Cláudio Gonçalves Couto
DEU NO VALOR ECONÔMICO
O imbróglio em torno da concessão do asilo político ao ex-guerrilheiro italiano, Cesare Battisti, condenado à prisão perpétua em seu país, assumiu nos últimos dias tons mais dramáticos e, ao mesmo tempo, ares de ópera bufa. A dramaticidade ficou por conta da convocação para consultas do embaixador italiano no Brasil - um ato diplomático que se toma em momentos de tensão entre duas nações, como demonstração de grave contrariedade. Já o lado bufão foi-nos propiciado pelo Sr. Alfredo Mantica, subsecretário italiano de Relações Exteriores, que como forma de retaliação tentou anular o amistoso entre os selecionados de futebol dos dois países, marcado para o dia 10 de fevereiro; mas felizmente alguém foi mais sensato e não perderemos esse grande jogo.
Num momento próximo o governo Lula deverá avaliar se valeu a pena todo o desgaste que este episódio provocou ao relacionamento com um parceiro como a Itália - país democrático e com profundos laços estabelecidos conosco, particularmente em decorrência do profundo imbricamento cultural que a imigração italiana nos proporcionou. Estragos como este não se consertam também com alegações que apresentam meras constatações de fatos como se fossem justificativas políticas. Neste sentido, não foi das mais felizes a afirmação, feita pelo presidente Lula, de que a concessão do asilo foi um ato soberano do Brasil, cuja aceitação seria a única alternativa disponível aos italianos. Ainda mais porque um dos principais argumentos que o ministro Tarso Genro utilizou para embasar sua decisão de concessão do asilo foi uma crítica ao funcionamento dos sistemas judicial e político italiano: Battisti não teria tido condições de se defender adequadamente por vícios de processo e pelo clima político na Itália à época em que foi julgado. Ora, este tipo de arrazoado é uma evidente intromissão em assuntos internos da Itália e, portanto, um desrespeito à sua soberania. Quer dizer que nosso ministro da Justiça pode avaliar a qualidade da justiça e da democracia italianas, mas a Itália deve aceitar passivamente nossas decisões soberanas? Tanto pior diante do reconhecimento, pelo próprio ministro Genro, de que a Itália é um Estado democrático de direito. Caso não fosse, talvez tivéssemos justificativas para a concessão do asilo, pois haveria aí uma assimetria no tratamento que regimes distintos - um, democrático; outro, não - concedem a seus cidadãos.
Todavia, o debate político não se encerrou na discussão sobre o caso específico de Battisti. Diante das críticas, o ministro da Justiça, Tarso Genro, saiu-se com esta explicação:
- No momento em que a grande bandeira do neoliberalismo sucumbiu, que era a nossa submissão total ao capital financeiro e às suas necessidades desregulamentadoras, os próprios promotores e ideólogos desse modelo precisavam de um outro argumento para fazer oposição e se apegaram nesse do Battisti. Não é de pasmar que 99% dessas pessoas defendem impunidade para os torturadores. As mesmas pessoas são favoráveis que se entregue o senhor Battisti, mesmo o Brasil não tendo entregue outras pessoas que estavam na mesma situação - acrescentou. (http://oglobo.globo.com, 26/01/2009).
Aqui o ministro mistura várias coisas e, para piorar, recorre a uma falácia clássica, o argumento "ad hominem" - aquele que busca desqualificar as idéias proferidas pelo contendor num debate em função do pertencimento dele a um grupo, pelas suas convicções ou simplesmente por ele ser quem é. No caso, as críticas à sua decisão seriam viciadas porque proferidas por neoliberais. Será mesmo? Seriam também neoliberais os membros do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) que não recomendaram a concessão do asilo? E o procurador-geral da República?
Também é problemática a comparação que Genro estabelece com a defesa da não-punição de torturadores que estariam protegidos pela Lei da Anistia, cuja revisão é defendida pelo ministro. Tarso Genro compara coisas distintas: no caso de Battisti, houve o uso de violência na vigência de um Estado democrático de direito e a condenação daquele que a usou na vigência desse mesmo Estado. No caso dos torturadores do regime militar autoritário, houve um processo de transição para a democracia que teve como peça chave um pacto, que concedeu anistia aos que usaram da violência dos dois lados do conflito; rever esta lei agora seria trair esse pacto. Portanto, defender simultaneamente a punição a Battisti e a preservação da anistia aos torturadores (assim como aos que pegaram em armas contra o regime autoritário) significa defender o respeito a regras democráticas e a pactos políticos que permitiram a democratização. Isto não tem a ver nem com "neoliberalismo" (idéia fora do lugar nesta discussão), nem com uma idéia de justiça parcial - "aos amigos tudo, aos inimigos a lei".
É também inaceitável o argumento do ministro Genro, de que a concessão do asilo a Battisti segue a mesma lógica dos anteriormente concedidos aos paraguaios Alfredo Stroessner e Lino Oviedo, envolvidos respectivamente com uma ditadura longeva e com atos de violência política.
Em primeiro lugar porque, em ambos os casos, a concessão do asilo obedecia aos interesses estratégicos brasileiros, de receber a ambos como forma de facilitar a pacificação política do país vizinho. Em segundo lugar porque, se por acaso essas concessões de asilo tivessem se dado de forma condenável (proteção a quem cometeu crimes contra a humanidade), não caberia justificar a atual concessão do resguardo a Battisti com base nelas. Tanto mais difícil de aceitar a decisão do ministro da Justiça se consideramos seu histórico recente: lembremos o tão mal explicado episódio dos boxeadores cubanos, que após pedir asilo teriam mudado de idéia e pedido para regressar a seu país, mas pouco tempo depois fugiram de Cuba para a Alemanha, tendo lá declarado que foram forçados pelas autoridades brasileiras a voltar para Cuba. Em quem deveríamos acreditar nesse outro episódio?
Por estas razões, e para além do prejuízo diplomático que este episódio acarreta, fica difícil acreditar que os critérios do ministro Genro sejam outros que não a distinção dos que cometem atos de violência por estarem à direita ou à esquerda. Aos torturadores direitistas da ditadura militar, mesmo que anistiados num pacto de transição, cabe a punição; ao guerrilheiro esquerdista Battisti, mesmo que tendo violentado uma democracia, cabe o perdão. De que justiça se trata?
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da PUC-SP e da FGV-SP.
DEU NO VALOR ECONÔMICO
O imbróglio em torno da concessão do asilo político ao ex-guerrilheiro italiano, Cesare Battisti, condenado à prisão perpétua em seu país, assumiu nos últimos dias tons mais dramáticos e, ao mesmo tempo, ares de ópera bufa. A dramaticidade ficou por conta da convocação para consultas do embaixador italiano no Brasil - um ato diplomático que se toma em momentos de tensão entre duas nações, como demonstração de grave contrariedade. Já o lado bufão foi-nos propiciado pelo Sr. Alfredo Mantica, subsecretário italiano de Relações Exteriores, que como forma de retaliação tentou anular o amistoso entre os selecionados de futebol dos dois países, marcado para o dia 10 de fevereiro; mas felizmente alguém foi mais sensato e não perderemos esse grande jogo.
Num momento próximo o governo Lula deverá avaliar se valeu a pena todo o desgaste que este episódio provocou ao relacionamento com um parceiro como a Itália - país democrático e com profundos laços estabelecidos conosco, particularmente em decorrência do profundo imbricamento cultural que a imigração italiana nos proporcionou. Estragos como este não se consertam também com alegações que apresentam meras constatações de fatos como se fossem justificativas políticas. Neste sentido, não foi das mais felizes a afirmação, feita pelo presidente Lula, de que a concessão do asilo foi um ato soberano do Brasil, cuja aceitação seria a única alternativa disponível aos italianos. Ainda mais porque um dos principais argumentos que o ministro Tarso Genro utilizou para embasar sua decisão de concessão do asilo foi uma crítica ao funcionamento dos sistemas judicial e político italiano: Battisti não teria tido condições de se defender adequadamente por vícios de processo e pelo clima político na Itália à época em que foi julgado. Ora, este tipo de arrazoado é uma evidente intromissão em assuntos internos da Itália e, portanto, um desrespeito à sua soberania. Quer dizer que nosso ministro da Justiça pode avaliar a qualidade da justiça e da democracia italianas, mas a Itália deve aceitar passivamente nossas decisões soberanas? Tanto pior diante do reconhecimento, pelo próprio ministro Genro, de que a Itália é um Estado democrático de direito. Caso não fosse, talvez tivéssemos justificativas para a concessão do asilo, pois haveria aí uma assimetria no tratamento que regimes distintos - um, democrático; outro, não - concedem a seus cidadãos.
Todavia, o debate político não se encerrou na discussão sobre o caso específico de Battisti. Diante das críticas, o ministro da Justiça, Tarso Genro, saiu-se com esta explicação:
- No momento em que a grande bandeira do neoliberalismo sucumbiu, que era a nossa submissão total ao capital financeiro e às suas necessidades desregulamentadoras, os próprios promotores e ideólogos desse modelo precisavam de um outro argumento para fazer oposição e se apegaram nesse do Battisti. Não é de pasmar que 99% dessas pessoas defendem impunidade para os torturadores. As mesmas pessoas são favoráveis que se entregue o senhor Battisti, mesmo o Brasil não tendo entregue outras pessoas que estavam na mesma situação - acrescentou. (http://oglobo.globo.com, 26/01/2009).
Aqui o ministro mistura várias coisas e, para piorar, recorre a uma falácia clássica, o argumento "ad hominem" - aquele que busca desqualificar as idéias proferidas pelo contendor num debate em função do pertencimento dele a um grupo, pelas suas convicções ou simplesmente por ele ser quem é. No caso, as críticas à sua decisão seriam viciadas porque proferidas por neoliberais. Será mesmo? Seriam também neoliberais os membros do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) que não recomendaram a concessão do asilo? E o procurador-geral da República?
Também é problemática a comparação que Genro estabelece com a defesa da não-punição de torturadores que estariam protegidos pela Lei da Anistia, cuja revisão é defendida pelo ministro. Tarso Genro compara coisas distintas: no caso de Battisti, houve o uso de violência na vigência de um Estado democrático de direito e a condenação daquele que a usou na vigência desse mesmo Estado. No caso dos torturadores do regime militar autoritário, houve um processo de transição para a democracia que teve como peça chave um pacto, que concedeu anistia aos que usaram da violência dos dois lados do conflito; rever esta lei agora seria trair esse pacto. Portanto, defender simultaneamente a punição a Battisti e a preservação da anistia aos torturadores (assim como aos que pegaram em armas contra o regime autoritário) significa defender o respeito a regras democráticas e a pactos políticos que permitiram a democratização. Isto não tem a ver nem com "neoliberalismo" (idéia fora do lugar nesta discussão), nem com uma idéia de justiça parcial - "aos amigos tudo, aos inimigos a lei".
É também inaceitável o argumento do ministro Genro, de que a concessão do asilo a Battisti segue a mesma lógica dos anteriormente concedidos aos paraguaios Alfredo Stroessner e Lino Oviedo, envolvidos respectivamente com uma ditadura longeva e com atos de violência política.
Em primeiro lugar porque, em ambos os casos, a concessão do asilo obedecia aos interesses estratégicos brasileiros, de receber a ambos como forma de facilitar a pacificação política do país vizinho. Em segundo lugar porque, se por acaso essas concessões de asilo tivessem se dado de forma condenável (proteção a quem cometeu crimes contra a humanidade), não caberia justificar a atual concessão do resguardo a Battisti com base nelas. Tanto mais difícil de aceitar a decisão do ministro da Justiça se consideramos seu histórico recente: lembremos o tão mal explicado episódio dos boxeadores cubanos, que após pedir asilo teriam mudado de idéia e pedido para regressar a seu país, mas pouco tempo depois fugiram de Cuba para a Alemanha, tendo lá declarado que foram forçados pelas autoridades brasileiras a voltar para Cuba. Em quem deveríamos acreditar nesse outro episódio?
Por estas razões, e para além do prejuízo diplomático que este episódio acarreta, fica difícil acreditar que os critérios do ministro Genro sejam outros que não a distinção dos que cometem atos de violência por estarem à direita ou à esquerda. Aos torturadores direitistas da ditadura militar, mesmo que anistiados num pacto de transição, cabe a punição; ao guerrilheiro esquerdista Battisti, mesmo que tendo violentado uma democracia, cabe o perdão. De que justiça se trata?
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da PUC-SP e da FGV-SP.
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