segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Lena Mucha - Ultradireita exporta teses conspiratórias

Na Europa, teoria americana seduz antissemitas e mesmo cidadãos que só eram contra quarentena

The New York / O Estado de S. Paulo

 No início da pandemia, quando milhares de soldados americanos começaram as manobras da Otan na Alemanha, Atila Hildmann fez uma pesquisa no Youtube para ver do que se tratava. Rapidamente encontrou vídeos postados por seguidores alemães do Qanon.

Na narrativa do Qanon, este não foi um exercício da Otan. Foi uma operação secreta do presidente Donald Trump para libertar a Alemanha do governo da chanceler Angela Merkel – algo que eles aplaudiram. “O movimento Qanon disse que essas são as tropas que vão libertar o povo alemão de Merkel”, disse Hildmann, uma celebridade de culinária vegana que não tinha ouvido falar do Qanon. “Espero muito que o Qanon seja real.”

Nos EUA, o Qanon já evoluiu de uma subcultura marginal da internet para um movimento de massa popular. Mas a pandemia está alimentando as teorias da conspiração para além das costas americanas, e o Qanon está se espalhando como metástase também na Europa.

Grupos surgiram da Holanda aos Bálcãs. Na Grã-bretanha, protestos fazendo referência ao Qanon sob a bandeira de “Salvem nossas crianças” ocorreram já em mais de 20 cidades e vilarejos, atraindo um grupo demográfico mais feminino e menos de direita. Mas é na Alemanha que o Qanon parece ter feito as incursões mais profundas. Com o que é considerado o maior número de seguidores – cerca de 200 mil – no mundo que não fala inglês, ele rapidamente tem conquistado audiência no Youtube, Facebook e no aplicativo de mensagens Telegram.

“Os influenciadores e grupos de extrema direita foram os primeiros a impulsionar agressivamente o Qanon”, diz Josef Holnburger, cientista de dados que acompanha o Qanon na Alemanha. As autoridades estão perplexas porque uma teoria da conspiração aparentemente maluca a respeito de Trump lutando contra um “Estado Profundo” de satanistas e pedófilos ressoou na Alemanha.

Questionado a respeito dos perigos do Qanon, o serviço federal de inteligência doméstica alemão respondeu com uma declaração dizendo que “tais teorias de conspiração podem se transformar em um perigo quando a violência antissemita ou violência contra funcionários políticos é legitimada com uma ameaça do ‘Estado Profundo’.”

A mitologia e a linguagem que o Qanon usa – de alegações de assassinato de crianças para rituais a fantasias de vingança contra as elites liberais – evocam antigos tropos antissemitas e fantasias de golpe que há muito tempo animam a extrema direita alemã. Esses grupos estão tentando aproveitar a popularidade viral da teoria para atingir um público mais amplo.

O Qanon está atraindo uma combinação ideologicamente incoerente de oponentes da vacina, teóricos marginais e cidadãos comuns que dizem que a ameaça da pandemia é exagerada e as restrições do governo injustificadas.

Até alguns meses atrás, Hildmann era popularmente conhecido apenas por seu restaurante e livros de culinária e como convidado em programas de culinária na televisão. Mas com 80 mil seguidores no Telegram, ele se tornou um dos amplificadores mais importantes do Qanon na Alemanha.

A teoria da conspiração Qanon surgiu nos EUA em 2017, quando um usuário com pseudônimo afirmou ter acesso ao nível mais alto de acesso a informações confidenciais dos EUA – o Q – começou a enviar mensagens criptografadas no fórum de mensagens 4Chan.

Para historiadores e especialistas em extremismo de extrema direita, o Qanon é um fenômeno muito novo e muito antigo.

A ideia de uma elite sugadora de sangue e sem raízes que abusa e até come crianças é uma reminiscência da propaganda medieval sobre judeus bebendo o sangue de bebês cristãos, disse Miro Dittrich, um especialista em extremismo de extrema direita da Fundação Amadeu Antonio, com sede em Berlim. “É a versão do século 21 do libelo de sangue”, disse Dittrich. “A ideia de uma conspiração global das elites é profundamente antissemita. ‘Globalistas’ é um código para judeus.”/ Tradução de Romina Cácia

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