Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Obra da coligação entre o destino e o calendário, a Constituição do Brasil redemocratizado faz 20 anos em dia de eleição - um dos raros momentos em que a atividade política desfruta de algum prestígio popular.
Posar juntas na fotografia de aniversário faz bem para as duas, política e Constituição, alvos constantes de críticas - algumas justas, boa parte injusta, outras até insuficientes -, ambas, porém, fiadoras do regime de liberdades.
Melhor ainda para a democracia seria se nessas duas décadas tivessem caminhado no mesmo ritmo, sem o descompasso entre os avanços conquistados pelo País desde a promulgação da nova Carta, em 5 de outubro de 1988, e a estagnação dos meios e modos da política ao molde dos velhos manuais.
O voto ainda é obrigatório, o sistema eleitoral deforma a representação, os partidos sobrevivem em função das benesses do Estado e, por isso, vivem de costas para a sociedade. A esperteza é celebrada como um grande atributo, enquanto a boa conduta é vista como coisa de gente tola. Quando não hipócrita.
A reforma de verdade não se faz e as alterações nas leis são meras adaptações para atender aos interesses eleitorais dos mais fortes de ocasião. Entra eleição sai eleição, nada se debate de essencial. Os candidatos desfilam suas performances, trocam uns desaforos e o resto fica por conta das pesquisas e da publicidade.
E para não dizer que tudo é só paralisia, podemos registrar também alguns retrocessos: a transformação do baixo clero na elite do Congresso, a submissão total dos políticos ao governismo de resultados - expresso tanto no fisiologismo quanto no oportunismo -, a reverência ao populismo, o retorno ao coronelismo agora atuante sob a forma de “currais” do crime organizado e a desvalorização do embate de idéias.
O contraditório foi substituído pelo consenso fabricado, sob o equivocado raciocínio de que a concordância é produto do senso democrático e a divergência só assalta os espíritos contaminados por vocações golpistas.
O deserto, porém, não é só de idéias. Há muito poucos políticos novos no cenário e nenhum que ouse caminhar contra a corrente dos ensinamentos políticos tidos como inamovíveis.
Nada disso é responsabilidade do perfil institucional do País desenhado na Carta de 88. Se culpa há, na opinião do jurista Célio Borja, deve ser atribuída, sobretudo, aos comportamentos desviantes e às cabeças conduzidas por pensamentos arcaicos.
“Nossa cultura política é proporcional ao nível cultural de nossos dirigentes que, incapazes de engendrar soluções satisfatórias, partem para a comunicação teatral pagando tributo a idéias velhas e dogmas superados”, diz, em análise feita especialmente para o caderno 20 Anos de Constituição, publicado na quinta-feira pelo Estado.
Autor da emenda que convocou a Assembléia Nacional Constituinte eleita em 1986, Célio Borja considera a Constituição brasileira uma das melhores - senão a melhor - do mundo em termos de declarações de direitos individuais.
“Ela consagra valores que a democracia cultiva, de uma forma única entre as constituições modernas.” Para ele, os críticos do excessivo detalhismo da Carta têm razão - “deveria ser mais enxuta” -, mas lembra que o fenômeno é comum a todas as Constituições feitas depois da Primeira Guerra Mundial.
“Resultado da necessidade de se proteger a sociedade do arbítrio do Estado, do reconhecimento de novos direitos sociais e da atuação de grupos de pressão.” Nada, segundo ele, que não possa ser corrigido com o tempo e sem grandes mistérios: por meio de emendas, como se faz no mundo todo.
“Constituições não podem ser intocáveis”, pondera, citando justamente a americana, sempre lembrada como o exemplo de perenidade. “É um mito. A Suprema Corte vem interpretando a Constituição dos Estados Unidos praticamente todo santo dia.”
Célio Borja defende todos os avanços da Constituição brasileira ao mesmo tempo em que identifica na política um fator de atraso. Prega a reforma, mas começaria pelo mais difícil: o desmonte da fonte atual de alimentação dos partidos, acabando logo de início com os cargos de confiança.
“Se você despartidariza a administração, tira deles a principal ferramenta de trabalho e, com isso, obriga os partidos a se sintonizarem com o povo e a buscarem sua força na sociedade.”
Na visão do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e ex-presidente da Câmara dos Deputados, feito isso, tudo o mais viria por gravidade, a começar pela mudança do sistema eleitoral “louco”, pelo qual “você vota num candidato e elege outro”.
Pois é, mas como fazer isso se os políticos têm o controle sobre a mudança das regras, mas não têm interesse em alterá-las?
“Só tem um jeito: com uma liderança capaz de enfrentar a questão e de convencer a sociedade a aderir.”
Alguém no horizonte?
“Ninguém. O único com capacidade de comunicação é o Lula, mas, infelizmente, ele não compreende essa realidade.”
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Obra da coligação entre o destino e o calendário, a Constituição do Brasil redemocratizado faz 20 anos em dia de eleição - um dos raros momentos em que a atividade política desfruta de algum prestígio popular.
Posar juntas na fotografia de aniversário faz bem para as duas, política e Constituição, alvos constantes de críticas - algumas justas, boa parte injusta, outras até insuficientes -, ambas, porém, fiadoras do regime de liberdades.
Melhor ainda para a democracia seria se nessas duas décadas tivessem caminhado no mesmo ritmo, sem o descompasso entre os avanços conquistados pelo País desde a promulgação da nova Carta, em 5 de outubro de 1988, e a estagnação dos meios e modos da política ao molde dos velhos manuais.
O voto ainda é obrigatório, o sistema eleitoral deforma a representação, os partidos sobrevivem em função das benesses do Estado e, por isso, vivem de costas para a sociedade. A esperteza é celebrada como um grande atributo, enquanto a boa conduta é vista como coisa de gente tola. Quando não hipócrita.
A reforma de verdade não se faz e as alterações nas leis são meras adaptações para atender aos interesses eleitorais dos mais fortes de ocasião. Entra eleição sai eleição, nada se debate de essencial. Os candidatos desfilam suas performances, trocam uns desaforos e o resto fica por conta das pesquisas e da publicidade.
E para não dizer que tudo é só paralisia, podemos registrar também alguns retrocessos: a transformação do baixo clero na elite do Congresso, a submissão total dos políticos ao governismo de resultados - expresso tanto no fisiologismo quanto no oportunismo -, a reverência ao populismo, o retorno ao coronelismo agora atuante sob a forma de “currais” do crime organizado e a desvalorização do embate de idéias.
O contraditório foi substituído pelo consenso fabricado, sob o equivocado raciocínio de que a concordância é produto do senso democrático e a divergência só assalta os espíritos contaminados por vocações golpistas.
O deserto, porém, não é só de idéias. Há muito poucos políticos novos no cenário e nenhum que ouse caminhar contra a corrente dos ensinamentos políticos tidos como inamovíveis.
Nada disso é responsabilidade do perfil institucional do País desenhado na Carta de 88. Se culpa há, na opinião do jurista Célio Borja, deve ser atribuída, sobretudo, aos comportamentos desviantes e às cabeças conduzidas por pensamentos arcaicos.
“Nossa cultura política é proporcional ao nível cultural de nossos dirigentes que, incapazes de engendrar soluções satisfatórias, partem para a comunicação teatral pagando tributo a idéias velhas e dogmas superados”, diz, em análise feita especialmente para o caderno 20 Anos de Constituição, publicado na quinta-feira pelo Estado.
Autor da emenda que convocou a Assembléia Nacional Constituinte eleita em 1986, Célio Borja considera a Constituição brasileira uma das melhores - senão a melhor - do mundo em termos de declarações de direitos individuais.
“Ela consagra valores que a democracia cultiva, de uma forma única entre as constituições modernas.” Para ele, os críticos do excessivo detalhismo da Carta têm razão - “deveria ser mais enxuta” -, mas lembra que o fenômeno é comum a todas as Constituições feitas depois da Primeira Guerra Mundial.
“Resultado da necessidade de se proteger a sociedade do arbítrio do Estado, do reconhecimento de novos direitos sociais e da atuação de grupos de pressão.” Nada, segundo ele, que não possa ser corrigido com o tempo e sem grandes mistérios: por meio de emendas, como se faz no mundo todo.
“Constituições não podem ser intocáveis”, pondera, citando justamente a americana, sempre lembrada como o exemplo de perenidade. “É um mito. A Suprema Corte vem interpretando a Constituição dos Estados Unidos praticamente todo santo dia.”
Célio Borja defende todos os avanços da Constituição brasileira ao mesmo tempo em que identifica na política um fator de atraso. Prega a reforma, mas começaria pelo mais difícil: o desmonte da fonte atual de alimentação dos partidos, acabando logo de início com os cargos de confiança.
“Se você despartidariza a administração, tira deles a principal ferramenta de trabalho e, com isso, obriga os partidos a se sintonizarem com o povo e a buscarem sua força na sociedade.”
Na visão do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e ex-presidente da Câmara dos Deputados, feito isso, tudo o mais viria por gravidade, a começar pela mudança do sistema eleitoral “louco”, pelo qual “você vota num candidato e elege outro”.
Pois é, mas como fazer isso se os políticos têm o controle sobre a mudança das regras, mas não têm interesse em alterá-las?
“Só tem um jeito: com uma liderança capaz de enfrentar a questão e de convencer a sociedade a aderir.”
Alguém no horizonte?
“Ninguém. O único com capacidade de comunicação é o Lula, mas, infelizmente, ele não compreende essa realidade.”
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