quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A democracia, afinal, ‘pegou’

Luiz Weis
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Parece fora de dúvida que existe uma relação de causa e efeito entre a melhora das condições de vida do povo nos últimos anos e a adesão recorde à democracia, registrada pelo Datafolha na mais recente de suas sondagens sobre o regime preferido pelos brasileiros. Hoje são 61% os que consideram a democracia a melhor forma de governo, sempre. Para 19% tanto faz e apenas 11% acham que “às vezes” a ditadura pode ser uma boa.

Quando o instituto começou a pesquisar o assunto, em 1989, pouco antes da primeira eleição direta para presidente em três décadas, os democratas eram 43%. Nos anos seguintes, o índice ganhou um punhado de pontos, mas só a partir de 2003 passaria a representar a maioria absoluta das opiniões. Os resultados eram ainda mais desencorajadores na série do instituto chileno Latinobarómetro, indicando que o apreço dos brasileiros pela democracia era um dos mais baixos no continente.

“A população se deu conta de que a democracia política pode gerar democracia social”, interpreta o historiador José Murilo de Carvalho, citado pela Folha de S.Paulo. “Os pobres estão percebendo que o voto pode alterar positivamente a política pública e não apenas gerar vantagens individuais.” O argumento bate com o andar dos números. Foi entre os que só cursaram o ensino fundamental e entre aqueles com renda de até cinco salários que o apoio à democracia aumentou para valer: de 49% para 56% no primeiro caso e de 53% para 61% no segundo.

Fosse isso e nada mais, talvez não houvesse muito a comemorar. Se a preferência pelo regime só dependesse do estado do bolso de cada qual, não teria cabimento considerar consolidada na sociedade a democracia como valor político. Mas é exatamente a firmeza de sua implantação que a pesquisa atesta. Sim, muita gente pode ter ficado “mais democrata” por entender que, graças ao voto, elegeu um presidente que fez a vida melhorar. Essa talvez não seja, porém, a principal explicação para a boa nova.

A sua face mais visível é a incorporação do voto - a primeira palavra que ocorre a 11 em cada 10 pessoas quando se lhes pergunta o que entendem por democracia - aos usos e costumes nacionais. Desde 1992, a cada dois anos o brasileiro sai de casa para escolher do prefeito ao presidente, do vereador ao senador. E se pegou gosto pela coisa é por ter-se dado conta, com o passar das eleições, de que o jogo é à vera: apesar de todas as lambanças, o sistema funciona.

Essa percepção se cristalizou a ponto de, pela primeira vez, a maioria se declarar favorável ao voto obrigatório. São 53% os seus defensores - chegando, não está claro por quê, a 60% na população que vive com até dois salários mínimos e a 59% entre os mais jovens. De toda maneira, se o ato de votar fosse visto antes como um encargo do que como um direito - e, principalmente, uma oportunidade -, o voto facultativo continuaria prevalecendo na série iniciada pelo Datafolha em 1994.

Mas por que “o sistema funciona”? Porque, tudo indica, tem raízes fundas na cultura política nacional. Desde o Império, as elites decidiram e se habituaram a tirar a limpo as suas diferenças nas urnas - embora tardasse uma eternidade até que elas se tornassem limpas, competitivas, regulares e universais. Voto censitário, a bico de pena, de cabresto, restrito, indireto, manipulado, roubado, o que se queira, o fato é que só durante o Estado Novo, de 1937 a 1945, não houve eleições no Brasil. Nem nos 21 anos da ditadura militar o voto popular foi de todo abolido.

Cientistas políticos chamam isso de “institucionalização do sufrágio como mecanismo preferencial de resolução da disputa política”. Pode soar pedante, mas pouca coisa não é - e basta olhar em volta para entender o quanto é incomum essa tradição brasileira, com todos os seus vícios, deformações e adulteração da vontade da maioria. O padrão predominante na história da América Latina é o da institucionalização da força, não do voto, como mecanismo preferencial, etc., etc.

Às vezes é constrangedor lembrar que o Brasil não conheceu período de estabilidade democrática tão prolongado como este, que começou quando o último dos generais de 1964, aquele que preferia cheiro de cavalo ao do povo, saiu pelos fundos do Palácio do Planalto, em 1985. Ainda assim, um luxo, comparado com a folha corrida dos vizinhos, salvo as luminosas exceções do Uruguai (à parte Bordaberry), Chile (à parte Pinochet) e Costa Rica (à parte ninguém).

Ainda não é tudo. Contrastando com a vizinhança, são raros os episódios em que forças políticas brasileiras apostaram em atirar o povo contra as instituições para chegar lá ou lá se manter.

Quem são os equivalentes nacionais de Hugo Chávez, Evo Morales, Rafael Correa, senhor e senhora Kirchner e, leva jeito, Fernando Lugo? E aqui se percebe o logro embutido nas acusações que governo e oposição têm trocado entre si. Ainda bem que elas não resistem a um sopro de realidade.

A direita passou a vida e a atual temporada no deserto chamando Lula e o PT de populistas.
Poderiam ter sido, num universo paralelo, mas nunca foram neste em que se vive. O maior partido popular da história brasileira, com todas as suas toneladas de denúncias retóricas contra “isso que está aí”, quando o seu líder máximo ainda estava ali, e apesar dos arreganhos de festim do “Fora FHC”, jogou invariavelmente a cartada democrática, a da via eleitoral, como se falava quando a esquerda imaginava que pudesse haver outra, não menos legítima.

Lula, é verdade, acusava o Congresso de abrigar “300 picaretas”. Para fechá-lo? Ou para eleger mais companheiros? Mas o que fez o lulismo depois que entraram em cena, pela ordem, o mensalão e o dossiê? Acusou a oposição (e a mídia) de golpista, sabendo que não tinha bala na agulha, muito menos vontade de sacar para ver. Afinal, o próprio pefelê, saído das entranhas da ditadura, entrou no jogo democrático e hoje se chama “Democratas”.

Luiz Weis é jornalista

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