domingo, 5 de outubro de 2008

Paradoxos da democracia de massas


Leôncio Martins Rodrigues
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Visto de nossos dias, o desenvolvimento dos sistemas políticos democráticos se confunde com a progressiva, mas descontínua, ampliação do sufrágio. Esse percurso tem etapas conhecidas. De modo esquemático: com velocidades e caminhos diferentes, o direito de voto estendeu-se das camadas altas para as classes médias, depois para as classes trabalhadoras urbanas e, por fim, para a população rural pobre. Para ilustrar sumariamente o caso brasileiro: em 1876 a proporção de eleitores representava 0,23% da população, calculada em 11 milhões; em 1940 subiu para 6% da população de 41 milhões; hoje representa 70%, cerca de 130 milhões numa população de 185 milhões.

Em todos os países onde sistemas democráticos se foram implantando, a massificação do jogo político apresentou certos aspectos “universais” que vêm do próprio fenômeno quantitativo da extensão da cidadania política. O crescimento absoluto e relativo do número de eleitores, obviamente, tem de se efetuar de “cima para baixo”, o que significa dizer que cresce pela inclusão cada vez maior de pessoas vindas das camadas de baixa renda e escolaridade. Em geral, as tendências da esquerda são favoráveis à constante extensão do corpo eleitoral. (Estou sendo um pouco simplista. As tendências revolucionárias desconfiavam de eleições “burguesas” e das campanhas pela universalização do sufrágio, que desviariam a classe trabalhadora da revolução. O fuzil antes do voto. ) Com alguma freqüência, contudo, a inclusão das classes baixas na política nacional favoreceu chefes populistas autoritários (como Mussolini, Perón, Getúlio...) que disputavam com os partidos de esquerda o mesmo eleitorado e que nem sempre foram muito tolerantes com seus rivais esquerdistas.

Quanto mais rápida a extensão do sufrágio em países do Terceiro Mundo, mais forte a tendência de formação de um corpo eleitoral muito pobre e de muito baixa qualificação educacional. No caso brasileiro, nas eleições de 2006, pelos dados do TSE, 6% dos eleitores eram analfabetos. Os que apenas liam e escreviam eram 16%. Se somarmos esses dois grupos aos 34% com primeiro grau incompleto, 56% dos eleitores brasileiros tinham baixíssima escolaridade e eram, obviamente, muito pobres.

A massificação e a democratização do eleitorado têm como um de seus resultados a popularização da classe política no seu conjunto. Não são os pobres, no entanto, que conseguem entrar e ascender na política e fazer parte das novas elites do poder, mas sim setores das classes médias e de trabalhadores manuais qualificados. A expansão de algumas organizações e associações de massas facilita a ascensão de políticos vindos das camadas populares e das classes médias que se comunicam melhor com as classes baixas: sindicatos, igrejas pentecostais, organizações católicas, ONGs variadas, movimento estudantil, etc.

Apesar de esse desenvolvimento ter diminuído a presença física de grandes empresários e proprietários nos órgãos legislativos e executivos, a influência do poder econômico no jogo político não se reduziu. Provavelmente aumentou significativamente. Uma das razões vem do fato de a própria ampliação do corpo eleitoral resultar em campanhas cada vez mais caras. O aumento do custo da captação de votos elevou astronomicamente o custo da participação eleitoral. Os políticos - mesmo, e talvez especialmente, os que vieram das classes populares e estão em partidos ditos de esquerda - tornaram-se dependentes dos grandes doadores para prosseguir sua ascensão, em especial quando ambicionam postos no Executivo, de só uma vaga disponível.

Os doadores (empreiteiras, construtoras, imobiliárias e sistema financeiro, principalmente) podem ser tudo menos ingênuos. Não canalizam suas contribuições somente para candidatos de determinada orientação ideológica. Alguma “isonomia” existe na distribuição dos auxílios, o que enfraquece possíveis acusações de que o grande capital beneficia fundamentalmente a direita. Esse tipo de denúncia, aliás, desapareceu do vocabulário das lideranças de esquerda na hora em que passaram também a ser beneficiadas pela generosidade dos grandes doadores. Na verdade, a ideologia dos candidatos e dos partidos (se existe) tem pouco ou nenhum interesse. Os grandes contribuintes distribuem recursos, em proporção diferente, a quase todos os candidatos. Reservam, é claro, as maiores somas para os que aparentam ter mais chances de vitória nas disputas por postos estratégicos do sistema de poder.

Mas cumpre refletir sobre qual exatamente o dano que a presença do financiamento privado ocasiona à democracia. Além dos grandes doadores, o jogo democrático da vida real tem outros atores. Confrontado com poderosos interesses corporativos, associações profissionais e lobbies diversos que financiam candidatos de modo indireto e/ou oculto, o poder econômico nas eleições não parece ser o mais nocivo para os regimes democráticos. Disputas eleitorais em democracias de massa têm custos financeiros elevados. Esses custos podem ser considerados como um indicador de que o sistema político se tornou mais competitivo porque mais gente participa. Tentar eliminar a presença do dinheiro nas competições eleitorais pode ter efeitos ainda mais negativos para a democracia. Mas sempre se pode tentar fazer mais transparente o lugar de onde vêm os recursos para atividade política, sem esquecer que somente em regimes autoritários ou totalitários as eleições (elas existem!) podem ser muito baratas.

Convém lembrar também, como mostram exemplos muito próximos de nossas fronteiras, que ameaças para a continuidade de regimes democráticos podem vir antes do interior do próprio sistema político que do poder econômico. São ameaças produzidas por lideranças de tipo populista que se apóiam em mobilizações de rua e maiorias legislativas que dão aparência de legalidade democrática a ambições de poder pessoal.

Leôncio Martins Rodrigues é professor aposentado dos Departamentos de Ciências Políticas da USP e da Unicamp

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