domingo, 17 de fevereiro de 2019

Bernardo Carvalho*: O antimito

- Ilustríssima / Folha de S. Paulo

Esquerda precisa incorporar espírito trágico para romper com alucinação coletiva

Pode ser uma tentação combater um populismo com outro. O caminho parece curto e natural, mas leva sempre aos piores equívocos.

O problema das artes contemporâneas não são os intelectuais (um dos bodes expiatórios preferidos dos populismos), mas o oposto do que se espera de uma atividade reflexiva: sua redução a convenções e proposições aceitáveis, ilustrações do lugar-comum, reprodução de discursos mais ou menos domesticados e consensuais.

Intelectual de esquerda, crítico e professor emérito de história da arte na Universidade da Califórnia em Berkeley, o inglês T.J. Clark entende que há de fato um problema com as esquerdas hoje, mas não o identifica a um elitismo nas artes.

No recém-publicado “Heaven on Earth – Painting and the Life to Come” (“o céu na Terra – a pintura e a vida por vir”), ele analisa obras de Giotto, Brueghel e Picasso, entre outros, para tentar compreender a encrenca política em que nos metemos.

Um dos fatores da crise estaria na tendência natural de não querermos ser contrariados, exacerbada até as raias do infantilismo pela combustão inédita de elementos psicossociais e tecnologia digital nas últimas décadas, da qual os populismos de direita souberam tirar o melhor proveito.

Clark se pergunta por que as desigualdades sociais e econômicas do capitalismo dos últimos 40 anos desembocaram em movimentos de direita e políticas de ressentimento. A resposta, segundo ele, estaria na recusa não só do público mas da própria esquerda em encarar as contradições.

O crítico vai buscar na pintura a representação silenciosa de um mundo com os pés no chão, menos vulnerável às promessas e aos ideais dos discursos épicos e religiosos nos quais hoje estamos enredados.

Clark mostra que, mesmo na Idade Média, quando o poder da religião era hegemônico e imperativo, a pintura de Giotto ainda assim representava na sua mudez o espaço da dúvida, da desconfiança e da descrença, o mundo terreno contra as idealizações celestes.

O elemento trágico, com os desejos e fracassos de corpos submetidos à gravidade, contradiz as promessas heroicas do discurso épico.

As consequências do narcisismo suicida (a indiferença pelo real e pelo outro na obstinação em realizar suas vontades) promovido a modelo por esse discurso estão representadas no destino trágico de Ícaro, pintado tanto por Brueghel como por Picasso.

É esse espírito trágico (um materialismo desencantado, capaz de encarar as contradições e os limites do real) que as esquerdas precisam incorporar se quiserem romper com o processo de infantilização e de fantasia consumista que caracteriza o neoliberalismo e hipnotiza o público numa espécie de alucinação coletiva, cuja cegueira e desamparo foram sintetizados entre nós no clamor patético por um “mito” nas últimas eleições.

A consciência do trágico não implica passividade ou inação, mas o desencanto necessário para o amadurecimento político e civilizatório, para a desmitificação, para podermos voltar a encarar os fatos e agir de acordo, como adultos, em vez de ficar à mercê da “pós-verdade” de supostos heróis e justiceiros. “A voz trágica é obrigada a deixar a adolescência para trás. (...) O mundo trágico é um mundo de ação”, escreve Clark.

A “pós-verdade”, como já diz o nome, nada tem a ver com a simples mentira. Na mentira ainda há uma preocupação com a verdade. A revelação da verdade desmonta a mentira.

Na “pós-verdade”, verdade e contradição estão imobilizadas pelo excesso, por um bombardeio de versões contraditórias e informações desencontradas. A verdade já não tem nenhum valor ou poder, está perdida entre tantos discursos improváveis que, ao contrário dela, dispensam os fatos.

A “pós-verdade”, assim como o neoliberalismo em geral, está baseada em agradar, nunca contrariar. Ela depende de um receptor cúmplice e crédulo, mas ao mesmo tempo impermeável a tudo o que o contradiz, como o narcisista.

Nesse sentido, talvez ela seja apenas um mecanismo de autodefesa, a contrapartida natural do movimento suicida de uma espécie que acelera para o fim e que, impotente, não conseguindo revertê-lo, tampouco tem condição de encarar suas causas.

Nesse caso, estaria explicada a infantilização, a regressão expressa pela ilusão de uma perspectiva alternativa à verdade, uma perspectiva de sobrevida mágica diante dos fatos e do inevitável, a promessa de um céu (de uma salvação) que a arte insiste em contrariar com a representação da terra, com a profanação dos consensos e das sacralizações, pela qual acaba demonizada.

*Bernardo Carvalho, romancista, autor de "Nove Noites" e "Simpatia pelo Demônio".

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