segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

A complexa arte de resistir – Fernando Gabeira

O Globo

Mesmo marchando com cuidado num mundo tão difícil, evitar o negacionismo não basta. O Congresso atrasa o país

É preciso remoer os fatos, processá-los. Lembro-me de Samuel Beckett: não se passa um dia sem que algo seja acrescido ao nosso saber. Desde que suportemos as dores. Com o apoio de todos os governos, o Acordo de Paris repercutiu pouco na prática. E agora, com a nova saída dos Estados Unidos?

Já estouramos a meta de 1,5°C de aumento na temperatura. Já esgotamos o tempo, é tarde demais. Já extravasamos o espaço; para sustentar o nível de vida americano, precisaremos de cinco planetas Terra.

O drama estará completo se o Brasil cair nas mãos do negacionismo climático. A direita daqui realmente não acredita no aquecimento global. Trump apenas finge, pois está de olho na Groenlândia, que terá outro valor, como terra e como rota.

Aparentemente, e com uma dose de otimismo, podemos dizer que o Brasil ainda é moldado por nós. Mas as coisas aqui não são e nunca foram fáceis. O objetivo estratégico pode até ser comum, mas haja cotoveladas e pontapés no que aparenta ser o mesmo lado da trincheira. 

Apoiar o governo tem vários significados. Um deles é defender tudo o que ele faz, inclusive seus erros. Outro é exigir eficácia, inovação, leitura mais precisa do Brasil moderno. Uma coisa é se contentar com reuniões ministeriais que não são mais do que pajelanças: precisamos, não podemos mais, a partir de agora… Outra coisa é esperar que haja um programa em movimento, saber a quantas anda a transição energética, a política de IA, a reconstrução de uma infraestrutura das pontes que caem ou cairão.

O boato de taxação do Pix foi um bom momento para acordar. Manipulação de adversários, onda de fake news, manobras algorítmicas das big techs? Pouco se falou da vulnerabilidade latente com a desconfiança popular.

Verdade é que a oposição faz um longo trabalho associando a imagem do governo a um voraz cobrador de impostos. Isso não teria eficácia se a taxação se limitasse aos mais poderosos. Mas houve hesitações no caso das importações chinesas, chamadas de “blusinhas” pela imprensa.

Estamos no limiar de uma batalha semelhante. É a que trata de regulamentar a internet. Países que fizeram isso com êxito, como a Escócia, lançaram um ato contra o discurso de ódio para proteger minorias vulneráveis, inclusive pessoas trans. Aqui se fala muito em proteger o governo. A primeira-dama afirmou que o governo e Alexandre de Moraes são parceiros no combate às fake news. Opiniões exaltadas na TV definem como crime as críticas às políticas públicas, numa espécie de transe norte-coreano.

Pelo que sinto na rua, muitos se informam apenas pelo WhatsApp. Nem imaginam que mais de 90% das notícias se originam na imprensa. Por isso temem perder contato com o que se passa no país se houver alteração nas redes. Claro que esse medo não tem o mesmo peso dos que temiam por seu bolso. Desde a Inconfidência Mineira, sabemos que a repulsa aos impostos é maior que qualquer bandeira de liberdade de expressão.

Mesmo marchando com cuidado num mundo tão difícil, evitar o negacionismo não basta. Temos a questão do Congresso, que atrasa o país. Grupos fisiológicos se apoderam do Orçamento. Os gastos não são racionais, não avaliam as necessidades do país, não são transparentes e, nos últimos tempos, mostram-se uma fonte de corrupção. Um governo negacionista não conseguiria destruir o país sozinho, pois parte do dinheiro seria gasto pelos grupos que dominam o Congresso.

Da mesma forma, é impossível levar adiante uma política construtiva dividindo o Orçamento com o Congresso, algo que não existe em nenhuma democracia ocidental. Estamos com uma infinidade de problemas e, ainda no final, teremos de digerir essa jabuticaba nacional, um Congresso gastando a rodo.

Será preciso muita humildade e tolerância para desatar tantos nós, importados ou simplesmente made in Brazil.

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