sábado, 9 de agosto de 2014

Cláudio Couto: Escandalizados pelo óbvio

- O Estado de S. Paulo

Uma grande celeuma se produziu por conta do acerto feito entre parlamentares petistas na CPI da Petrobrás, membros do Poder Executivo e diretores da empresa estatal, acerca das perguntas que lhes seriam dirigidas na Comissão Parlamentar de Inquérito. Os depoentes teriam sido não só informados sobre as perguntas da CPI, como também submetidos a um coaching, visando prepará-los para responder aos questionamentos dos senadores. O motivo do escândalo é simples: os investigadores deixaram de cumprir seu papel como tais, pois deixaram vazar para os investigados perguntas que supostamente deveriam lhes causar embaraços, de modo a desvelar eventuais malfeitos cometidos na petroleira.

Diante do alvoroço, rapidamente se puseram a oposição a bradar acusações, a presidente a dizer que isso é assunto do Legislativo e o presidente do Senado a asseverar que haveria diligências. Por detrás de tudo, uma suposição singela: Executivo e Legislativo são poderes independentes e, portanto, instrumentos parlamentares de investigação - como CPIs - não podem contar com a intromissão de membros do Poder Executivo. Será que é assim mesmo?

A moderna teoria clássica da separação dos poderes de Estado remonta ao século 17, tendo sido originalmente esboçada por John Locke (filósofo inglês, pai do liberalismo político) e depois aperfeiçoada, já na primeira metade do século 18, pelo barão de Montesquieu (filósofo francês, também liberal). Um aprimoramento fundamental dessa teoria foi promovido pelos federalistas norte-americanos, ao final do século 18, que lhe acrescentaram a noção de freios e contrapesos do poder (checks and balances). De acordo com ela, os ramos de governo não são completamente separados, mas sobrepõem-se parcialmente, de modo que um possa controlar o outro. A fiscalização parlamentar de atos do Executivo é uma das situações em que os freios e contrapesos são postos em funcionamento.

Ocorre, contudo, que, à época da formulação dessas teorias clássicas, inexistiam os partidos políticos, ao menos da forma como hoje os conhecemos. Os partidos eram vistos como facções perniciosas ao bem comum, sendo que o filósofo conservador britânico Edmund Burke foi o primeiro a defendê-los doutrinariamente, já na segunda metade do século 18.

Antes que os partidos fossem amplamente aceitos, muito tempo passou, e a política partidária propriamente dita só começou a ganhar corpo no mundo ocidental cem anos depois, a partir da segunda metade do século 19. Fortaleceu-se na primeira metade do século 20 e tornou-se indissociável da democracia de massas em sua segunda metade.

A política partidária subverteu a separação clássica dos poderes, unindo o que estava separado. Um mesmo partido, ao ocupar posições no Executivo e no Legislativo, funciona de forma coesa através das fronteiras formais dos ramos do Estado. Não é à toa que, para evitar a partidarização do Judiciário, seus membros são normalmente escolhidos por critérios outros que não a disputa partidária, mantendo assim sua independência. O mesmo vale para órgãos públicos que, num Estado democrático de direito, devem preservar sua autonomia - como a polícia, o Ministério Público, a auditoria fiscal etc.

Onde prevalece a política partidária, a lógica da separação formal dos poderes foi substituída por outra: a da contraposição entre oposição e governo. Assim, a fiscalização parlamentar do Executivo ocorre quando a oposição a faz. Por isso mesmo, CPIs são por excelência instrumentos das minorias - ou seja, das oposições. Se uma oposição abdica da participação numa CPI, deixa aos partidos da base governamental a incumbência de fiscalizarem a si mesmos. Ora, mas quem poderia, de verdade, fiscalizar a si próprio? Não se poderia esperar nada diferente do que aconteceu. Estamos a nos escandalizar com o óbvio.

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