sábado, 26 de dezembro de 2020

Jorge Zaverucha* - Cansaço de esperança

- O Globo

É inadmissível que cinco ministros do STF tenham votado para dizer que ‘vedar’ significa ‘não vedar’.

A consolidação democrática é um processo de fortalecimento de instituições e aprofundamento da cultura democrática. Essa consolidação é alcançada quando a democracia se torna tão legítima que passa a ser muito improvável que suas instituições sejam golpeadas. Seja por militares ou por civis.

É difícil definir quando um país consolidou sua democracia. A literatura definia o Chile antes de Pinochet como exemplo de democracia consolidada. Idem para a Venezuela antes de Hugo Chávez e o Brasil antes de Bolsonaro. Três imensos enganos.

O erro brasileiro foi resultante da não desagregação dos componentes que formam um regime democrático. O foco de análise deixaria de ser apenas o componente eleitoral. A ênfase passaria a ser na contemplação de como as diferentes instituições de uma democracia funcionam. Há avanços — como nas eleições —, mas também existem retrocessos institucionais no Brasil. Portanto, é preciso distinguir governo democrático de regime democrático. Regime é um conceito mais amplo. Envolve instituições que não são submetidas ao crivo eleitoral. Como o STF.

É inadmissível que cinco ministros do STF tenham votado para dizer que “vedar” significa “não vedar”. Menos mal que o “golpe branco” foi evitado, mas o placar deveria ter sido 11 a zero. Ou melhor, o assunto não precisaria nem ter sido aceito para discussão. Lembrando que, em setembro de 2020, a senadora Rose de Freitas apresentou Proposta de Emenda à Constituição para permitir a reeleição dos presidentes do Senado e da Câmara. O STF parece não querer ser apenas o guardião da Carta Magna, mas o próprio Constituinte. Vale a pena essa Corte funcionar nestes moldes?

As estrepolias não são de hoje. Nelson Jobim, quando foi constituinte, alterou o texto da futura Constituição de 1988 sem o conhecimento de seus pares. Isso não o impediu de se tornar ministro da Justiça e, posteriormente, ministro e presidente do STF. Há leis no Brasil, mas inexiste um governo da lei (Estado de Direito). Duas das características do Estado de Direito se encontram parcialmente ausentes: previsibilidade e igualdade perante a lei. Vige no país um pluralismo jurídico assimétrico. O que prevalece são pequenos grupos com amplos poderes vis-à-vis uma massa de indivíduos desorganizados e impotentes. Estes, quando se unem, como vimos, são capazes de virar um placar adverso.

A doutrina do equilíbrio entre os Poderes afirma ser ele essencial para a democracia. Qualquer instituição, desde o complexo Estado moderno até uma pequena empresa, precisa ter tanto funções claramente definidas como regras respeitadas. É preocupante, para não dizer vergonhoso, que cinco ministros do STF sejam capazes de tergiversar sobre um claro texto constitucional. Em especial, o relator Gilmar Mendes, que foi capaz de escrever um relatório de mais de 60 páginas. Exemplo de malemolência jurídica. Esse ministro preside a comissão de juristas que elabora o anteprojeto de um Código de Processo Constitucional.

Sem esquecer que o ministro Lewandowski já havia rasgado a Constituição ao conferir direitos políticos à “impichada” presidente Dilma Rousseff. E que dizer dos ministros Toffolli e Moraes, que tanto jactam-se de lutar pela defesa da democracia brasileira, contudo votaram por dilacerar a Carta Magna? O voto de Kassio Nunes, candidato de Bolsonaro, retratou o desejo presidencial: reeleição sim de Alcolumbre, mas não de Maia. Outras instituições estão envolvidas neste lamentável evento. Tanto a Procuradoria-Geral da República como Advocacia-Geral da União limitaram-se a dizer que era uma questão interna do Congresso. E a OAB guardou circunspecto silêncio. Com esse tipo de elite fica mais fácil entender João Guimarães Rosa quando mencionou sofrer de “cansaço de esperança”.

*Jorge Zaverucha é doutor em Ciência Política pela Universidade de Chicago e professor titular da UFPE

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