segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Nova ordem global obriga Brasil a rever gastos em defesa

O Globo

Num planeta conturbado por guerras e incertezas, despesa militar é de 1% do PIB, ante média mundial de 2,4%

Num mundo convulsionado por guerras, em que a geopolítica passa por um realinhamento de consequências imprevisíveis, o Brasil precisa cuidar melhor de sua defesa. É preciso destinar às Forças Armadas recursos à altura das nossas dimensões territoriais e de nosso papel global. Os números são infelizmente ainda tímidos na comparação internacional.

No ano passado, o Brasil destinou 1% do PIB a Exército, Marinha e Aeronáutica. É menos que Colômbia, Uruguai, Equador, Chile ou Bolívia. Para efeito de comparação, a média global foi 2,4% do PIB. Não é preciso se comprometer com um patamar exorbitante, como os 5% aventados pela Otan. Mas é essencial haver planejamento, para o país não ser pego desguarnecido em conflitos insuflados por autocratas voluntaristas. Basta lembrar a investida do ditador venezuelano Nicolás Maduro sobre a Guiana.

O mais preocupante: a maior parte dos gastos militares é destinada a soldos e aposentadorias. São despesas obrigatórias que não têm parado de crescer. Ao mesmo tempo, quando há necessidade de cortes, eles são feitos em investimentos e na necessária modernização dos equipamentos. Um exemplo é o que ocorre na defesa oceânica. Apesar de o litoral brasileiro, com 9 mil quilômetros, formar a maior costa atlântica do mundo, a Marinha prevê desmobilizar 70% da frota até 2028, devido à obsolescência. Aumentará a insegurança em regiões que produzem 95% do petróleo consumido no país, 90% do gás e por onde passam 99% das comunicações digitais submarinas.

O Prosub, programa para construir submarinos em associação com a França, enfrenta percalços. Dos quatro convencionais, três foram entregues. O nuclear, previsto inicialmente para o final da atual década, deverá ser lançado ao mar apenas em 2034 ou, a depender de cortes orçamentários, poderá ficar para 2040, mais de três décadas depois de lançado o programa.

No Exército, responsável pela defesa da quinta maior extensão territorial do planeta (8,5 milhões de km²) e de 16,8 mil quilômetros de fronteiras terrestres, a situação não é diferente. Por falta de recursos, a previsão é que o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron) esteja definitivamente implantado apenas em 2039.

A Aeronáutica enfrenta obstáculos da mesma natureza. Volta e meia, aviões da FAB interceptam pequenas aeronaves transportando drogas ou armas. Os maiores produtores de cocaína do mundo, Colômbia, Peru e Bolívia, fazem fronteira com o Brasil. Geralmente operam nas interceptações caças Tucano, da Embraer. Para garantir supremacia aérea, o Brasil precisa contar com aeronaves mais avançadas.

O governo contratou a compra de 36 caças F-39 Gripen, suecos, para substituir os ultrapassados F-5 americanos e AMX da Embraer. Dos 36, 15 deverão ser construídos no Brasil, com transferência de tecnologia. O contrato, assinado em 2014, enfrenta dificuldades orçamentárias. A entrega final está prevista para 2030, e apenas oito caças estão em operação plena.

O conceito primordial em defesa é ter poder para dissuadir potenciais inimigos. “A defesa nacional é um projeto de Estado, não de governo”, escreveu no GLOBO o CEO do grupo industrial thyssenkrupp América do Sul, Paulo Alvarenga. O atual redesenho da ordem mundial é um motivo suficiente para o Brasil rever a prioridade que tem concedido à defesa nacional.

Avanço da captura de carbono no país aponta caminho promissor

O Globo

Sem prejuízo do reflorestamento e do corte de emissões, nova tecnologia também deve ser incentivada

Cortar emissões de gases de efeito estufa continua a ser medida fundamental no combate ao aquecimento global. Em paralelo, outras medidas de mitigação têm sido adotadas para reduzir a concentração de carbono na atmosfera. A captura do gás carbônico (CO₂) no ar, por meio de diversas tecnologias, tem ganhado espaço no mundo todo, inclusive no Brasil.

No Sul, a Repsol Sinopec, subsidiária da petrolífera espanhola, busca compensar suas emissões com um projeto de captura direta do ar (DAC), desenvolvido em parceria com a PUC gaúcha. Um protótipo está em operação desde novembro, com 20 reatores capazes de capturar 300 toneladas de CO₂ por ano usando “ventiladores” e filtros que o separam dos demais gases. “Temos a primeira unidade DAC do mundo em ambiente tropical, com alta umidade e temperatura”, diz Cassiana Nunes, gerente de portfólio de pesquisa da Repsol Sinopec. O CO₂ capturado pelo equipamento DAC pode ter dois destinos: injeção no subsolo ou uso como insumo de novos produtos.

Em Lucas do Rio Verde (MT), a usina FS começa a construir uma unidade de captura de carbono em sua fábrica de etanol de milho. A intenção é transformar a destilaria de álcool na primeira do mundo com pegada de carbono negativa — mais retenção que emissão. Para isso, recebe aporte de R$ 500 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Uma startup de Belo Horizonte, a DeCARB, negocia apoio financeiro de duas mineradoras internacionais para desenvolver um protótipo de captura atmosférica do carbono. O objetivo é reter emissões em tubulações e chaminés industriais, sem alterar a estrutura das fábricas.

A China também tem investido na captura, em especial nas usinas que ainda funcionam a carvão mineral. O “biocarvão” chinês se tornou competitivo, segundo noticiou a Nature Communications no ano passado. Outro objetivo é compensar as emissões da agricultura sem perda de produtividade. A China conta com a tecnologia para ser neutra em emissões até 2060.

Outro país que avança na absorção de carbono é a Islândia. Em 2024, a companhia suíça Climeworks anunciou o início da operação no país da maior unidade do mundo de captura de carbono do ar, capaz de absorver 36 mil toneladas anuais de CO₂, transformado em água e bombeado para debaixo da terra, onde reage com o basalto e vira rocha. Situada em região vulcânica, a Islândia tem a vantagem do acesso a fontes geotérmicas de energia.

Por enquanto, os projetos brasileiros seriam suficientes para capturar apenas 8,3% das emissões. Há quem defenda usar os recursos destinados a capturar carbono em reflorestamento, foco principal do combate ao aquecimento global. Mas, mesmo que as novas tecnologias já estivessem prontas para ser usadas em alta escala, seria preciso plantar árvores e cuidar dos rios. Sem prejuízo dessas iniciativas de reflorestamento e dos cortes de emissões, a captura de carbono também deve ser incentivada. Todas as medidas que puderem reduzir o impacto das mudanças climáticas são bem-vindas.

Com tarifas, China desacelera e preços sobem nos EUA

Valor Econômico

Na guerra atual, há uma fragilidade clara no lado brasileiro: a situação fiscal

As maiores economias do mundo, Estados Unidos e China, estão desacelerando, e com elas o comércio mundial, sem que os efeitos da guerra tarifária já tenham exercido plenamente seus efeitos. Nos EUA, os preços começaram a subir, depois que os enormes estoques preventivos importados diante da ameaça de aumentos de tarifas se esgotaram. A China, em parte como consequência da barreira protecionista americana, enfrenta o drama inverso: deflação nos preços ao consumidor e entrincheirada nos preços ao produtor por 33 meses.

A situação das economias com forte poder exportador apresenta dinâmica parecida com a chinesa. Os países asiáticos, atingidos por altas tarifas, terão performance contida, com desafogo nos preços e política monetária frouxa. O Brasil, que não é grande exportador, parece estar no meio do caminho: há algum efeito deflacionário do tarifaço, e a economia começou a dar sinais consistentes de uma desaceleração, que não será vigorosa.

Tanto a China como os EUA apresentavam desequilíbrios anteriores à tempestade de tarifas de Trump. Agora, para os americanos, a equação é diferente. O Federal Reserve (Fed, o banco central americano), com taxas de juros altas, lidava com atividades econômicas avançando muito acima do potencial e inflação que há dez anos não pousa perto da meta de 2%. O PIB, após cair 0,5% no primeiro trimestre, por causa de enormes importações, avançou 3% no segundo. Não há dúvidas entre os investidores sobre duas coisas: a economia terá desempenho pouco abaixo de 2% e o risco de recessão foi afastado. A inflação, que teimava em cair, voltará a subir, com indícios disso claros no índice de preços ao produtor, que evoluiu 0,9% em agosto e 3,3% em 12 meses.

Os consumidores estão pessimistas sobre a inflação. O índice calculado pela Universidade de Michigan caiu. As expectativas de inflação para um ano à frente foram de 4,5% para 4,9% e as de longo prazo (5 anos), de 3,4% a 3,9%. O núcleo do índice de gastos pessoais de consumo, medida preferida pelo Fed, atingiu 2,8% em julho. No curto prazo, os preços seguirão o ritmo altista das tarifas.

Por outro lado, a economia desacelera, com equilíbrio precário entre poucas demissões e poucos empregos novos criados. O conjunto coloca o BC americano em difícil posição: pela marcha da inflação, não deveria cortar os juros tão cedo. Pela do emprego, pode ter de fazer isso caso os números sejam mais desfavoráveis em agosto. Os mercados apostam em corte em setembro, mas há boas chances de isso não acontecer.

A China, alvo número um da guerra tarifária, viu suas exportações para os EUA encolherem à metade até junho. Mas no conjunto cresceram 7,2% em 12 meses findos em junho, aumentando para países da Ásia, que os reexportam aos EUA. Mas, com o novo cenário protecionista, os líderes chineses precisam estimular a economia doméstica, travada desde que a bolha imobiliária estourou há três anos. Há excesso de capacidade no país e suas exportações têm efeitos anti-inflacionários nos mercados que atingem, exceto nos EUA. Por outro lado, as importações da China, o maior comprador do mundo, estão em queda (4,5%), reforçando a perda de impulso provocada pelas tarifas no comércio mundial. O país deve crescer pouco abaixo de 5% este ano e perto dos 4% em 2026.

Pequim tem estimulado o consumo de várias formas, sem, no entanto, lançar mão de pacotes gigantescos, como na grande crise de 2008. Um dos mais recentes expedientes é o de, unidos, governo e Estados subsidiarem juros aos consumidores em suas compras em 1 ponto percentual até aquisições de US$ 7 mil, e para empresas, até US$ 150 mil. Com isso, evitam pressionar o balanço dos bancos estatais. A taxa de juros ao consumidor é de 3%, em média. As vendas no varejo, no entanto, vêm perdendo fôlego e cresceram 3,7% em julho, ante 4,8% em junho. Os investimentos em imóveis declinaram 12% no ano, e nos ativos fixos só avançaram 1,6% em 12 meses.

É prematuro decretar o fim da globalização, pois tudo pode não passar de um interregno insensato patrocinado pelos EUA. Os republicanos poderão perder o controle de uma ou duas Casas do Congresso em 2026, manietando o poder de Trump. Ou Trump poderá ter de amenizar muito suas políticas radicais quando os preços subirem com mais força nos EUA. A indefinição de rumos deve fazer a economia global se mover mais devagar, cercada de incertezas.

O Brasil foi abalroado com tarifas de 50% e notícias igualmente ruins podem estar a caminho, vindas dos EUA. No entanto, a conjuntura não lhe tem sido muito desfavorável. Haverá alguma pressão deflacionária em um IPCA que já recua devagar. O diferencial de juros internos e americanos é suficiente para atrair capital de risco e garantir margem para cortes sem grandes riscos. A desaceleração das compras de seu maior parceiro, a China, diminui o saldo comercial, mas contém os preços das commodities. A perda de fôlego da economia americana desvaloriza o dólar e ajuda a derrubar os preços domésticos. A inflação pode cair mais rapidamente com algum esfriamento da economia, se o governo não tentar impedi-lo com mais estímulos. Na guerra atual, há uma fragilidade clara no lado brasileiro: o fiscal. É urgente reforçá-lo.

Trump oferece Ucrânia como prêmio ao reabilitar Putin

Folha de S. Paulo

Cúpula no Alasca foi um inusitado exercício de genuflexão diplomática disfarçado de demonstração de força militar por parte do americano

Zelenski arregimenta os aliados europeus para evitar a partilha de seu país, mas recursos são limitados e dependem da vontade da Casa Branca

A pacata cidade de Anchorage, no remoto Alasca, foi testemunha na sexta-feira (15) de um daqueles eventos que observadores no futuro poderão chamar de histórico , —a primeira cúpula entre presidentes das duas maiores potências nucleares do planeta depois de quatro anos de crise aguda.

Que o afastamento tenha se dado pela invasão da Ucrânia promovida em 2022 por Vladimir Putin, e o russo tenha sido o vencedor político do encontro com Donald Trump, eleva a chance de os historiadores vindouros classificarem a reunião como infame.

Se é salutar ver pessoas que podem destruir o mundo conversando, o republicano promoveu um constrangedor teatro de poder militar ao mesmo tempo em que praticava genuflexão.

Trump tentou impressionar Putin não só com tapete vermelho, mas enfileirando caças avançados na pista de pouso e fazendo voar sobre ambos um bombardeiro nuclear. Ao fim, até o avião do russo teve escolta aérea.

Mas, se diplomacia nessas ocasiões se faz no detalhe, foi Putin quem capturou Trump. Dispensou sua limusine trazida de Moscou e embarcou na mítica "Besta", o carro oficial dos presidentes americanos que nunca vê um rival a bordo. Putin envergou um raro sorriso aberto.

Fora da área simbólica, o evento serviu para confirmar os piores temores da Ucrânia e da Europa: Trump aderiu à nomenclatura do Kremlin para pôr fim à guerra, tema central do encontro.

Se havia ameaçado "consequências severas" caso não saísse de Anchorage com um cessar-fogo, ao fim de uma cúpula realizada na metade do tempo previsto tal retórica se dissipou.

Segundo os múltiplos relatos que se seguiram, inclusive do próprio Trump ao ucraniano Volodimir Zelenski e a líderes europeus, os Estados Unidos aceitam mediar um acordo em termos favoráveis a Putin. Perdas territoriais terão de ocorrer, e a compensação principal deverá ser algum tipo de garantia de segurança a Kiev.

Ela consistiria numa versão da cláusula de proteção mútua da Otan, sem contudo permitir o ingresso do país na aliança militar. Se Putin aceitar isso, terá sido uma vitória pontual para Trump.

De resto, o que se viu foi a repetição da cena em que potências decidem o destino de nações menores. Putin não é Adolf Hitler, apesar da propaganda, mas a Ucrânia deverá ser fatiada como a Tchecoslováquia foi em 1938.

Ainda é incerto o que ocorrerá. Pelos planos que transpareceram, o Kremlin deixaria os 440 km2 que domina em áreas ucranianas que não clama e ganharia 6.600 km2 que restam daquilo que ele deseja. Não é a vitória com a qual Putin sonhava, mas poderá ser vendida em casa.

A paz poderá vir a alto custo, ou tudo desandar. Nesta segunda (18) Zelenski vai a Trump com colegas europeus discutir o próximo passo, dependendo da boa vontade americana. Já a reabilitação de Putin é um resultado tangível do esforço do republicano.

Ação contra Mais Médicos é iniciativa patética dos EUA

Folha de S. Paulo

EUA revogam vistos de brasileiros de forma arbitrária e justificam a medida com argumentos fajutos

Trump,, que quer parecer durão, age como pit bull dos Bolsonaros, enquanto estes, que posam de nacionalistas, prejudicam seu país

Em mais um capítulo de sua cruzada destrambelhada contra o Brasil, o governo de Donald Trump revogou os vistos de dois brasileiros que participaram da criação do Mais Médicos, embora já não estejam ligados ao programa: Mozart Julio Tabosa Sales e Alberto Kleiman.

A canetada autoritária ainda atingiu Alexandre Padilha de forma indireta. Atual ministro da Saúde, ele também comandou a pasta na gestão de Dilma Rousseff (PT), quando o Mais Médicos foi instituído, em 2013. Como seu visto estava vencido, os americanos cancelaram o de sua mulher e o de sua filha, de apenas 10 anos.

O governo Trump, que não é referência moral para nada, sustentou a medida como reação ao que chamou de "esquema de exportação de trabalho forçado do regime cubano," uma vez que médicos oriundos da ilha participaram da iniciativa até 2018.

Os EUA alegaram que o programa "enriquece o corrupto regime cubano e priva o povo cubano de cuidados médicos essenciais". Afirmaram, ademais, que a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) atuou como intermediária para o governo Dilma driblar requisitos constitucionais.

Justificativas patéticas como essas evidenciam o caráter arbitrário da decisão americana —celebrada por gente como o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), um bufão que se converteu em inimigo do Brasil.

Qualquer leitura desapaixonada da situação aponta o óbvio: a relação do programa com a ditadura de Cuba, de fato problemática, acabou faz tempo. Havia motivos para criticar os termos do acordo —e esta Folha o fez, de forma tempestiva. Eles deixaram de existir, porém, sete anos atrás.

De resto, é preciso desconhecer tanto a realidade cubana quanto a brasileira para falar em "trabalho forçado" no Mais Médicos, assim como é preciso ignorar a história para assumir que os EUA se importem com a saúde de Cuba.

A verdade é que o Mais Médicos, com os reparos que merecem ser feitos, cumpriu função importante ao levar atenção primária aos rincões do Brasil.

Trump, contudo, não está preocupado com a lógica mais comezinha. Ele só quer saber de espezinhar o governo e o Judiciário brasileiros —tome-se como exemplo o tresloucado relatório sobre direitos humanos no país.

Mas não deixa de ser curioso o arranjo surrealista desse quadro: Trump, que tanto gosta de parecer durão, aceita agir como pit bull dos Bolsonaros, enquanto estes, que tanto posam de nacionalistas, investem todas as fichas em ações destinadas a prejudicar o próprio país.

Proteger crianças requer inteligência

O Estado de S. Paulo

Após vídeo sobre exploração infantil nas redes, projetos punitivos avançam na Câmara, mas é preciso atacar os incentivos econômicos e a arquitetura dos algoritmos que levam a esses crimes

Os congressistas brasileiros reagiram prontamente a um vídeo no qual um influenciador digital denunciou explorações variadas de crianças nas redes sociais. Trinta e dois projetos foram protocolados na Câmara até o início da semana passada, somando-se a outros que já tramitavam na Casa, compondo um largo mosaico de iniciativas destinadas ao tema abordado no vídeo: a chamada “adultização” da infância e da adolescência, termo razoavelmente novo usado para descrever um velho problema, isto é, quando crianças e adolescentes são conduzidos a papéis, estéticas e responsabilidades próprias da vida adulta, como cuidar de irmãos, trabalhar cedo e serem submetidos à erotização precoce.

Diante desse rol de propostas, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), acertadamente decidiu criar um grupo de trabalho com deputados e “notáveis”, que discutirão ações legislativas. Não é improvável que muitos dos parlamentares que apresentaram propostas tenham tentado aproveitar a oportunidade para surfar na onda deixada pelo influenciador e sua repercussão. Faz parte do jogo. Mas é imprescindível que um debate qualificado ajude a filtrar o que é oportunismo indesejável e o que é oportunidade bem-vinda.

Assim como o vídeo do influenciador, boa parte dos projetos se concentra na responsabilização pela erotização e exploração sexual infantil. O vídeo detalhou, de forma didática, a forma com que algoritmos das plataformas alimentam a rede de pedofilia e descreve o que muitos especialistas já vêm alertando há bastante tempo: o uso da internet por crianças, a exibição de imagens sem controle e o caldeirão de riscos que as redes sociais significam, um fenômeno que abre as portas para vícios em pornografia e para o desenvolvimento de transtornos em crianças e adolescentes.

As iniciativas legislativas são relevantes, mas a maioria ainda parece focada no que Alexandre Schneider, ex-secretário municipal de Educação de São Paulo, chamou, em artigo publicado no Substack, de “pós-fato” – ou seja, na punição apenas do conteúdo, sem considerar o processo que levou à publicação. É evidente que é preciso punir os responsáveis pelo dano, mas o ideal seria, em suas palavras, “regular a máquina antes que o dano ocorra”. Um dos projetos que tentam escapar disso é o Projeto de Lei 2.628/2022, do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), que avança no controle parental obrigatório, em mecanismos de denúncia, na verificação de idade e previsão de multas. Em síntese, exige uma atuação ativa das empresas e facilita o acompanhamento pelas famílias.

Assim seja. Há, como se sabe, um vício punitivo nacional, especialmente em momentos de comoção popular – uma tendência amplificada ainda mais num contexto de discussão sobre a regulação das redes sociais. O risco, portanto, é concentrar-se em demasia na sanção e numa abordagem meramente punitiva das chamadas big techs, sem atacar as causas sistêmicas: os incentivos econômicos e a arquitetura dos algoritmos.

A legislação da União Europeia é um bom exemplo de soluções mais estruturais. Lá, o Digital Services Act define que as plataformas são obrigadas, por exemplo, a proibir publicidade direcionada a menores com base em seus dados, oferecer um feed não personalizado como alternativa ao fluxo algorítmico, avaliar anualmente os riscos sistêmicos que seus serviços criam, inclusive sobre a saúde mental, e garantir mais transparência sobre o funcionamento dos seus sistemas de recomendação.

Não são poucas as forças malignas a operar no ambiente digital: a necessidade de ser visto (transformando a performance diante da câmera numa obsessão), o reforço social gamificado (em que curtidas, comentários, seguidores e “selos” viram chancela de aceitação) e o seu uso para ganhar dinheiro (ou, no jargão das redes, a monetização de conteúdos). Some-se a isso a erotização, o assédio e o aliciamento, especialmente entre meninas, e tem-se em mãos um produto que não só amplia a vulnerabilidade infantil como encurta o tempo de brincar.

É o que o pediatra Daniel Becker classifica como a “amputação da infância”, uma forma pedagógica de mostrar a perda de um período que não volta no tempo – uma anomalia ainda mais perturbadora quando vemos crianças transformadas em mercadorias.

A democracia israelense à beira do abismo

O Estado de S. Paulo

Avolumam-se indícios da preparação de uma limpeza étnica de palestinos. Mas ‘sepultar a ideia de um Estado palestino’, como disse um ministro, equivale a sepultar a democracia israelense

Quando o ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, promete expandir assentamentos na Cisjordânia para “sepultar a ideia de um Estado palestino”, não está apenas insultando o Direito Internacional ao qual Israel deve sua existência. Está confessando um projeto que enterrará também a própria democracia israelense. A ocupação permanente de territórios palestinos é incompatível com a condição de Estado democrático que Israel reivindica.

Os sinais se acumulam. A exumação de planos como o E1, que racha a Cisjordânia ao meio, o avanço de assentamentos em ritmo recorde e a reocupação militar de Gaza não são peças isoladas: compõem um mosaico coerente, voltado a arruinar qualquer solução de dois Estados. O redesenho físico e demográfico dos territórios palestinos, reforçado por “zonas-tampão” e corredores militares, traduz no terreno o que as alas extremistas do governo pregam abertamente: a substituição de populações palestinas por colonos israelenses e o controle total “do rio ao mar”.

As palavras de altos dirigentes dão corpo às evidências. Fala-se em “realocar voluntariamente” 2 milhões de habitantes de Gaza, enquanto se negocia sub-repticiamente com países distantes para absorver refugiados. Na prática, essa realocação “voluntária” é ficção: qualquer deslocamento, sob o trauma de bombardeios e da fome, sem garantias de retorno, configura expulsão forçada. A demolição em massa de casas, a destruição sistemática de infraestrutura civil e a criação de enclaves palestinos isolados sob vigilância permanente são parte do mesmo padrão. Ao ignorar o Direito Internacional, Israel se arrisca não só a sanções, mas a um isolamento profundo. O paralelo com a expulsão, entre as décadas de 1940 e 1970, de quase 1 milhão de judeus de países árabes é sinistro – e deveria bastar para dissuadir qualquer governo de repetir, contra outros, um trauma que marcou seu próprio povo.

A Corte Internacional de Justiça e governos e organismos internacionais reconhecem que a colonização e o deslocamento compulsório violam as Convenções de Genebra. Não por acaso, cresce a lista de países que cogitam reconhecer o Estado palestino ou restringem visitas de autoridades israelenses. A erosão do apoio internacional não é retórica: é um vetor estratégico que ameaça a segurança, a economia e a capacidade diplomática israelenses. A transformação de Israel em um Estado pária deixaria cicatrizes profundas, corroendo as relações com parceiros que hoje sustentam sua segurança.

As consequências para os palestinos são óbvias e trágicas: mais mortes, mais deslocamentos, mais perda de meios de subsistência, mais uma geração condenada ao trauma e ao exílio. Mas os custos para Israel serão igualmente devastadores. Se se consolidar como potência ocupante permanente, Israel fechará as portas à normalização com vizinhos árabes, alimentará instabilidade regional e verá a cooperação em segurança e comércio ruir. A promessa de integração no Oriente Médio será substituída por uma espiral interminável de hostilidade e violência.

Um regime democrático exige não apenas eleições livres para seus cidadãos, mas o respeito às liberdades e à autodeterminação dos povos sob sua jurisdição, e um país que mantém milhões de pessoas sob domínio militar, sem direitos políticos, ou que expulsa populações inteiras por razões étnicas, deixa de ser uma democracia. Assim, a defesa da democracia israelense passa, necessariamente, pela desocupação dos territórios palestinos e pelo reconhecimento do direito palestino à soberania.

“Sepultar a ideia de um Estado palestino” equivale, portanto, a sepultar a ideia da democracia plena israelense. Entre um futuro de coexistência, com fronteiras reconhecidas e segurança mútua, e um de dominação perpétua, isolamento e paranoia, a escolha ainda é possível. Mas o tempo – assim como as terras e a esperança dos palestinos – está se esgotando rapidamente. Se os democratas israelenses quiserem salvar a alma de sua nação, terão de lutar com unhas e dentes não para expandir o seu controle sobre territórios alheios, mas para encerrar a sua ocupação.

Câmara recalcitrante

O Estado de S. Paulo

Com aval de Motta e em afronta à lei, comissões aprovam emendas sem debate e sem transparência

Velhos hábitos são difíceis de mudar, especialmente quando se trata da Câmara dos Deputados e seu apetite voraz sobre os bilionários recursos do Orçamento da União. Nos últimos dias, comissões da Casa aprovaram a destinação de verbas, dentro das chamadas emendas de comissão, de forma explicitamente contrária às determinações do Supremo Tribunal Federal (STF) e à própria lei aprovada recentemente pelo Congresso. A festa parlamentar incluiu a aprovação em segundos, sem debate, sem qualquer informação do destino dos recursos e sem revelar os nomes dos deputados responsáveis pelas indicações, como mandam a lei e o STF.

Com isso, os cidadãos brasileiros – no limite os donos do dinheiro público e os reais beneficiários dos projetos listados nas emendas – ficam sem saber quais ações estão previstas, quanto cada uma delas vai receber e quem foi o congressista responsável. A marotagem foi favorecida por decisão do próprio presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que na terça-feira passada convocou os presidentes de algumas comissões e determinou a aceleração das indicações das emendas parlamentares alocadas nesses colegiados, mesmo se incompletas as planilhas enviadas pelos partidos. Um assombro.

Ou o esforço de Hugo Motta é fruto de sua disposição em permitir que o Congresso siga afrontando o STF para preservar o enorme poder adquirido no manejo do Orçamento da União ou decorre de sua estratégia para sobreviver politicamente, usando o artifício como forma de recuperar o controle da Câmara. Afinal, sua liderança passou a ser questionada desde o motim que o impediu de presidir as sessões por quase 30 horas com o objetivo de pressioná-lo a aprovar a anistia a Jair Bolsonaro e levar adiante projetos capazes de esvaziar a atuação do STF e blindar os deputados que mercadejam emendas parlamentares – hoje há mais de 80 inquéritos sobre desvios de aplicação de verbas federais malversadas por meio de emendas. Como se sabe, o presidente da Câmara se viu à mercê de uma turba de parlamentares enquanto, de forma humilhante, tentava reassumir a cadeira de presidente.

À esta altura, porém, o motivo da operação, qualquer que seja, pouco importa. É inadmissível que regras elementares de transparência sejam ignoradas pelo Congresso, à custa do desvirtuamento de propósito, da distorção do Orçamento público e do favorecimento à atuação desbragada dos cupins do Legislativo. Com muita tensão e conflito entre os Poderes, há um esforço para que o País construa diques de contenção ao problema das emendas parlamentares – um esforço que começou ainda em 2021, quando este jornal revelou a existência de um sofisticado esquema de compra de apoio urdido pelo governo de Jair Bolsonaro e pela caciquia do Congresso, o chamado “orçamento secreto”.

Desde então, houve avanços em determinações para o registro de autoria das emendas e o cumprimento das regras constitucionais de transparência e rastreabilidade dos recursos. Avanços, como se nota, restritos por ora à letra da lei. Porque, na prática, a Câmara dos Deputados, recalcitrante, prefere ignorar as regras e a sensatez.

Riscos sem distinção de idade

Correio Braziliense

A internet rompe barreiras, porém não pode ultrapassar os limites da segurança, do respeito e dos direitos

O debate acerca dos crimes cibernéticos ganhou força no Brasil com a recente denúncia do influenciador Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, sobre a produção de conteúdo erotizado com crianças e adolescentes para monetização nas redes sociais. De extrema gravidade, o tema despertou a sociedade para a cobrança de medidas que acabem com essa prática condenável. A urgência é óbvia, mas o país precisa também encarar uma ampla e complexa pauta na direção do combate a outros delitos virtuais, que atingem os brasileiros sem distinção de idade.

Exposição e exploração sexual de menores de idade, jovens e adultos, golpes diversos, assédio, difamação, cyberbullying, fraudes financeiras, extorsão, pornografia, pedofilia e sequestro de informações são ocorrências que aparecem em destaque no dia a dia da população. Levantamento realizado pela Associação de Defesa de Dados Pessoais e do Consumidor (ADDP) aponta que, no ano passado, o Brasil registrou 5 milhões de crimes digitais, um aumento de 45% em relação a 2023.

Paralelamente à comprovação do crescimento estatístico, os estudos mostram a extensão do alcance dos ataques pela internet. Segundo o Instituto DataSenado, 24% dos brasileiros com mais de 16 anos já foram vítimas de algum tipo de golpe on-line — o que significa mais de 40 milhões de pessoas. Conforme a pesquisa, os principais afetados estão entre 16 e 29 anos, faixa que concentra 27% dos registros. Já os idosos representam 16% dos lesados. O que se percebe é que os criminosos vêm ampliando seus alvos e não miram vítimas que, supostamente, seriam mais vulneráveis em consequência da idade avançada.

O cenário assustador confirma a fragilidade dos sistemas de proteção e expõe a falta de educação digital no país. Hoje, a natureza dos golpes é tão diversa que exige a combinação de investimento em segurança e atenção constante. Enquanto os jovens caem, em grande parte, em armadilhas rápidas, os mais velhos são vítimas de estelionato clássico, em que são aplicadas técnicas de persuasão, uso de falsas identidades e simulação de atendimentos para acessar dados. Fato é que a geração que nasceu sob a dependência do celular nem sempre está atenta aos perigos e, muitas vezes, torna-se presa fácil em aplicativos de mensagem, redes sociais e compras on-line.

A internet rompe barreiras, porém não pode ultrapassar os limites da segurança, do respeito e dos direitos. A crescente migração da criminalidade do real para o virtual precisa ser combatida nos campos político, policial, institucional e civil. A denúncia feita por Felca sobre a adultização e a utilização da web para monetizar com o abuso infantil deu o start em propostas contra esses horrores, que, infelizmente, acontecem há tempos sem a punição devida.

Publicações com contextos sexuais e de violência, assim como discursos de ódio de todo tipo, não podem mais se perpetuarem nas telas. Para isso, os autores desses conteúdos precisam ser identificados e responsabilizados à altura — é claro que diante de provas e garantia de defesa. Impedir crimes definidos no Código Penal e que foram julgados conforme a lei é dever das autoridades, e não censura. Da mesma forma, é preciso encontrar mecanismos contra a avalanche de fraudes e contravenções que diariamente atinge os brasileiros no ambiente digital. O país não pode mais esperar por proteção e resistência efetivas diante da investida voraz dos criminosos, que ferem a dignidade de crianças, jovens, adultos e idosos.

Cautela na reta final do julgamento

O Povo (CE)

Réu na corte superior, Jair Bolsonaro é acusado de tentativa de golpe de Estado e de outros crimes correlacionados, com pena inicial excedendo os 40 anos de prisão em regime fechado

O Supremo Tribunal Federal (STF) se encaminha para concluir em tempo razoável o julgamento do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL), previsto para as duas primeiras semanas de setembro, com sessões distribuídas entre os dias 2, 3, 9 e 12/9.

Réu na corte superior, Bolsonaro é acusado de tentativa de golpe de Estado e de outros crimes correlacionados, com pena inicial excedendo os 40 anos de prisão em regime fechado, na hipótese de esse patamar não ser reconsiderado pelos magistrados que compõem a Primeira Turma.

A seu lado, configurando o que se classificou como "núcleo central", estão ex-ministros, entre os quais Walter Braga Netto (Casa Civil), Paulo Sérgio Nogueira (Defesa) e Augusto Heleno (GSI), todos ex-integrantes da gestão à frente do Planalto. A eles se soma Mauro Cid, ex-ajudante de ordens cuja delação foi crucial para que a Polícia Federal desmontasse o esquema que pretendia solapar a democracia, com planos que incluíam assassinato de autoridades dos Três Poderes.

Até agora, salvo um ou outro atropelo do relator do caso no STF, Alexandre de Moraes, a ação tramita em total acordo com o devido processo legal, respeitando-se os prazos, ainda que aparentemente mais acelerados quando se comparam com os de outras matérias em apreciação, e levando-se em conta os direitos das defesas de contestarem as suspeitas e denúncias que recaem contra seus clientes.

Ora, pode-se eventualmente criticar este ou aquele aspecto secundário do julgamento desde o seu início, este ou aquele detalhe de menor relevância no exame da ação penal, mas não que haja tendido à parcialidade ou que tenha ficado demonstrado qualquer tipo de acerto não republicano entre o Ministério Público Federal (MPF) e o juiz-relator, como se viu há bem pouco no país.

Logo, é ocioso discutir se há justificativa para as chicanas que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL) vem promovendo em solo estadunidense, com o propósito escancarado de constranger o Judiciário brasileiro a recuar da aplicação da lei na investigação da qual seu pai é alvo. Licenciado do exercício do mandato, o ainda parlamentar extrapola claramente suas funções, devendo ter ele mesmo encontro com a Justiça nos dias que se seguem.

É preciso, no entanto, redobrar a cautela na condução do inquérito, sobretudo nesta reta final. Não há espaço para voluntarismos nem para decisões cujo teor careça de um entendimento cristalino. Tampouco devem prosperar medidas de caráter monocrático, fruto talvez de uma excessiva concentração de poder nas mãos de um juiz.

Ao Supremo cumpre portar-se mais fielmente ainda à letra do texto constitucional, amparando cada ato no que rege a jurisprudência, sem margem para "pedaladas jurídicas" ou cambalhotas processuais. Afinal, trata-se do julgamento mais importante da história do Brasil desde a redemocratização. Talvez mais que isso: é um reencontro com a história nacional, em especial com um capítulo que havia permanecido em suspenso em nosso passado. 


 

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