- O Globo
Ruffo é ruim da cabeça, mas se recusa a tomar remédio porque acha que, se não fosse a sua obsessão, não seria o policial que é. Bota obsessão nisso. Ele recolhe os sacos de lixo de um antigo desafeto, recompõe páginas passadas em trituradores como se fossem um gigantesco quebra-cabeças e acaba descobrindo um sistema de corrupção que corrói o país de alto a baixo, e que levará seus colegas investigadores aos gabinetes mais importantes da República. Ruffo não participará da caçada como policial da ativa porque, assim que o conhecemos, está em vias de ser afastado da operação e aposentado por invalidez — mas é a sua luta que estará em cena, de ponta a ponta.
Ele se queixa amargamente do salário, diz reiteradas vezes que tudo o que conseguiu na vida foi um carro de segunda mão e um sítio no interior e, quando é encostado, passa a receber R$ 2.950 por mês. Ainda que a realidade de muitos aposentados seja essa, é difícil imaginar um policial federal nessa situação: eles não ganham mal e, até outro dia, tinham aposentadoria integral.
Ficção é ficção, e este é só um detalhe do roteiro de “O mecanismo”, mas é nesse tipo de detalhe que, em geral, tropeça a dramaturgia brasileira. “O mecanismo”, como até os meus gatos já sabem, e as pedras da calçada se cansaram de ouvir, é a nova série da Netflix baseada na Lava-Jato, criada e dirigida por José Padilha, escrita por Elena Soárez e odiada de maneira desproporcional por quem, pelo visto, se escandaliza mais com palavras num vídeo do que com ações criminosas na vida real. A ideia em relação ao personagem é mostrar um homem atormentado, levado pelas circunstâncias ao auge do desespero, mas tenho a impressão de que haveria outras maneiras de justificar o seu estrangulamento financeiro e o abismo de bens materiais que existe entre ele e o doleiro que persegue.
Ruffo poderia ser um jogador compulsivo, por exemplo, ou poderia ter uma dívida insanável no cartão de crédito; poderia ter uma família enorme, ou monstruosas despesas médicas com a filha única que, segundo a trama, tem necessidades especiais. Mas poderia, de preferência, ter um problema que nem eu nem você conseguimos imaginar, porque é de se esperar que roteiristas surpreendam o público.
O diabo mora nos detalhes, e “O mecanismo” seria indiscutivelmente melhor se prestasse atenção a esse velho ditado. Uma ficção baseada em fatos reais não tem a obrigação de ser um documentário, mas é tanto melhor quanto mais se atém ao que é sabido. É divertido ver a futura “presidenta” já preocupada em estocar vento, porque nos lembramos da frase e rimos ao vê-la antecipada no tempo, mas ver a fala famosa de Jucá dita por Lula quebra o contrato com os fatos. Para uma plateia internacional não faz diferença, mas a frase é famosa demais no Brasil, e mudá-la de boca apenas confunde a narrativa para gerar um ruído que, no fim das contas, não quer dizer nada.
Mas só: também não é cavalo de batalha que baste para a guerra movida contra Padilha, contra a Netflix e, por tabela, contra os atores que participaram da produção — e que, agora, enfrentam o ódio de uma patrulha feroz e estúpida (como costumam ser as patrulhas). A série funciona bem como thriller policial, mas não muito mais que isso. Há desequilíbrio entre os episódios e tramas paralelas desnecessárias, vistas aéreas demais, falas pomposas que tentam se impor como diálogos inteligentes. Ainda assim a produção é altamente profissional e conta com um grande elenco. Há cenas ótimas e uma, pelo menos, antológica — na prisão em Curitiba, João Pedro Rangel, o diretor da Petrobrasil, recebe uma boa notícia e vai até as grades da cela para comunicá-la, aos berros, aos demais detentos:
— A gente vai sair daqui! Vai todo mundo embora! Foi pro Supremo! Estamos livres, pessoal!
Todos gritam, festejam, pulam de alegria. Vemos a explosão de entusiasmo na tela de controle das câmeras de segurança, num quadriculado de celas onde os presos se esbaldam.
Alguns momentos entre João Pedro Rangel e sua mulher se destacam particularmente, porque dão aos personagens uma complexidade que, de modo geral, se perde no maniqueísmo raso que separa bons e maus. Quase um “Globo Repórter”: corruptos também amam, corruptos também têm netos, o que fazem, o que comem, como vivem? Leonardo Medeiros e Carla Ribas, os atores, estão excelentes nos seus papéis.
Enrique Díaz, que faz Roberto Ibrahim, o Alberto Youssef da vida real, tem um dos melhores papéis, e faz por merecê-lo. Selton Mello e Caroline Abras, como o atormentado Ruffo e a sua colega Verena, também estão muito bem.
Vale assistir. Confesso que não teria me interessado pela série se não fosse a propaganda da esquerda, um desses tiros pela culatra espetaculares que tanto têm se repetido no nosso cenário cultural — “Queermuseu”, exposição local que ganhou projeção internacional graças à intolerância, que o diga. Sobram pitis de todos os lados, faltam maturidade e bom senso. Não é uma série de televisão que vai desonrar a política brasileira e os seus principais personagens; é o que ela é, e o que eles são, o que eles fizeram e continuam fazendo. O país desmanchando pelas costuras e o povo cancelando Netflix.
Eu morro e não vejo tudo.
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