Esse bioma é habitado por uma população
equivalente à chilena, mas também por uma biodiversidade quatro vezes maior que
a da Inglaterra. Esse é o Cerrado. A savana mais biodiversa do planeta é um
verdadeiro tesouro natural, muitas vezes presente a menos de 5 quilômetros da
sua casa.
Descrever o Cerrado é como tentar capturar a
essência de um mosaico em constante mudança. Não há apenas um tipo de Cerrado.
Ele é formado por um conjunto de paisagens que variam radicalmente. De veredas
alagadas com buritis imponentes, a cerradões densos com árvores altas, até os
campos limpos onde predominam as gramíneas nativas. Por padrão, o Cerrado é
retratado como uma vegetação de árvores baixas e retorcidas, com cascas
espessas e folhas grossas, adaptadas às condições severas da estação seca. O clima
é quente, marcado por duas estações bem distintas: uma chuvosa entre outubro e
março, e uma estação seca, intensa e longa, como a que vivemos no agora.
Definir quantas espécies habitam o Cerrado é
um desafio, mas estima-se que o bioma abrigue aproximadamente 330 mil,
incluindo mais de 12 mil plantas, quase 200 mamíferos e 200 répteis e cerca de
mil aves. Mesmo nas áreas mais visitadas pelas pessoas, a biodiversidade do
Cerrado ainda guarda segredos. Em 2023, uma expedição à Chapada dos Veadeiros
revelou nada menos que 89 espécies desconhecidas pela ciência, o que
exemplifica o tamanho do nosso desconhecimento e o quanto há para ser
desvendado nesse bioma extraordinário.
O Cerrado também é conhecido como o berço das
águas. Abriga nascentes de algumas das mais importantes bacias hidrográficas da
América do Sul, como Tocantins-Araguaia, São Francisco e Prata. Essa riqueza
hídrica não só sustenta a biodiversidade local, mas também desempenha um papel
essencial na dinâmica das águas do Brasil.
Estimativas confiáveis sugerem que o Cerrado
ainda abriga um vasto número de espécies não descritas, especialmente em grupos
como plantas, insetos, anfíbios e micro-organismos. Algumas investigações
indicam que até 30% das espécies do bioma podem não ter sido formalmente
catalogadas pela ciência. A flora do Cerrado, por exemplo, continua revelando
um número expressivo de espécies novas a cada ano, e os peixes anuais são outro
grupo com descobertas recentes, e já ameaçados de extinção.
Entre os principais vazios de amostragem da
biota do Cerrado, destacam-se as regiões de difícil acesso, como áreas
montanhosas e cavernas, as zonas de transição ecológica, onde o Cerrado faz
fronteira com outros biomas, como a Amazônia e o Pantanal, além dos ambientes
aquáticos, como veredas e nascentes de rios e riachos. Esses vazios dificultam
o pleno entendimento da biodiversidade do Cerrado, mas também oferecem
promissoras oportunidades para novas descobertas científicas. É preocupante
perceber que algumas regiões ainda pouco conhecidas do Cerrado, como no
Maranhão, são também áreas por onde se agrava o desmatamento.
Assim como o planeta enfrenta a crise
climática, marcada pelo aquecimento global e eventos extremos, nós, cientistas,
também lidamos com uma crise igualmente alarmante: a perda da biodiversidade. A
destruição de habitats naturais, impulsionada pela expansão agrícola ou por
queimadas, a introdução de espécies exóticas invasoras, como a braquiária, e a
exploração predatória pelo homem, como a colheita indiscriminada de
sempre-vivas, estão entre os fatores que mais ameaçam a diversidade
biológica.
Além disso, poluição ambiental, agravada pelo
escoamento de fertilizantes e agrotóxicos para rios e lagos, e o avanço da
urbanização sobre áreas naturais, como observa-se no Park Way e no Mangueiral,
no Distrito Federal, aceleram esse processo de degradação. O impacto mais
visível é a redução de espécies icônicas e ameaçadas, como o tamanduá-bandeira,
o mutum-de-penacho, a pererequinha Bokermannohyla sazimai ou a palmeira-jataí
(Butia purpurascens).
Estamos perdendo espécies preciosas a um
ritmo alarmante, muitas delas antes mesmo de serem completamente conhecidas
pela ciência.
A crise da biodiversidade não é uma ameaça
distante. Ela está acontecendo agora, silenciosamente, com consequências graves
para os sistemas naturais e para o futuro da vida no planeta. Isso inclui a
vida humana.
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