- Folha de S. Paulo
Com a pandemia e a crise ficou claro que governar jamais foi objetivo desse grupo
Em recente artigo sobre a pandemia, o filósofo político David Runciman, professor da Universidade de Cambridge, sugere que nos últimos tempos nossas escolhas políticas fundamentais parecem ter se resumido a “duas formas rivais” de governos tecnocráticos.
De um lado, há o modelo chinês, onde prevalece um governo de engenheiros, sob a tutela e de um partido único. Já no ocidente, temos governos dominados por economistas e banqueiros, operando sob a sombra de instituições liberais.
Onde, no entanto, a desconfiança nas instituições políticas ou a eficácias dos tecnocratas entrou em declínio, o populismo tem surgido de maneira cada vez mais frequente como uma alternativa as duas formas de tecnocracia que nos fala Runciman.
O populismo, como já mencionei nesse espaço, é uma espécie de síndrome política, que floresce da desconfiança nas instituições e se nutre da sua destruição. Populistas, por definição, não se submetem à racionalidade tecnocrática, às determinações do partido único e muito menos às condicionantes das instituições democráticas.
Em algumas circunstâncias extremas, populistas autocráticos negam a própria essência da política que, desde sua origem, está associada à criação da ordem e coordenação pacífica de conflitos. Não necessariamente uma ordem liberal ou democrática, mas simplesmente ordem pacífica.
Quando isso ocorre, a política se transveste numa guerra. Para o jurista conservador Carl Schmitt, que colaborou com o nazismo em sua origem, a essência da política não é a competição eleitoral voltada ao exercício de um governo submetido à constituição, mais sim uma relação “amigo-inimigo”, em que o objetivo fundamental a ser perseguido pelo líder é a eliminação daquele que é colocado na condição de inimigo.
Nesses casos a ação política deixa de estar voltada ao exercício do governo e à imposição da ordem e adota o conflito como método e o caos como meta.
O objetivo de criar instabilidade, abrindo assim oportunidade para a instalação de um regime de arbítrio.
A escalada de ataques e ameaças às instituições da democracia constitucional brasileira por parte do bolsonarismo, sua inapetência para o exercício das funções básicas de governo, assim como uma insidiosa tentativa de induzir a entrada das Forças Armadas em uma nova aventura autoritária, demonstram sua afinidade com essa concepção corrompida da política.
Com o agravamento da pandemia e da crise econômica ficou claro que governar jamais foi objetivo desse grupo, seja por meio de uma racionalidade tecnocrática, seja através da coordenação política institucional. Da mesma forma, o aprofundamento das investigações sobre grupos radicais que apoiam o governo e de sua perigosa proximidade com grupos milicianos, deveriam ascender os alertas máximos de todos aquele que têm compromisso com a democracia e preocupação com o bem comum.
É lamentável que um conjunto de militares, em grande parte da reserva, mas também nas polícias estaduais, não percebam isso e se deixem utilizar como um biombo de proteção por uma liderança muito mais interessada em promover a anomia do que em exercer legitimamente as atribuições de governo que lhe foram conferidas pelo voto.
Felizmente nosso sistema de freios e contrapesos, os meios de comunicação e setores cada vez mais amplos da sociedade, não têm se deixado intimidar por ameaças soturnas. Quem estica a corda é quem ameaça as instituições, não quem as defende.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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