Historiadores Sheila Fitzpatrick e Jean-Jacques Marie têm trabalhos lançados no ano do centenário da Revolução
Marcelo Godoy | O Estado de S. Paulo / Aliás
As grande rupturas na história permanecem raras e escrever sobre elas jamais é um ato neutro ou inocente. Sheila Fitzpatrick é uma historiadora consciente das armadilhas que seu ofício reserva aos que o escolhem. Uma delas está ligada à necessidade ou não de cortar a história em períodos e como fazê-lo. É este o principal desafio lançado por essa australiana, que frequentou o St Antony’s College, de Oxford, e se tornou uma das maiores especialistas na antiga União Soviética, em seu livro A História da Revolução Russa. Após três décadas de omissão, a obra de Sheila chega atualizada ao Brasil pela editora Todavia.
No último livro de sua obra – A História Deve ser Dividida em Pedaços? –, o francês Jacques Le Goff escreveu que “os períodos têm, por consequência, uma significação particular; na própria sucessão, na continuidade temporal ou, ao contrário, na ruptura que essa sucessão evoca, eles constituem um objeto de reflexão essencial para o historiador”. Diante da raridade das rupturas, Le Goff descreve o “modelo habitual” para a periodização histórica, a longa duração, como “aquele que é mais ou menos longo, com a mais ou menos profunda mutação”. Sheila estuda assim um desses eventos raros na história, cuja primeira vida parecia indicar uma grande ruptura: a Revolução Russa.
E sua obra é marcada por esse desafio: circunscrever o tempo da Revolução. Sheila escolheu o período 1917-1938 como o período revolucionário. Nos anos de Stalin, até o Grande Terror (1937-1938), Sheila vê a conclusão do processo iniciado em 1917. É a revolução pelo alto, iniciada pelo georgiano em 1929, com a coletivização do campo, a rápida industrialização e a eliminação da oposição ao regime. Só depois o regime soviético teria entrado no período pós-revolucionário. A questão é das mais difíceis enfrentadas pelos historiadores. Há quem veja o início do processo revolucionário em 1905 e seu término no Grande Terror. A maioria, porém, circunscreve a revolução ao período de 1917 a 1921, quando é concluída a vitória bolchevique na Guerra Civil.
Para Sheila, o tema das classes sociais é importante para a compreensão do fenômeno histórico até porque “seus participantes-chave o percebiam como tal”. Por fim, a historiadora analisa a violência do período e o terror, cujo principal objetivo era destruir os inimigos da revolução e remover os obstáculos para a mudanças sociais. Sua obra não traz as mutações mais ou menos profundas e mais ou menos longas na vida das pessoas e nas mentalidades. Esse não era seu objetivo.
Sheila começou a pesquisar a história da União Soviética nos anos 1960 e se tornou próxima do grupo que dirigia o jornal Novy Mir. Por enquanto, algumas das principais obras da historiadora – Everyday Stalinism, The Commissariat of Enlightenment (sobre Anatoli Lunacharski) e o Stalin's Peasants – permanecem sem edição no País. Crítica do marxismo, ela diz que a revolução teve duas vidas – a primeira quando era presente e objeto do escrutínio de cientistas políticos. A segunda quando se tornara história. Para Sheila, o significado da Revolução “permanecerá fortemente disputado na Rússia em seu primeiro centenário e depois”.
Guerra Civil. Sheila enfrenta seu objeto de estudo com uma abordagem original e sóbria. De fato, não se encontra em Sheila aquele estilo ou construção intelectual que tornam a história um objeto vulgar a pretexto de fazê-la mais atraente ao leitor comum. Não é esse ainda o caso de outro autor publicado no Brasil nesse ano do centenário de 1917: o historiador francês Jean-Jacques Marie.
Faltam, porém, a Marie a vivacidade e a originalidade de Sheila. Jean-Jacques constrói seu História da Guerra Civil Russa com uma forte presença de relatos de combatentes – falta-lhe a dimensão do povo, o cheiro dos mortos nos povoados abandonados, o rumor das assembleias, o caos econômico e demográfico. Sua pesquisa é extensa, apesar de o livro não trazer notas para esclarecer fontes bibliográficas e documentais.
Jean-Jacques é simpático aos bolcheviques, o que não lhe impede de dar a dimensão da guerra. Primeiro em relação à sua amplitude – cerca de 4,5 milhões de mortos. Depois em relação aos grupos combatentes e suas composições sociais. Por fim, mostra como a fortuna esteve ao lado dos vermelhos, não como resultado do terror ou da violência de brancos, verdes ou vermelhos, mas pela síntese entre a prudência e as armas feita por tantos comandantes bolcheviques que souberam quando era o momento da espada e quando o caminho era o discurso e o convencimento.
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