O ano de 2012 terminou de maneira um tanto quanto confusa na política brasileira. Já em meados de setembro até o fim de outubro, com a conjugação do período eleitoral nos municípios ao julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Penal 470 (o chamado mensalão), fortes emoções haviam sido experimentadas pela parcela politicamente engajada da população. Contudo, episódios ainda mais intensos e potencialmente explosivos acabariam ocorrendo de novembro a dezembro do ano findo. Em primeiro lugar, o STF decide por maioria que a condenação no processo do mensalão implica a imediata perda do mandato dos réus donos de cadeiras no parlamento. Tal decisão é tomada em meio a um posicionamento firme de diversos parlamentares, incluindo-se o presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia, de não acatar qualquer sugestão de extinção de mandato que não seja oriunda das próprias Casas Legislativas. Logo em seguida, a presidente Dilma Rousseff acaba por vetar parcialmente a nova lei dos royalties, aprovada após longas idas e vindas da Câmara para o Senado e vice-versa. Pressão exercida por grande parte das bancadas estaduais e líderes partidários faz com que o plenário do Congresso Nacional, no qual as duas fazem sessão conjunta, vote maciçamente pela urgência em se apreciar o veto à lei, sobrestando infindável lista de vetos antepostos pelo Executivo a decisões do Legislativo desde o governo Itamar Franco e que não haviam ainda merecido consideração por esta última Casa. Parlamentares de Estados produtores apelaram ao STF sob a alegação de que não existiria a figura da "urgência" para a votação de vetos, significando que a apreciação dos vetos parciais à nova lei dos royalties somente poderia ser feita após a manifestação do plenário a respeito dos mais de 3 mil ainda a espera de alguma decisão.
Decisão sobre mandatos é a que pode gerar crise
A princípio estaríamos diante de dois impasses institucionais importantes, impasses, ademais, a envolver ator até recentemente pouco visível no embate político mais duro: o Judiciário e, dentro deste, seu órgão máximo, o Supremo Tribunal Federal. Digo a princípio porque existem boas razões para crer que apenas a questão envolvendo os mandatos parlamentares pode de fato redundar em impasse institucional. Invertamos a ordem de ocorrência e consideremos em primeiro lugar o episódio federativo. De que forma interpretar o papel exercido pelo juiz Luiz Fux ao determinar que o Congresso deveria apreciar todos os vetos "engavetados" antes de se passar à derrubada dos vetos à lei dos royalties? Ora, minorias representadas no parlamento apelaram ao Supremo alegando existir vícios constitucionais em iniciativas da maioria, vícios que, uma vez não sanados, comprometeriam interesses essenciais dessas mesmas minorias. Não custa lembrar que a ação de vetar é tomada pelo Executivo, por seu representante máximo, no caso, a presidente Dilma Rousseff, eleita pela maioria absoluta dos votos dos brasileiros. Ou seja, a decisão do magistrado envolve um conflito entre o Executivo e Legislativo, e no interior do próprio Legislativo, entre maiorias e minorias eventuais, sobre a constitucionalidade de decisões tomada pela maioria. O juiz, no caso, entendeu que a maioria atropelou direitos e procedimentos, elementos fundamentais do processo democrático. O que houve no episódio, portanto, não caracterizou de forma alguma intromissão na dinâmica parlamentar. Envolveu sim um debate entre os Poderes, ao STF cabendo a responsabilidade de dirimir dúvidas a respeito da interpretação do texto constitucional, tendo em vista preservar direitos e interesses essenciais de minorias.
Bem distinta é a situação criada a partir do segundo episódio, a que envolve a perda de mandatos populares. Tal episódio, na verdade, é decorrência de um processo mais longo e tortuoso cuja face visível se dá no julgamento do mensalão, isto é, num contexto no qual os juízes se tornam avaliadores da conduta legal de políticos eleitos. Desnecessário discutir se no caso específico a decisão em torno da culpabilidade dos réus foi ou não acertada, dadas as provas apresentadas, as teorias mobilizadas etc... O interessante é analisar a natureza da relação que se estabeleceu entre os atores políticos e a percepção que estes desenvolveram sobre a sua função. Ora, no caso do mensalão uma inesperada relação de hierarquia acabou surgindo da prerrogativa dos juízes do Supremo de julgarem o comportamento dos representantes do povo. Em várias falas, os juízes assumiram mais do que a tarefa de ajuizar se houve ou não culpa dos réus, ao advogarem para si ajuizar sobre a moralidade da conduta dos réus enquanto representantes. Vejam que a relação de hierarquia entre os poderes, com a predominância do Judiciário, é necessária para a validação do papel autoassumido por boa parte dos juízes. Segundo a teoria subjacente a esta autopercepção, pelo fato de ser juiz, e mais, juiz do Supremo, o ator adquire condições morais e conhecimentos técnicos necessários para avaliar, e avaliar de maneira infalível, a boa ou má conduta dos políticos eleitos, Destituir mandatos nada mais seria do que o desdobramento lógico de tal teoria e de tal autopercepção.
Dos dois casos, somente o segundo encerra potencial de efetivo impasse institucional. Torna-se relevante então saber se a judicialização da política tem no Brasil extrapolado o campo do diálogo entre os Poderes, na interessante acepção de Thamy Pogrebinschi, para adentrar o perigoso terreno de teorias salvacionistas. Na democracia, o soberano é apenas um, o eleitor. E este não deve ser tutelado por ninguém, por nenhuma corporação, por mais bem intencionados e eruditos que sejam seus membros. Clarear a política brasileira em 2013, portanto, significa mais do que buscar soluções para impasses entre Judiciário e Legislativo, aparentes ou genuínos. Significa, sobretudo, definir até onde pode o Judiciário intervir no âmbito da representação política.
Fabiano Santos é cientista político, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Fonte: Valor Econômico
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