domingo, 5 de outubro de 2008

A mãe das leis, mas não de todas as regras


Carolina Brígido
DEU EM O GLOBO


Passados 20 anos, Constituição ainda tem 66 artigos (cerca de um quarto do total) à espera de regulamentação


BRASÍLIA. A Constituição Federal completa hoje 20 anos de existência repleta de lacunas. Até hoje, 66 dos 250 artigos aprovados em 1988 não foram regulamentados pelo Congresso Nacional e, por isso, não podem ser aplicados na prática. Ou seja: 26,4% do texto ficaram só no papel. Esses assuntos pendentes são, em grande parte, sobre questões trabalhistas. Mas também há pendências sobre a criação de municípios, a estrutura do serviço público e a política nacional.

Um desses casos é o artigo 7º, inciso 1º - uma verdadeira peça de ficção na realidade brasileira. Segundo o texto, trabalhadores urbanos e rurais que forem demitidos sem justa causa têm direito a uma indenização compensatória e outros benefícios que seriam definidos por lei complementar. Como a lei ainda não existe, nenhum trabalhador que passou por esta situação teve seu direito respeitado.

Outro trecho que aguarda regulamentação está no inciso 11 do mesmo artigo 7º, que garante aos empregados a participação nos lucros ou resultados da empresa - um dinheiro complementar ao salário mensal que chegaria ao bolso do trabalhador se o Congresso tivesse aprovado uma lei para definir como isso aconteceria. Atualmente, essa já é prática adotada por algumas empresas.

O texto original da Constituição deixou 126 artigos pendentes da aprovação de lei complementar para entrar em vigor. O Congresso tomou essa providência em apenas 60 deles. Em maio deste ano, o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), comprometeu-se a criar uma comissão para analisar todos os dispositivos não regulamentados. A medida ainda não saiu do papel.

STF faz papel do Congresso

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal resolveu, no julgamento de ações, suprir a omissão dos parlamentares e regulamentar alguns dispositivos da Constituição. Ao todo, foram 12 julgamentos desse tipo, dos quais sete realizados entre 2007 e 2008. Um dos casos mais polêmicos foi o da greve dos servidores públicos - um direito garantido pela Carta, mas nunca detalhado em lei pelo Congresso.

Em outubro do ano passado, o STF estabeleceu que os servidores poderiam cruzar os braços nos mesmos moldes da lei que regulamenta a paralisação dos trabalhadores do setor privado. A mais alta Corte do país declarou que o Congresso foi omisso por não ter decidido sobre o tema durante os 19 anos anteriores. Neste período, as greves no setor público eram julgadas ilegais nos tribunais por falta de regulamentação. Agora, os servidores podem fazer greve, desde que seja mantida pelo menos 30% da prestação de serviços essenciais.

- O STF não usurpa competências institucionais de outros poderes. Ao contrário, cumpre com estrito respeito ao texto da Constituição a missão que o legislador constituinte lhe confiou, que é o de velar pela guarda da Constituição - explica Celso de Mello, o mais antigo ministro do Supremo.

Na opinião do advogado Joaquim Falcão, integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e professor de direito da Fundação Getúlio Vargas, a tendência de preencher as lacunas deixadas pelo Congresso tende a crescer no STF. Para Falcão, quando age dessa forma, a Corte não invade a tarefa dos parlamentares, e sim garante aos brasileiros a efetividade da Constituição:

- Se o Congresso não regulamentar, vai criar um vácuo normativo e esse vácuo vai ser ocupado pelo Supremo. O Congresso vai ter que agilizar seu processo decisório.

Para Luís Roberto Barroso, professor de direito da Uerj e advogado atuante no STF, a falta de regulamentação de artigos não significa a ineficiência da Constituição. Ele acredita que os tópicos mais importantes já estão em vigor:


- Não acho que coisas verdadeiramente importantes deixaram de ser regulamentadas.

Já o ministro do STF Carlos Ayres Britto, atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), acredita que a falta de regulamentação de artigos constitucionais é a chave de muitas mazelas brasileiras. Para ele, os integrantes da Assembléia Constituinte erraram quando previram a regulamentação posterior, por lei complementar, de tantos dispositivos.

- Se a Constituição fosse auto-aplicável nessa matéria da participação nos lucros, no crescimento, no desenvolvimento das empresas, acho que o Brasil estaria melhor - avalia.

Omissão ajuda fichas-sujas

Este ano, Ayres Britto, na função de presidente do TSE, tentou tocar numa dessas feridas levantando, entre seus colegas, a polêmica sobre candidatos condenados em instâncias inferiores ou que respondem a ações judiciais. Ayres queria impedir candidaturas desse tipo de político, mas não convenceu a maioria dos colegas. Esbarrou no artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição, ainda não regulamentado pelo Congresso. Segundo esse dispositivo, uma lei complementar deveria estabelecer casos de inelegibilidade, "a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições". Em 1990, o Congresso aprovou a Lei das Inelegibilidades 64, mas muitas lacunas permaneceram.

Além de declarar a omissão do Congresso, o STF foi além: chegou a dar um ultimato para que os parlamentares regulamentassem um dos artigos da Constituição. A Emenda Constitucional 15, de 1996, estabeleceu que a criação de novos municípios deveria obedecer a parâmetros de uma lei complementar. Essa lei nunca foi votada pelo Congresso. Em maio do ano passado, num julgamento, o STF considerou irregulares as cidades criadas após a edição da emenda e fixou um prazo de 18 meses (que termina em novembro) para que o Congresso aprovasse a lei sobre o tema. O tribunal também fixou um prazo de 24 meses (que expira em abril de 2009) para que os municípios possam sobreviver sem a lei.

Hoje, a existência de 57 cidades brasileiras depende de uma atitude do Congresso - o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, já avisou que não cumprirá o prazo. E o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, já descartou a possibilidade de estender o prazo ao Congresso:

- Se o Congresso não colocar em votação, os municípios serão considerados inconstitucionais e desaparecerão.

O ministro do STF Ricardo Lewandowski defende a regulamentação da Constituição, ressaltando que a decisão da Corte vale apenas até que o Congresso aprove a lei exigida.

- A decisão é provisória, vale até o Congresso legislar - diz Lewandowski, evitando criticar a demora dos parlamentares. - Todos esses temas são complexos.

O ministro Eros Grau também não quis bater de frente com os parlamentares quanto à demora na regulamentação:

- O Congresso sabe o que faz. Não cabe a nós dizer se está demorando ou não.

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