segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Marcus André Melo* - A geografia do voto

- Folha de S. Paulo

O argumento de realinhamento político regional não se sustenta

A geografia do voto é fonte recorrente de erros interpretativos. Discute-se o voto no Nordeste como se ele tivesse um DNA político. O mito do momento é o do Nordeste vermelho. No Brasil Império, o Nordeste sequer existia no léxico político: na narrativa política o país era dividido em Norte e Sul.

Entre nós nunca ocorreu conflitos como nos EUA, em que o Norte e Sul travaram uma guerra sangrenta, que marcou a política e moldou o sistema partidário. Enquanto o partido republicano continua homogêneo, o partido democrata até o início dos 60 era uma coalizão de duas facções: elites conservadoras sulistas (anti-yankee) e de setores de perfil social variado, das grandes áreas metropolitanas.

Apenas na década de 70 (em resposta à chamada Estratégia Partidária para o Sul) os congressistas sulistas conservadores —que apoiaram Nixon e Reagan— reconfiguraram a identidade e migraram para o Partido Republicano. Daí derivou um alinhamento entre identidade racial e partidária: o sulista branco finalmente vira republicano. O regionalismo míngua. A polarização ganha forte impulso.

Nada remotamente parecido aconteceu entre nós, onde a mudança reflete apenas a economia e demografia. Até 1889, Bahia e Pernambuco detinham as maiores bancadas na Câmara dos deputados (14 e 13, respectivamente) depois de Minas Gerais (20), maiores que São Paulo (9) ou Rio de Janeiro (12). Em 1860, Alagoas e Paraíba tinham cinco representantes; Rio Grande do Sul, quatro, e o Paraná apenas 1, de um total de 116. Em 1960, a geografia da representação já havia se alterado radicalmente: São Paulo (53) passa a deter seis vezes mais representantes que Alagoas (9). Mas a Constituição de 46 proibiu os partidos estaduais.

A grande transformação nos últimos 20 anos é a ascensão política do Centro-Oeste. Se o Nordeste como narrativa política foi inventado nos anos 20 e 30, seu auge ocorreu entre os anos 50 e 70. Sua morte foi lenta a partir dos anos 90. Não há mais região, mas estados: a Bahia, o Ceará...

Fatores puramente contingentes —a Era Lula, governos estaduais petistas mais recentemente— produziram a irrupção esporádica da narrativa regional. É claro que lealdades estaduais (mais que regionais) não desapareceram: o voto em Marina no Acre, em Lula em Pernambuco, Ciro no Ceará.

A popularidade crescente de Bolsonaro põe em xeque o mito do Nordeste vermelho. Trata-se apenas de menor velocidade de penetração do nome na região e do qualunquismo que já analisei neste espaço.

Bolsonaro era conhecido no Rio de Janeiro e São Paulo, não o era no Nordeste. Se a crítica a este mito estiver correta, podemos prever expressiva expansão do bolsonarismo na região.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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