segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Saída dos EUA da OMS cria riscos geopolíticos

O Globo

Desestabilização com a perda de verbas da organização global terá impacto maior em países mais pobres

Entre as decisões tomadas por Donald Trump na volta à Casa Branca, a saída dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS) é a que deverá ter mais impacto nas populações mais pobres de países onde a ação do Estado em prol dos desassistidos é rarefeita. Em seu primeiro governo, Trump só retirou o país da OMS em 2020, e a medida foi revogada por Joe Biden logo no início de seu governo, em 2021. Por isso os efeitos negativos sobre a estrutura e a ação da OMS não foram sentidos. Agora serão.

Os Estados Unidos são, de longe, os maiores financiadores da organização que reúne 194 países. Com o desembolso de cerca de US$ 1 bilhão anualmente, respondem por algo como um quinto do orçamento. A contribuição financeira americana aumentou com a pandemia, tendo chegado a US$ 1,28 bilhão em 2022 e 2023, quase 40% mais que a segunda fonte de recursos, a Alemanha. O temor é que, sem os aportes de Washington, diversas ações fiquem comprometidas, em especial nas regiões menos desenvolvidas. A revista científica Science afirmou em editorial que, com uma OMS enfraquecida, o mundo ficará mais exposto e menos seguro diante de novas doenças ou pandemias. Como princípio, em organizações dessa natureza, cuja missão é agir em benefício de toda a humanidade, é razoável que a maior carga de recursos recaia sobre os países mais ricos.

Um exemplo ilustrativo de ação positiva da OMS, citado pelo infectologista e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz Julio Croda, é o surto da febre hemorrágica Marburg, que Ruanda tem conseguido conter. O mapeamento desses perigos epidemiológicos depende de uma rede mundial de vigilância, em que o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, ocupa papel essencial. A ciência médica de ponta desenvolvida nos Estados Unidos também é crítica para a OMS. O distanciamento de seus organismos federais representa um retrocesso na vigilância sanitária global. E os próprios americanos dependem da OMS para lidar com ameaças que surgem noutros países.

É verdade que diversas críticas de Trump à OMS são pertinentes. A organização demorou a reconhecer a natureza aérea da transmissão do coronavírus e adotou um papel hesitante diante da responsabilidade da China logo no início da pandemia. Sua iniciativa para um programa global de vacinação também se revelou insuficiente diante do nacionalismo vacinal praticado nos países mais ricos, que tiveram acesso às primeiras doses fabricadas contra a Covid-19. Por fim, a OMS sofre com as amarras burocráticas que emperram grande parte dos organismos multilaterais.

A saída dos Estados Unidos abre oportunidade para que outros países ocupem o espaço aberto no orçamento, de modo que as contribuições sejam mais equilibradas. Por abrigarem as maiores populações, China e Índia deveriam contribuir mais. O US$ 1 bilhão que os Estados Unidos deixarão de financiar anualmente poderia ser reposto pela China ou por outros países do Brics. Ao mesmo tempo, haveria nessa hipótese resistências em Washington à perda de poder global que a saída da OMS necessariamente acarretaria. Os riscos criados pela desestabilização financeira da OMS vão além da questão da saúde pública e se estendem a disputas geopolíticas.

Febre de patinetes elétricas exige que autoridades criem normas de convívio

O Globo

Multiplicação de acidentes com ferimentos e até mortes vem sendo tratada no mundo como ‘epidemia

Depois do arrefecimento da primeira onda alguns anos atrás, as metrópoles brasileiras voltaram a ser tomadas pelas patinetes elétricas, usadas não só como opção de lazer, mas também para deslocamentos de curta e média distância. Alugadas por meio de aplicativo, como as bicicletas compartilhadas, com variedade de pontos para retirada e entrega, as patinetes vêm ganhando adeptos em diferentes faixas etárias (em geral, o uso é vedado a menores). À medida que crescem as corridas, crescem também os problemas. As lesões causadas por quedas já vêm sendo tratadas mundialmente como uma “epidemia”.

No Brasil, as patinetes estão disponíveis em capitais como São PauloRio de Janeiro, Porto Alegre e Florianópolis. De fácil acesso, não poluem e podem ser úteis para pequenos trajetos em cidades engarrafadas. Mas os usuários precisam estar atentos aos riscos. Aparentemente inofensivas, elas podem contribuir para levar mais gente às emergências. A situação se torna mais desafiadora com a caótica disputa por espaço nas ciclovias entre corredores, ciclistas, skatistas e usuários de bicicletas elétricas.

Os feridos em quedas de patinetes elétricas triplicaram nos Estados Unidos desde 2019, segundo estudo publicado na revista médica Injury Prevention, liderado pelo epidemiologista Edwin Akomaning, da Universidade Estadual de Dakota do Norte. O levantamento identificou 3.700 vítimas num período de quatro anos, considerando apenas os prontuários que citavam explicitamente esses veículos. As rodas menores, na comparação com as bicicletas, provavelmente contribuem para maior risco de desequilíbrio, levando a quedas e lesões, conclui o estudo.

Lesões nas mãos e nos braços são as mais comuns em acidentes com patinetes e representam quase 32% dos casos analisados noutro trabalho, publicado na revista médica The American Surgeon por pesquisadores do Hospital Niguarda, de Milão. Em seguida aparecem os ferimentos na cabeça (19,5%). A grande maioria dos acidentados (80%) sofreu quedas espontâneas, 19% tinham consumido álcool, e apenas 3,9% estavam com capacetes, cujo uso é recomendado.

As plataformas que operam no Brasil alegam que os acidentes são mínimos em relação à quantidade de corridas. Mas podem ser sérios, mesmo em baixa velocidade, uma vez que o usuário em geral anda sem proteção. No último ano, há notícia de pelo menos um acidente com morte em Porto Alegre — o usuário atravessava a rua com a patinete quando colidiu com uma moto.

É legítimo que cidadãos possam alugar patinetes para se deslocar ou se divertir, mas é fundamental que o poder público crie regras sensatas de convivência. São necessárias campanhas educativas e a produção de estudos e estatísticas sobre acidentes, de modo a orientar políticas públicas. As autoridades devem ainda incentivar o uso de capacetes e reforçar a fiscalização, de modo a impedir que menores usem o serviço. Seria péssimo se a novidade criasse mais problemas do que resolve.

Pretextos que Trump pode usar para atingir o Brasil

Valor Econômico

Diplomacia brasileira caminha sob gelo fino e o presidente Lula não pretende dar pretextos a conflitos com Trump, mas pode não ser o suficiente diante de um presidente provocador e voluntarioso

O menu de ações que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, já apresentou - e ele está bastante incompleto - é tão abrangente que nenhum país pode se sentir tranquilo de que não terá complicações já ou mais à frente. Afinal, é raro que o líder da maior economia do mundo ameace elevar tarifas de importação de todo o mundo ou retaliar quem se atreva a taxar multinacionais americanas. O Brasil não deveria estar na primeira linha dos alvos de Trump, tanto porque os EUA obtêm no país um dos poucos superávits comerciais ao redor do mundo, como porque esse comércio é, para Washington, pouco relevante diante dos US$ 2,8 trilhões de compras totais feitas no exterior em 2024. Mas poderá ser objeto de represálias assim mesmo por ações passadas que simplesmente não agradam a Trump, que tem na volubilidade uma de suas marcas registradas.

À medida que o presidente americano expõe sua “revolução do bom senso”, para o desespero dos outros países, fica claro que nenhum deles está a salvo do arbítrio da Casa Branca. Trump, antes da posse, implicou com as tarifas brasileiras, que seriam muito altas, e insinuou que poderia revidar. Fez cara feia para as intenções do Brics, que o Brasil passou a presidir, de comerciar cada vez mais com moedas próprias e se livrar aos poucos da dependência do dólar - e prometeu taxá-los. Já no poder, retirou-se do pacto por imposto mínimo (15%) sobre as multinacionais, sacramentado por perto de 140 países e pela OCDE, para evitar que fizessem arbitragem tributária e pagassem o mínimo necessário, em geral em paraísos fiscais. O Brasil também está nesse grupo e começa este ano a cobrar o tributo.

O Brasil sediará a COP30 e Trump decidiu novamente abandonar o Acordo de Paris, além de emitir uma torrente de instruções para que as proteções ambientais que limitam a exploração de petróleo sejam extintas. A atitude do governo dos EUA diante da COP pode variar do desprezo olímpico, algo pouco do feitio de Trump, ao boicote explícito.

Seja qual for a forma, um estrago enorme, sobre o qual a COP de Belém não tem influência, diz respeito ao financiamento climático essencial para prevenção, mitigação e adaptação ao aquecimento global. As COPs e suas variantes, como a da biodiversidade e a dos oceanos, exigiram que os países desenvolvidos destinem mais de US$ 1 trilhão para esses fins. A CO29 forjou um acordo que elevaria a contribuição dos países ricos a US$ 300 bilhões. Se já não havia muita chance de os países ricos atenderem totalmente às demandas, isso agora se torna quase impossível diante da recusa de Trump em colocar um centavo nessas causas.

Imigração está, ao lado das tarifas, entre as obsessões do novo presidente. Ele já chegou a aventar bloqueio de entrada nos EUA e outras medidas restritivas aos países poucos ativos na vigilância da imigração ilegal. Há um grande contingente de brasileiros nessa situação em território americano e esse é mais um tema que pode causar dores de cabeça ao Itamaraty.

A aliança de Trump com as big techs do Vale do Silício carrega mais potencial de conflito. Na quinta, falando para a plateia de Davos, Trump considerou uma “forma de taxação” as multas aplicadas pela União Europeia a elas por quebrarem as regras da concorrência. “Temos grandes reclamações contra a UE”, afirmou, querendo ditar regras até mesmo sobre o que devem ou não fazer as instituições nacionais de defesa da competição.

O Brasil, assim como outros países, tem com as big techs contenciosos a serem resolvidos, como o da disseminação de fake news. Um caso notório envolve o X de Elon Musk, hoje propagandista das causas da extrema direita pelo planeta. Há simpatia de Trump e Musk por Jair Bolsonaro e este é mais um dos temas divisivos que podem esfriar as relações entre os dois países.

Os efeitos econômicos das ameaças tarifárias são mais imediatos. Por ser uma economia mais fechada, e com poucos setores competitivos, impostos sobre produtos brasileiros nos EUA, que importam do Brasil boa fatia de manufaturados, podem causar algum estrago na indústria nacional. De qualquer forma, o país exportou apenas 2,23% do PIB para os EUA em 2024, situação distinta da do México e Canadá, que vendem para o mercado americano o equivalente a 25% de seus PIBs e podem entrar em recessão se Trump os taxar em 25%.

Há efeitos indiretos que serão nocivos para o mundo e especialmente agora para o Brasil, cujas contas fiscais não estão em ordem e que assistiu à megadesvalorização do dólar. Com exceção da desregulamentação, todas as demais prioridades econômicas de Trump são inflacionárias - alguns dizem estagflacionárias, porque elevam a inflação e reduzem o crescimento -, a começar pelas tarifas e pela redução da carga tributária em um país com déficits fiscais grandes e crescentes. O Fed tende a reduzir pouco, ou até mesmo a não reduzir os juros o que deve valorizar o dólar. As medidas têm o poder de deprimir o comércio internacional e reduzir o fôlego já cadente da economia chinesa, com mais adversidades para o Brasil.

A diplomacia brasileira caminha sob gelo fino e o presidente Lula não pretende dar pretextos a conflitos com Trump. Porém pode não ser o suficiente diante de um presidente provocador e voluntarioso.

Déficit do Tesouro é maior do que sugerem balanços oficiais

Folha de S. Paulo

Ao manipular gastos e receitas, governo Lula melhora Orçamento; sem ajuste, país corre risco de cair em crise econômica

Manobras orçamentárias —para inflar receitas, mascarar despesas públicas e driblar limites legais— começaram a ser utilizadas em grande escala no final do segundo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), tornaram-se prática corrente da também petista Dilma Rousseff e voltaram com toda força na ofensiva frustrada de Jair Bolsonaro (PL) pela reeleição.

Como o acúmulo histórico desses expedientes distorce resultados e pode levar a comparações indevidas, estudiosos passaram a fazer análises mais sofisticadas dos balanços do Tesouro Nacional, expurgando não só os efeitos da contabilidade criativa como os de eventos extraordinários, caso da pandemia. Tais cálculos se mostram novamente úteis neste terceiro mandato de Lula.

A administração petista tem propagado que conseguiu reduzir o déficit primário (excluindo gastos com juros) a 0,1% do PIB no ano passado, algo como R$ 11 bilhões, o que parece um tremendo progresso ante os 2,4% de 2023.

Já estão excluídos dessa conta cerca de R$ 30 bilhões em despesas classificadas como extraordinárias para o enfrentamento de tragédias climáticas. Há mais a considerar, entretanto.

Como mostrou na Folha o colunista Marcos Mendes, o rombo subiria a 0,9% se contabilizados, além dos dispêndios emergenciais, desembolsos relativos a 2024 antecipados em 2023 —quando não estavam em vigor as atuais regras fiscais— e receitas adiadas de um ano para o outro. Em outras palavras, o governo piorou o resultado de 2023 para obter melhora mais acentuada em 2024.

Segundo estimativas da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, que descontam a influência de fatores atípicos, as despesas do governo cresceram 4,3% acima da inflação no ano passado, depois de uma alta de descomunais 11% no retrasado.

Outro colunista deste jornal, Bráulio Borges, chamou a atenção para estudo do próprio Tesouro Nacional acerca do chamado resultado fiscal estrutural, que expurga fatores temporários e cíclicos para aferir a real evolução da política orçamentária.

Por essa metodologia, o superávit de 0,55% do PIB oficialmente apurado no último ano Bolsonaro —com a ajuda da alta do petróleo e de um calote nos precatórios— dá lugar a um déficit de 0,8% do produto potencial.

Ainda que tal cálculo possa sustentar o discurso político da herança desfavorável recebida, é inescapável que os números pioraram dramaticamente sob Lula, com déficit de 2% no primeiro ano de governo e de 1,16% nos três primeiros trimestres de 2024.

O que se vê com clareza, portanto, é que a gestão petista foi iniciada com aumento inaudito do gasto público, que hoje se reflete em alta da inflação e dos juros. Obter uma melhora na comparação com a calamidade de 2023 significa pouco na busca pelo reequilíbrio orçamentário. Sem ajustes bem mais profundos e rápidos, o governo levará o país a uma crise econômica.

Colômbia revive sangrento conflito entre guerrilhas

Folha de S. Paulo

Disputa do narcotráfico na fronteira com a Venezuela leva Petro a atuar por decretos e negociar com ditadura de Maduro

Passados oito anos do acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), Bogotá vê-se novamente diante de uma crise humanitária deflagrada pelo conflito entre guerrilhas que, há muito, arriaram suas bandeiras ideológicas e se conflagram pelo comando do narcotráfico.

Desde o último dia 16, cerca de 40 mil moradores da região de Catatumbo, no norte do país, abandonaram suas casas diante dos riscos do fogo cruzado e do aliciamento forçado de jovens. A guerra entre o Exército de Libertação Nacional (ELN) e a Frente 33, dissidência das Farc que não depôs armas em 2016, já custa mais de 80 vidas.

A violência põe por terra os esforços do governo esquerdista de Gustavo Petro de alcançar a "paz total", sua promessa ao tomar posse em 2022. A retomada da negociação com a ELN, comprometida desde agosto passado, tornou-se uma incógnita.

Fica evidente a ausência do Estado em região altamente sensível, seja pela presença dos grupos armados em disputa pelo tráfico de drogas, seja pela fronteira com a Venezuela, abrigo tradicional de guerrilhas remanescentes.

Na sexta (24), Petro instituiu "estado de comoção interna", que lhe permite adotar medidas por decreto durante 90 dias sem aval do Congresso. As Forças Armadas foram acionadas para garantir segurança e rotas de fuga de civis.

Também se dispôs ao diálogo com o ditador Nicolás Maduro. Apesar de não legitimar o regime autoritário da Venezuela, Petro está ciente da necessidade da guarida aos cerca de 1.800 civis que buscaram abrigo do outro lado da fronteira.

Bogotá sabe da influência de Maduro sobre as guerrilhas, que adquiriram caráter binacional há cerca de 20 anos. De Caracas, busca um meio de apaziguá-las.

Dificilmente, porém, conseguirá o apoio que precisa para desarmá-las em definitivo —mesmo ao baixar o tom de suas críticas a Maduro e ao desviar-se de qualquer atribuição do caos local ao regime venezuelano.

A contenção do maior conflito interno da Colômbia em oito anos, a retomada de negociações com o ELN e o reforço da presença das instituições no norte do país são desafios urgentes.

Entre acertos e erros, a Colômbia despendeu esforços para estancar a nefasta estatística de 215 mil mortos em meio século de conflitos. O acordo de 2016 com a principal guerrilha, as Farc, hoje mobilizada como partido político, prova não haver outro caminho para o povo colombiano desfrutar da garantia a seus direitos fundamentais e à prosperidade.

A arte lulista de iludir

O Estado de S. Paulo

Lula avisou a ministros que pode desistir de disputar a eleição em 2026. É uma artimanha tipicamente lulista: o presidente não pensa em outra coisa que não seja se manter no poder

Na mesma reunião ministerial em que anunciou, sem rodeios, que “2026 já começou”, convertendo seu governo num insolente comitê de campanha, o presidente Lula da Silva também recorreu a uma de suas cartadas típicas, sobretudo em períodos pré-eleitorais: a arte de iludir, com a qual invariavelmente sugere sinais opostos a suas reais intenções para obter dividendos políticos no futuro próximo.

Na parte pública da reunião, Lula tratou de invocar mais uma vez a “defesa da democracia”, atribuindo a seu governo (ou melhor, a si próprio) a missão de liderar a resistência nacional contra a “volta ao neofascismo, ao neonazismo e ao autoritarismo”, segundo suas próprias palavras. Já no momento fechado do encontro, o presidente fez chegar aos ministros a ideia de que seu nome poderá não estar nas urnas em 2026. “Deus no comando”, teria dito, segundo relatos, creditando a incerteza a um conjunto de variáveis, entre elas a saúde principalmente. Ao cogitar a hipótese de desistir, Lula teria mencionado ainda recentes episódios que colocaram sua vida em risco, como o problema técnico na aeronave presidencial e a cirurgia na cabeça após uma queda no banheiro.

Noves fora as inevitáveis incertezas do destino, que impedem qualquer ser humano – mesmo aqueles convictos de seus poderes divinos, como Lula – de ter a mais plena segurança sobre o que fará e onde estará daqui a quase dois anos, não há dúvida de que o presidente não pensa em outra coisa senão continuar governando o Brasil e liderando a esquerda tradicional lulopetista. Nesse ponto não lhe falta convicção: para Lula, não só governar é estar no palanque, como ele se sente o único que efetivamente pode salvar o Brasil do “neofascismo” e do “neonazismo”, que é como ele qualifica o bolsonarismo.

A reação de ministros aliados, espontânea ou calculada, foi de “preocupação”. Providencialmente, integrantes da cúpula do PT difundiram a jornalistas as razões para tanto: hoje, segundo petistas, os principais nomes que podem vir a lhe suceder não teriam condições de representar o partido na corrida eleitoral. Seria o caso dos ministros Fernando Haddad, Camilo Santana e Rui Costa. Essa é a costumeira artimanha de lulistas, possivelmente inspirados no próprio Lula: difunde-se uma dúvida sobre a disposição do Grande Líder; faz-se chegar à militância o nome dos eventuais substitutos; conclui-se que nenhum tem condições de conquistar corações e mentes de eleitores; e, por fim, volta-se ao essencial, isto é, Lula precisa ser o candidato.

A prestidigitação lulista já ocorreu em outros tempos, mas rigorosamente nada o impediu até aqui de disputar sete eleições presidenciais, tornando-se o recordista de candidaturas na história de nossa república. Ensaiou desistir – apenas ensaiou, sublinhe-se – em 1998, quando meses antes já parecia certa a sua derrota para um imbatível Fernando Henrique Cardoso pós-Plano Real, e em 2002, quando impôs ao PT carta branca para ele e José Dirceu atraírem alianças para além dos satélites tradicionais da esquerda. Lula não hesitou em ser o candidato nem mesmo quando estava claro que sua candidatura seria barrada. Foi o caso de 2018, ano em que o lulopetismo quis ter o seu nome na urna mesmo com Lula preso. Coube a Haddad então cumprir o papel de boneco de ventríloquo na eleição.

A “vontade de Deus” a que Lula se referiu na reunião, portanto, parece ter muito mais a ver com seu método de fortalecer o próprio nome e manter-se como o único farol a iluminar o espectro da esquerda tradicional liderada pelo PT. É inegável que até aqui o estratagema deu certo para si mesmo. Resta saber se o demiurgo será bem-sucedido novamente. Há quem veja no recado uma forma de galvanizar apoios entre partidos, mas lideranças do Centrão já alertaram publicamente que, ao contrário, isso pode abrir espaço para defecções numa base já ideologicamente frágil. Pode também ser uma forma de colocar à prova uma providencial fragilidade dos seus substitutos, o que só revela o horizonte rarefeito na esquerda – enquanto na direita já existe uma profusão de nomes dispostos a herdar o espólio de Jair Bolsonaro, à sombra da liderança de Lula poucos emergem para valer. Assim caminha o lulopetismo.

É hora de desistir de Angra 3

O Estado de S. Paulo

Não se trata de rejeição à fonte de energia nuclear, mas de uma questão sobre quem pagará a conta de uma decisão equivocada que vem sendo referendada pelo governo há quatro décadas

O governo está prestes a decidir se vai ou não retomar as obras de Angra 3. Há mais de 40 anos, a conclusão da usina nuclear é uma pedra no sapato de diferentes administrações. O problema nunca foi a fonte de energia em si, mas o custo de um projeto que se tornou cada vez mais alto ao longo do tempo, ensejando dúvidas sobre até que ponto valeria a pena gastar ainda mais dinheiro com o empreendimento.

Segundo o BNDES, a tarifa necessária para garantir a viabilidade econômico-financeira de Angra 3 seria de R$ 653,31 por megawatt-hora (MWh), considerando tudo o que já foi gasto no projeto e o que ainda falta para concluí-lo. Também segundo o banco, terminar a usina exigirá investimentos de R$ 23 bilhões, enquanto abandoná-la custaria R$ 21 bilhões.

Diante de uma diferença tão pequena de valores, a decisão pareceria fácil, mas os Ministérios da Fazenda e de Minas e Energia discordam sobre o que deve ser feito. Enquanto a Fazenda teme que a retomada gere prejuízos à União, o ministro Alexandre Silveira tem uma visão “intransigente” a favor do término da obra.

Com base nos mesmos números, a estatal Empresa de Pesquisa Energética (EPE) calculou o quanto a retomada de Angra 3 custaria ao consumidor. De posse do estudo, o Estadão revelou que seriam até R$ 61,55 bilhões a mais nas contas de luz dos brasileiros ao longo de 40 anos a partir de 2031.

A relação custo-benefício parece duvidosa. Se o governo optasse por termoelétricas a gás no lugar de Angra 3, o consumidor gastaria muito menos – ao todo, R$ 21,09 bilhões. É uma comparação bastante justa, pois, em ambos os casos, se trata de energia firme e produzida 24 horas por dia, o que amplia a segurança do sistema elétrico.

Angra 3 já consumiu R$ 12 bilhões em valores históricos e tem 65% das obras concluídas. Possui, no entanto, uma tecnologia mais antiga que a atualmente adotada, o que torna sua conclusão especialmente desafiadora.

Os benefícios da conclusão de Angra 3, segundo a EPE, seriam indiretos e não mensuráveis. A estatal mencionou a não emissão de gases de efeito estufa, a geração de empregos de alta qualificação e o estímulo à indústria nuclear e à segurança do sistema elétrico, dado que a usina, diferentemente de fontes intermitentes, ficaria acionada o tempo todo.

Abandonar a usina no estágio em que se encontra, por óbvio, também geraria custos. A diferença é quem pagaria por eles. Seriam R$ 21 bilhões, mas eles incorreriam, sobretudo, à Eletrobras, que contratou os empréstimos com o BNDES e a Caixa, e incluem rescisão de contratos, devolução de benefícios fiscais, desmobilização da obra e custo de oportunidade sobre o capital investido.

O consumidor, por outro lado, não teria qualquer prejuízo financeiro. E dado que há alternativas mais baratas, um dos principais especialistas em energia do País, o ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) Jerson Kelman, defende o abandono da obra. Para Kelman, diante dos números, se o governo entende que precisa incentivar o setor nuclear, cabe a ele assumir todo o custo da usina.

“Usinas nucleares não emitem gases de efeito estufa e geram energia continuamente, ao contrário das fontes eólica e solar. Se estivesse funcionando, Angra 3 seria útil para o sistema elétrico. Como não está, cabe perguntar se concluí-la seria a alternativa de mínimo custo para o consumidor de eletricidade. A resposta é não”, afirmou.

Não se trata de um dilema técnico nem de preferência ou rejeição a uma fonte de energia, mas de uma questão sobre quem pagará a conta de uma decisão equivocada que vem sendo referendada há décadas sem perspectiva real de que a usina efetivamente produza energia um dia.

Tampouco parece ser um acaso que a Eletrobras, atualmente uma companhia sem controlador definido em bolsa, esteja disposta a triplicar o número de assentos da União em seu Conselho de Administração para se livrar do problema que a usina se tornou e repassá-lo integralmente ao governo. Que o governo tenha a coragem de defender o consumidor e corrigir esse erro de maneira definitiva.

Agro volta a acelerar em 2025

O Estado de S. Paulo

Na contramão de indústria, comércio e serviços, agropecuária retoma dinamismo econômico

A safra recorde prevista para este ano tende a fazer o agronegócio ser em 2025, mais uma vez, o esteio da economia, como ocorreu em 2023. Na divulgação, neste mês, de seu terceiro prognóstico para o setor, o IBGE elevou para 322,6 milhões de toneladas a produção de cereais, leguminosas e oleaginosas, alta de mais de 10% em relação a 2024. Melhora providencial diante do início da desaceleração econômica que vem sendo anunciada por indicadores recentes da indústria, comércio e serviços.

Castigado por fatores climáticos em 2024, ano marcado pelos efeitos dos fenômenos El Niño e La Niña, o PIB do agro teve recuperação rápida. Recuou por dois trimestres consecutivos, mas no terceiro trimestre avançou 1,26%, de acordo com cálculo recém-divulgado pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP, em parceria com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). A queda em relação a 2023 será menor do que a esperada.

A capacidade de reação do agro conduz, mais uma vez, à comparação com outros setores da economia que não apresentam dinamismo semelhante, apesar dos incentivos governamentais. São inúmeros os exemplos de programas de estímulo que não se traduzem em ganhos para a economia e que não passam de benesses, como as sucessivas operações de socorro aos setores automotivo e de aviação, entre outros tantos segmentos industriais.

É evidente que há robustos subsídios à agricultura e à pecuária – o Plano Safra 2024/25 recebeu R$ 475,56 bilhões em recursos para financiamentos –, mas o Brasil está entre os países que menos subsidiam sua produção, de acordo com monitoramento feito pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Com subsídios variando entre 1% e 2% em relação à receita bruta do produtor, está muito distante dos países da União Europeia, dos Estados Unidos e da China, cujos porcentuais variam entre 12% e 20%.

As empresas do agronegócio, porém, há muito adotam políticas que as mantêm na vanguarda tecnológica, uma mostra de como incentivos públicos devem ser revertidos em avanço econômico do País. Afinal, o objetivo principal de políticas subsidiadas não é – ou não deveria ser – distribuir recursos para socorrer este ou aquele segmento eventualmente em apuros, mas sim incentivar produção e produtividade, promover o desenvolvimento tecnológico e criar competitividade.

Não fosse o ranço explícito do lulopetismo ao agronegócio, o histórico do setor, que garante o bom desempenho da balança comercial e vem se firmando na liderança da comercialização de commodities no mundo, poderia servir de modelo para a elaboração de políticas públicas em outros segmentos. A agropecuária é a atividade com menor peso no cálculo do PIB e, no entanto, seu bom desempenho tem sustentado em grande parte o crescimento econômico. Se o governo Lula da Silva parasse de mirar em resultados imediatos e planejasse políticas de longo prazo com base nessa experiência, o País avançaria em inovação e competitividade.

Cerrado: no coração selvagem do Brasil

Correio Braziliense

Estima-se que o Cerrado abrigue aproximadamente 330 mil espécies e um vasto número de espécies não descritas

Imagine um vasto bioma tão grande quanto o México, incrustado no coração do Brasil, repleto de vida e segredos. Agora imagine que, de toda essa imensidão, menos de 10% está protegida — uma área menor que o estado do Amapá. Esse bioma é habitado por uma população equivalente à chilena, mas também por uma biodiversidade quatro vezes maior que a da Inglaterra. Esse é o Cerrado. A savana mais biodiversa do planeta é um verdadeiro tesouro natural, muitas vezes presente a menos de 5 quilômetros da sua casa.

Descrever o Cerrado é como tentar capturar a essência de um mosaico em constante mudança. Não há apenas um tipo de Cerrado. Ele é formado por um conjunto de paisagens que variam radicalmente. De veredas alagadas com buritis imponentes, a cerradões densos com árvores altas, até os campos limpos onde predominam as gramíneas nativas. Por padrão, o Cerrado é retratado como uma vegetação de árvores baixas e retorcidas, com cascas espessas e folhas grossas, adaptadas às condições severas da estação seca. O clima é quente, marcado por duas estações bem distintas: uma chuvosa entre outubro e março, e uma estação seca, intensa e longa, como a que vivemos no agora.

Definir quantas espécies habitam o Cerrado é um desafio, mas estima-se que o bioma abrigue aproximadamente 330 mil, incluindo mais de 12 mil plantas, quase 200 mamíferos e 200 répteis e cerca de mil aves. Mesmo nas áreas mais visitadas pelas pessoas, a biodiversidade do Cerrado ainda guarda segredos. Em 2023, uma expedição à Chapada dos Veadeiros revelou nada menos que 89 espécies desconhecidas pela ciência, o que exemplifica o tamanho do nosso desconhecimento e o quanto há para ser desvendado nesse bioma extraordinário.

O Cerrado também é conhecido como o berço das águas. Abriga nascentes de algumas das mais importantes bacias hidrográficas da América do Sul, como Tocantins-Araguaia, São Francisco e Prata. Essa riqueza hídrica não só sustenta a biodiversidade local, mas também desempenha um papel essencial na dinâmica das águas do Brasil.

Estimativas confiáveis sugerem que o Cerrado ainda abriga um vasto número de espécies não descritas, especialmente em grupos como plantas, insetos, anfíbios e micro-organismos. Algumas investigações indicam que até 30% das espécies do bioma podem não ter sido formalmente catalogadas pela ciência. A flora do Cerrado, por exemplo, continua revelando um número expressivo de espécies novas a cada ano, e os peixes anuais são outro grupo com descobertas recentes, e já ameaçados de extinção.

Entre os principais vazios de amostragem da biota do Cerrado, destacam-se as regiões de difícil acesso, como áreas montanhosas e cavernas, as zonas de transição ecológica, onde o Cerrado faz fronteira com outros biomas, como a Amazônia e o Pantanal, além dos ambientes aquáticos, como veredas e nascentes de rios e riachos. Esses vazios dificultam o pleno entendimento da biodiversidade do Cerrado, mas também oferecem promissoras oportunidades para novas descobertas científicas. É preocupante perceber que algumas regiões ainda pouco conhecidas do Cerrado, como no Maranhão, são também áreas por onde se agrava o desmatamento.

Assim como o planeta enfrenta a crise climática, marcada pelo aquecimento global e eventos extremos, nós, cientistas, também lidamos com uma crise igualmente alarmante: a perda da biodiversidade. A destruição de habitats naturais, impulsionada pela expansão agrícola ou por queimadas, a introdução de espécies exóticas invasoras, como a braquiária, e a exploração predatória pelo homem, como a colheita indiscriminada de sempre-vivas, estão entre os fatores que mais ameaçam a diversidade biológica. 

Além disso, poluição ambiental, agravada pelo escoamento de fertilizantes e agrotóxicos para rios e lagos, e o avanço da urbanização sobre áreas naturais, como observa-se no Park Way e no Mangueiral, no Distrito Federal, aceleram esse processo de degradação. O impacto mais visível é a redução de espécies icônicas e ameaçadas, como o tamanduá-bandeira, o mutum-de-penacho, a pererequinha Bokermannohyla sazimai ou a palmeira-jataí (Butia purpurascens). 

Estamos perdendo espécies preciosas a um ritmo alarmante, muitas delas antes mesmo de serem completamente conhecidas pela ciência.  

A crise da biodiversidade não é uma ameaça distante. Ela está acontecendo agora, silenciosamente, com consequências graves para os sistemas naturais e para o futuro da vida no planeta. Isso inclui a vida humana.

 

 

 

 

 

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