Jornais
descobriram atalho de confirmar e reforçar as coleções de ideias dominantes no
seu público-alvo
Reza
a sabedoria convencional que o advento das redes sociais provocou a crise
existencial da imprensa em curso. O fenômeno é mais complexo: a crise deve-se,
essencialmente, à resposta adaptativa escolhida pelo jornalismo profissional ao
desafio posto pelas redes.
Diante
da perda dramática de receitas publicitárias, os jornais engajaram-se na
fidelização de leitores ou espectadores. Na batalha de vida ou morte,
descobriram um atalho: falar, preferencialmente, para um segmento da sociedade
definido por certas visões de mundo. Ou, dito de modo diferente, confirmar e
reforçar as coleções de ideias dominantes no público-alvo.
Os veículos de imprensa entregaram-se a alinhamentos ideológicos cada vez mais nítidos. Nos EUA, exemplo icônico, as redes CNN e MSNBC tornaram-se porta-vozes informais das correntes mais liberais (ou seja, à esquerda) do Partido Democrata, enquanto a Fox firmou-se como arauto da ala reacionária do Partido Republicano. A última cresceu numa estridente oposição a Obama. As duas primeiras, assim como o New York Times, obtiveram retumbante sucesso comercial com a denúncia inclemente de Trump. Hoje, sem o “diabo laranja”, indagam-se sobre o rumo a seguir.
O
atalho conduz a uma armadilha fatal. As pautas, os enfoques e a linguagem do
jornalismo profissional tendem a se submeter à lógica discursiva das redes
sociais. A Folha,
que renasceu nos anos 80 com sua adesão ao movimento das Diretas Já!, uma
posição editorial justificada pelo imperativo de reconquista da liberdade de
imprensa, decidira não tomar parte em novas campanhas políticas, já que o
sistema democrático garante a pluralidade de opiniões. Agora, porém, patrocina
a campanha “#Use
amarelo pela democracia”, uma bandeira anti-bolsonarista de forte apelo
no seu leitorado que equivale a desistir de conversar com todos os brasileiros.
“Um
bom jornal é uma nação dialogando consigo mesma” (Arthur Miller). A renúncia a
esse ideal tem amplas consequências jornalísticas, como indicam as
críticas da
jornalista Bari Weiss, que se demitiu do NYT.
Espelho,
espelho meu. As redes sociais alimentam seus seguidores com o discurso que eles
querem ouvir. O jornal capturado por um nicho selecionado de leitores procede
quase da mesma forma. “Toda pressão empurra para publicar mais um artigo sobre
como Trump é um monstro ou um palhaço”, constata Weiss. Ela não gosta Trump,
mas rejeita o tribalismo político dos dois lados: “Cada vez mais, o NYT e
outros veículos mostram uma pequena faixa do país, um mundo como os editores ou
os leitores gostariam que fosse”.
A
pluralidade ideológica dos colunistas de opinião, item no qual a Folha dá um banho no NYT,
não soluciona o problema. A ferida situa-se no núcleo do fazer jornalístico,
não em editoriais apropriadamente duros (mas evitando a pulsão panfletária
expressa em frases como “estupidez
assassina de Bolsonaro”), ou na indispensável denúncia das torrentes de
fake news. O ponto crucial é que o universo da notícia sofre uma compressão e
uma amputação.
O
jornal que pronuncia sermões imita a linguagem do pregador ou do militante —e,
nesse passo, inclina-se a conceder a eles um palanque desproporcional à
influência que exercem. As pautas identitárias extremas saltam da periferia do
debate público —isto é, de obscuros refúgios acadêmicos— para o centro do
palco. A reportagem sujeita a trama factual a uma mensagem apriorística. O
comício deles contagia, infecta, espalha o vírus; a nossa manifestação de
protesto purifica, liberta.
Sermão
é um ato religioso: uma cisão entre “nós” e “eles”. O jornal que só conversa
com os seus inscreve-se na moldura da intolerância discursiva, potencializando
as engrenagens de polarização das redes sociais. Mesmo quando fala sem parar de
amor, saúde, igualdade, solidariedade, justiça e inclusão.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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