O
que diz a lei não vale para todos
Não
convidem para dividir a mesma mesa os ministros Marco Aurélio Mello e Luiz Fux
do Supremo Tribunal Federal. Nem Fux e os ministros Gilmar Mendes e Dias
Toffoli. Jamais os ministros Gilmar e Marco Aurélio. Gilmar e Marco Aurélio,
por querelas antigas que quase resultaram em troca de socos.
Fux
detestou o acordo feito pelo presidente Jair Bolsonaro com Gilmar e Toffoli em
torno da indicação do desembargador Kassio Nunes Marques para a vaga no Supremo
aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello. Falta ao “nosso Kassio”
envergadura para tal, ou mesmo currículo confiável.
O
troco veio rápido. Para evitar que Kassio chegue ao tribunal com essa bola toda
e blindar a Lava Jato contra seus futuros votos, Fux sugeriu devolver ao
plenário o poder de julgar ações penais que era repartido entre a Primeira e a
Segunda Turma, cada uma delas formada por cinco ministros. Sugestão dada,
sugestão aceita.
No
último fim de semana, explodiu o conflito entre Marco Aurélio e Fux por causa
de uma decisão do primeiro revogada em tempo recorde pelo segundo. Marco
Aurélio mandou soltar o traficante André do Rap, um dos líderes do Primeiro
Comando da Capital (PCC). Fuz revogou a ordem do colega.
Quem
tem razão? Marco Aurélio e Fux têm razão, a levarem-se em conta os argumentos
esgrimidos para justificar uma e a outra coisa, e esse é o nó da questão. Marco
Aurélio baseou-se em novo trecho do artigo 316 do Código de Processo
Penal, incluído após a aprovação do pacote anticrime aprovado no Congresso em
2019.
O
novo trecho diz que o juiz precisa reavaliar a prisão preventiva a cada 90 dias
– antes não havia prazo. Como isso não foi feito no caso de André do Rap, e sua
defesa bateu às portas do Supremo, Marco Aurélio libertou-o. Desconfia a
polícia paulista que o traficante fugiu para o Paraguai e que será difícil
recapturá-lo.
Fux
entendeu que o traficante deveria continuar preso porque é de “comprovada e
altíssima periculosidade, com dupla condenação em segundo grau por tráfico
transnacional de drogas, investigado por participação de alto nível hierárquico
em organização criminosa e com histórico de foragido por mais de 5 anos”.
Marco
Aurélio partiu para cima de Fux: “Ele assumiu a postura de censor. Eu não sou
superior a ele, mas também não sou inferior”, disse. “Atuo segundo o direito
posto pelo Congresso Nacional e nada mais. Evidentemente não poderia olhar a
capa do processo e aí adotar um critério estranho a um critério legal”.
Presidente
do Supremo há menos de um mês, Fux não quis polemizar com Marco Aurélio. Mas
disse a pessoas que com ele, ontem, conversaram que viu “perigo” na tese do seu
colega que beneficiou o traficante, pois se ela vingasse, “inúmeros réus
perigosos acabariam sendo soltos”. Sobrou para quem?
Para
o Congresso. Em sua defesa, saiu Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara.
Ele não descartou revisão na lei que amparou a decisão de Marco Aurélio, mas
afirmou que a falha foi do Ministério Público que deveria ter renovado o pedido
de prisão preventiva do traficante em um prazo de 90 dias, e não o fez.
O
Brasil tem mais de 773 mil presos provisórios, informou em fevereiro deste ano
o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Preso provisório é aquele
cuja prisão foi decretada com o intuito de garantir que o acusado passe por um
processo penal com amplo direito de defesa antes de ser sentenciado em
definitivo.
São
quase todos jovens, pobres, negros e mulatos. Somam algo como 40% do total de
encarcerados em 2,6 mil cadeias de presídios e delegacias. A maioria está
trancada há pelo menos quatro anos à espera da assinatura de um juiz que decida
seu destino. Muitos, desde antes da sentença de primeira instância.
A Constituição assegura “a todos” o direito à “razoável duração do processo” e “a celeridade de sua tramitação”. Na vida real, a história é outra. Ministério Público, juízes e parlamentares sabem disso. A discussão pega fogo quando acontece um caso como o do traficante famoso, mas depois o fogo baixa e tudo fica como está.
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