domingo, 5 de outubro de 2008

Em constante mutação, carta reflete o país

Carolina Brígido
DEU EM O GLOBO


Praticamente a metade do texto aprovado em 1988 foi modificada ao longo dos anos através de emendas


BRASÍLIA. A Constituição que está hoje em vigor é um livro bem diferente do que foi concebido pelos 559 congressistas em 1988. Como uma colcha de retalhos, o texto vem sendo cortado e costurado ao longo dos últimos 20 anos. Dos 246 artigos da obra original, 115 foram modificados por emendas aprovadas pelo Congresso Nacional. Outros quatro foram acrescentados no final. Ou seja: já foram alterados 46,7% da Carta aprovada há duas décadas. A parte das disposições transitórias - um conjunto de regras com tempo definido de validade - tinha 72 artigos. Cinco deles foram alterados por emendas e outros 23, acrescentados.

Apesar de tantas mudanças, ministros do Supremo Tribunal Federal, a Corte guardiã da Constituição, ressaltam que as partes mais importantes foram mantidas e, portanto, o espírito do texto original permanece.

- A essência da Constituição se encerra nos artigos 1º , 3º e 170. Ali são afirmados os princípios fundamentais, e eles permanecem intactos. O que houve foram mudanças pontuais. A espinha dorsal permanece intacta - analisa o ministro Eros Grau.

Lewandowski: "É uma Constituição dinâmica"

Os trechos mencionados pelo ministro foram poupados das reformas e enumeram, como pilares da sociedade brasileira, conceitos como a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político. Os artigos também listam como objetivos do país a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e regionais, além do fim de qualquer forma de preconceito.

O Congresso também manteve na Carta os direitos fundamentais, como a igualdade entre homens e mulheres e a livre manifestação de pensamento e expressão. Esses trechos são considerados a essência da Constituição. E, como direitos e garantias individuais, são cláusulas pétreas - ou seja, não podem ser modificadas, mesmo que os parlamentares quisessem.

O presidente do Supremo, ministro Gilmar Mendes, concorda com Eros. No entanto, explica que as emendas sofridas pela Constituição fizeram do Brasil um país mais privatizado, menos dependente do Estado.

- É claro que a ordem econômica sofreu uma alteração significativa, porque o modelo econômico era outro, fortemente estatizante. E agora, especialmente a partir do governo Fernando Henrique, há um modelo muito mais privatista, ou muito mais influenciado por uma concepção liberal - afirma.

Ricardo Lewandowski, também integrante do Supremo, faz a mesma avaliação. Como mudanças mais marcantes trazidas pelas emendas, ele ressalta a redução do Estado, com a privatização de serviços públicos, e o fim do monopólio sobre o petróleo:

- É uma Constituição dinâmica, que pode e vem sendo atualizada. Tivemos muitas emendas porque a constituição foi promulgada num momento de transição. Foi preciso adaptar o texto aos novos tempos. Antes, tínhamos uma Constituição mais nacionalista, onde o Estado tinha prevalência um pouco maior. Talvez seja necessário que o Estado retome um pouco as rédeas e assuma mais responsabilidades no plano da economia e da sociedade.

Congresso tem hoje 1.441 emendas tramitando

Celso de Mello, o mais antigo ministro do STF, vê com naturalidade as mudanças na Constituição ao longo dos anos.
- A Constituição é um corpo vivo e está em processo de constante mutação - define.

Menos de quatro anos após a Constituição ter ficado pronta veio a primeira emenda, aprovada pelos parlamentares em 31 de março de 1992. O texto trata da remuneração de deputados estaduais e vereadores. A última emenda editada foi a de número 56, de dezembro passado, prorrogando o prazo de vigência das disposições transitórias. E não deve parar por aí: atualmente, tramitam no Congresso 1.441 projetos de emenda constitucional, dos quais 972 aguardam votação na Câmara e 469, no Senado. O ímpeto reformista do Congresso se acentuou em 2000, quando sete emendas constitucionais foram promulgadas.

Diante de tantas mudanças, o ministro do STF Marco Aurélio Mello costuma dizer, em tom de piada, que a Constituição é um periódico, sempre com um novo volume a ser publicado:

- As emendas não chegaram a descaracterizar a Constituição, mas implicaram esperanças vãs quanto a dias melhores. E eles virão quando voltarmos os olhos para a educação e o cumprimento das leis.

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