Editoriais / Opiniões
Caixa de problemas
Folha de S. Paulo
Novos depoimentos e investigações reiteram
sofríveis práticas de gestão no banco estatal
Banco estatal que se notabilizou por servir
de aparelho político a sucessivos governos, a Caixa Econômica Federal tem sido
marcada por uma série de despautérios que reiteram suas sofríveis práticas de
gestão e sugerem um ambiente empresarial turvo e propício a irregularidades.
Desde junho, quando se conheceram as acusações de
abuso sexual contra o então presidente da instituição, Pedro Guimarães,
multiplicam-se os depoimentos sobre condutas inaceitáveis do dirigente, relatos
de ameaças internas e indícios de desvios envolvendo despesas custeadas pelo
banco.
Como esta Folha noticiou,
Guimarães, além dos assédios, beneficiou-se de recursos da Caixa para reformar
sua residência e fez turismo de luxo com aluguel de carros blindados e
hospedagem em resorts durante viagens de trabalho.
Em outra frente, o Ministério Público do Trabalho investiga os motivos pelos quais diversos funcionários em topo da carreira foram lotados em agências bancárias e estão sendo subaproveitados.
Só em Brasília, a empresa admite que
ocorreram 123
transferências num intervalo de 90 dias entre o final de 2020 e
o começo de 2021. Reservadamente, funcionários dizem que são alvo de retaliação
por terem ocupado funções de destaque em governos petistas ou por divergências
com a diretoria.
Alguns deles, com salários na faixa de R$
45 mil, foram designados para organizar filas de clientes. A tarefa, aliás,
deixa a nu uma característica perversa do banco, que é o tratamento vergonhoso
e ineficiente dispensado a seus correntistas e aos que necessitam de serviços
ligados ao FGTS, PIS, habitação ou benefícios do governo federal.
Uma demonstração das humilhações impostas a
clientes de baixa renda foi vista na distribuição tumultuada do auxílio
emergencial na pandemia, sob monopólio da Caixa, em sinal de uso político.
De positivo, diante dos percalços,
mencione-se o anúncio de que a corregedoria
do banco deixará de ser subordinada à sua presidência e passará
a ser ligada ao conselho de administração —que reúne, entre outros membros, um
representante dos empregados. A mudança procura contornar as hesitações de
funcionários em buscar o órgão por receio de represálias.
Toda medida adotada com vistas a modernizar
a Caixa merece, obviamente, ser saudada. A questão é saber até que ponto é
possível transformar uma estatal vinculada ao Ministério da Economia, que é
usada por governantes como cabide de emprego para apaniguados políticos e tem
servido de abrigo para esquemas de corrupção.
Não é aceitável que a sociedade continue a
manter uma instituição pública com esse perfil.
Apreensão global
Folha de S. Paulo
Com risco de recessão nos EUA e na Europa,
Brasil terá de lidar com quadro de descontrole fiscal
Com a escalada da inflação e dos juros nos
Estados Unidos e na Europa, num contexto de tensões
geopolíticas em ascensão, crescem os riscos de uma recessão global.
Em paralelo, há dúvidas sobre a atividade na China, que passa por um momento de
desaceleração e crise no mercado imobiliário.
A combinação de fatores negativos nos três
principais motores do mundo torna o cenário especialmente incerto. No tema
inflacionário, as pressões se comparam às da década de 1970, ocasionadas
por duas crises de oferta de petróleo.
No caso americano, que dá o tom para o
mercado financeiro mundial, a inflação acumulada nos doze meses encerrados em
junho chegou a 9,1%, resultado dos choques da pandemia e dos inéditos estímulos
fiscais e monetários, que impulsionaram a demanda além da capacidade de
produção.
Com o desemprego próximo das mínimas
históricas nas duas regiões e altas dos salários acima da produtividade, tem-se
pela primeira vez em décadas o risco de uma espiral inflacionária de difícil
controle. Daí a resposta rápida, ainda que tardia, dos bancos centrais.
Combater a inflação o quanto antes é crucial para evitar uma recessão mais
profunda adiante.
Mas o processo não é indolor. Desde que o
Fed iniciou o ciclo de aperto na política monetária, a expectativa para os
juros disparou, de pouco mais de 1% para 3,5% no final de 2022, com forte queda
dos mercados de títulos públicos, crédito privado e ações —uma perda de capital
de US$ 20 trilhões.
No caso da China, as restrições de combate
à pandemia levaram a um crescimento de apenas 0,4% no segundo trimestre e
parece inalcançável a meta do governo de expandir o PIB em 5,5% neste ano.
Acumulam-se sinais de desaceleração do
consumo e da atividade global. A despeito da guerra, os preços das
commodities já começam a cair. As cotações de metais industriais e
alimentos já recuaram para o patamar do início do ano e até o petróleo caiu
sensivelmente, sinal de menor demanda global.
A combinação de temores recessivos e queda
nos preços das commodities afugenta capital de países emergentes, inclusive o
Brasil.
Neste quadro, o dano na credibilidade da
política econômica ocasionado pela intervenção eleitoreira de Jair Bolsonaro
poderia ter sido evitado. Os preços de combustíveis cairiam de qualquer forma,
mas o país agora terá que lidar com o legado do descontrole fiscal.
Desemprego requer um presidente que
trabalhe
O Estado de S. Paulo
Jair Bolsonaro diz que não é sua tarefa
criar empregos. Mas cabe ao presidente liderar projeto que rompa o ciclo de
baixo crescimento, gerando oportunidades
Em uma conversa com apoiadores no Palácio
da Alvorada, o presidente Jair Bolsonaro tentou se livrar de mais uma das
várias responsabilidades inerentes ao cargo que ocupa. Em um país que apresenta
um crescimento pífio há anos e um nível de qualidade na educação que deixa a
desejar, Bolsonaro disse que cabe aos jovens “correr atrás” de emprego. “Você
tem que correr atrás. Eu não crio emprego. Quem cria emprego é a iniciativa
privada. Eu não atrapalho o empreendedor”, disse. A declaração do presidente,
longe de causar surpresa, segue a linha bolsonarista segundo a qual a culpa por
qualquer problema nunca é dele, sempre dos outros – seja das administrações
petistas, dos governadores ou do Supremo Tribunal Federal (STF). O que chama a
atenção nesse caso em específico é a concepção deformada do presidente sobre o
papel de um governante na construção do futuro do País.
Poucas coisas revelam mais sobre a
profundidade da crise de um país sobre a falta de perspectivas do que o
comportamento dos mais jovens diante do mercado de trabalho. A taxa de
desemprego das pessoas com idade entre 18 a 24 anos atingiu 22,8% no primeiro
trimestre deste ano, o dobro da média da população, de 11,1% no mesmo período,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No segundo
trimestre de 2021, 12,3 milhões de brasileiros de até 29 anos não estudavam nem
trabalhavam, de acordo com estudo da consultoria IDados com base na Pnad
Contínua do IBGE. Buscar um diagnóstico sobre as razões por trás desse fenômeno
crônico e atacar suas dimensões de forma articulada com Estados, municípios e o
setor privado seria uma tarefa urgente para qualquer presidente.
Historicamente, a indústria sempre foi o
setor que mais gerou vagas e que pagou os salários mais altos. Nos últimos
anos, no entanto, o País oscilou entre a fracassada escolha de campeões
nacionais do lulopetismo e a ausência completa de uma política industrial da
administração bolsonarista. Essa ciclotimia, naturalmente, gerou reflexos no
mercado de trabalho. Desde 2011 a indústria acumula o fechamento de 1 milhão de
empregos, segundo a Pesquisa Industrial Anual (PIA) – Empresa 2020, divulgada
pelo IBGE. Mais da metade das vagas fechadas se deu nos setores que mais
empregavam, como vestuário, calçados e produtos de metal. Em contrapartida,
setores dinâmicos e que sobrevivem sem ajuda do governo, como o de tecnologia
da informação, não conseguem encontrar mão de obra especializada. A
digitalização da economia em todos os segmentos da sociedade só aumentou desde
a pandemia de covid-19 e atinge até atividades mais simples ligadas à
agricultura e serviços. Diante da ausência do Estado, muitas empresas têm
tomado para si a tarefa de formar e treinar seus próprios empregados. Nada
disso exime o governo de oferecer aos jovens uma educação de qualidade desde o
ensino básico.
Romper o ciclo de baixo crescimento da
economia demandará uma política que interrompa o processo de
desindustrialização do País e que, em paralelo, priorize a educação e
qualificação dos mais jovens para que os empregos de qualidade a serem gerados
possam ser devidamente ocupados. O empreendedorismo mencionado por Bolsonaro
não salvará a juventude nem o desempenho do PIB, sobretudo um conceito
distorcido sustentado à base de incentivos fiscais, caso da figura do microempreendedor
individual (MEI).
Várias são as responsabilidades de um
governante, e elas são ainda mais desafiadoras em um país tão desigual e com
carências históricas como o Brasil. Chegar à Presidência da República talvez
seja a maior honra para quem escolhe seguir o caminho da vida pública. A recusa
de Bolsonaro em assumir a responsabilidade de governar levanta dúvidas sobre os
reais motivos que o levam a fazer tudo por sua reeleição. Não é por acaso que
os piores índices de aprovação de sua administração estejam justamente entre
mulheres, jovens de baixa renda e menor grau de escolaridade. São elas, também,
as maiores vítimas do desemprego e da falta de perspectivas.
Democracia se ensina na escola
O Estado de S. Paulo
Em contraponto ao avanço do populismo e de lideranças autoritárias no Brasil e no mundo, é preciso que as redes de ensino, mais que nunca, promovam os valores da cidadania
A função da escola vai muito além do ensino
de língua portuguesa, matemática e demais áreas do saber. Em tempos de
tentações autoritárias e de crescente populismo, formar as novas gerações para
o exercício da cidadania passou a ser um renovado desafio nas sociedades
democráticas. No Brasil e no mundo, educadores têm se debruçado sobre o tema,
no esforço de compreender − e de desconstruir − discursos irresponsáveis contra
o Estado Democrático de Direito, além, é claro, de reagir a essa verdadeira
marcha da insensatez.
Em sua coluna do último domingo no Estadão,
a jornalista Renata Cafardo tratou da recente contribuição de um grupo de
professores de universidades europeias. Após analisarem os currículos de 14
países, eles não apenas constataram a necessidade do ensino de cidadania nas
escolas, como sugeriram a criação de uma disciplina específica, com carga
horária própria, a exemplo dos demais componentes curriculares. O objetivo
seria abordar temas como o próprio conceito de democracia, o processo político
e a participação da sociedade civil na definição dos rumos de cada país.
Os referidos professores integram o projeto
Demos − sigla, em inglês, para Democratic Efficacy and the Varieties of
Populism in Europe (Eficácia democrática e as variedades do populismo na
Europa, em tradução livre). Vale notar que a pesquisa analisou currículos de
países como Finlândia, Estônia, França e Bélgica, que têm alto desempenho no
exame internacional da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), o Pisa, que avalia a aprendizagem de ciências, matemática e da
respectiva língua dos estudantes.
Valorizar a cidadania é uma necessidade
imperiosa nos dias de hoje, seja em países em desenvolvimento, como o Brasil,
seja no chamado mundo desenvolvido. “O resultado dessa educação cívica são
jovens com mais interesse por política, menos propensos a ideias populistas e
com fortes valores de equidade, tolerância e autonomia”, escreveu Renata
Cafardo a respeito das conclusões a que chegaram os professores do projeto Demos.
Infelizmente, noções elementares de
organização das sociedades, bem como o pressuposto de que são os governantes
que devem se submeter à lei e não o contrário, vêm sendo questionadas por
líderes populistas e autoritários em diferentes regiões do planeta. É nesse
contexto que ganha força a proposta de que as escolas promovam a cidadania −
entendida aqui como os direitos e os deveres dos indivíduos perante o Estado,
incluindo o direito de participação política, o que pressupõe a liberdade de
expressão e a observância de regras, por todos, para a disputa do poder.
Em outra pesquisa, os professores ligados
ao projeto Demos analisaram os sistemas de ensino de 18 países, destacando a
importância do ambiente escolar para o fortalecimento de valores democráticos.
Nesse sentido, é imperioso que prevaleçam atitudes de acolhimento e cooperação
em contraponto a práticas de bullying e discriminação. Ou seja, a escola
precisa ser um local onde o aluno não apenas se sinta seguro, mas acolhido em
suas diferenças e especificidades. Isso requer o enfrentamento de todo tipo de
preconceito, em razão da origem geográfica, da orientação sexual, da religião,
da cor da pele ou de outras características físicas.
Falar de cidadania nas escolas está longe
de ser novidade. A atual Constituição já definiu, em seu Artigo 205, que a
educação visa “ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Antes dela, gerações de
brasileiros tiveram aulas de moral e cívica. Nesta terceira década do século
21, o que se pretende é que as redes de ensino não apenas consigam transformar
o texto constitucional em realidade, mas que façam isso em sintonia com o rol
de competências que se espera ver nas atuais e futuras gerações de estudantes:
autonomia, pensamento crítico e habilidades socioemocionais, juntamente com os
conhecimentos tradicionais de que a formação escolar não pode abrir mão. Sim, a
tarefa é gigantesca. Mais que nunca, porém, o futuro da democracia passa pela
sala de aula.
Cadáveres em série no Rio
O Estado de S. Paulo
Nova operação policial que deixa vários mortos em favela sugere um inaceitável padrão de violência do Estado
Terminou com pelo menos 19 mortos a mais
recente operação policial em favelas do Rio de Janeiro, na última quinta-feira.
Desta vez, os tiros e o cenário de guerra tiveram lugar no Complexo do Alemão,
na zona norte da cidade. Em maio, outra ação policial já havia resultado em 25
mortes, na Vila Cruzeiro, também na zona norte. Um ano antes, em maio de 2021,
a mais letal das incursões policiais de que se tem notícia no Rio tirou a vida
de outras 28 pessoas no Jacarezinho, igualmente na zona norte.
As chocantes cenas de violência se repetem:
disparos de fuzil para todo lado, moradores (incluindo crianças) apavorados
dentro de casa e, ao final, corpos e mais corpos sendo carregados morro abaixo.
Em comum, divulgada pela polícia, a informação de que a respectiva operação
buscava combater criminosos que estavam em vias de praticar novos delitos.
Ninguém ignora que facções do crime
organizado espalham-se pelas grandes cidades do País, em especial pelo Rio de
Janeiro, nem que dispõem de armamento pesado, entrincheirando-se em áreas
densamente povoadas com o claro intuito de dificultar a atuação das forças
policiais. Basta dizer que, na última quinta-feira, no Complexo do Alemão, a
polícia informou ter apreendido uma metralhadora .50, arma de guerra capaz de
derrubar helicópteros.
Ora, uma vez que as autoridades, policiais
ou não, estão cientes disso, cabe perguntar: por que as polícias do Rio
repetem, a ponto de tornar quase corriqueiro, um modo de atuação que acaba por
transformar “suspeitos” em cadáveres e, não raro, tira a vida também de
policiais e de moradores inocentes? Não há como ignorar a frequência com que as
ações policiais têm resultado em um elevado número de mortes em diferentes
favelas do Rio. Então, é preciso que se diga: não é papel das polícias subir o
morro e sair matando “suspeitos”. Ainda mais em áreas urbanas onde vivem
milhares de pessoas sem relação com os crimes investigados.
Infelizmente, porém, parece haver uma
cultura que considera aceitável esse modus operandi − e que ecoa o bordão de
que “bandido bom é bandido morto”. Nada mais equivocado. Tal afirmação, tão ou
mais criminosa do que os crimes que diz querer combater, aponta como solução
algo que não apenas não resolve o problema da falta de segurança, como o
agrava. Ninguém se iluda: fora da lei, não há solução para o problema da
criminalidade. E o papel das polícias, por óbvio, não é matar bandidos em
operações açodadas, e sim garantir que a lei seja cumprida. Nesse sentido, a
Polícia Militar (PM) do Rio de Janeiro daria um passo à frente se incorporasse
o uso de câmeras na farda dos policiais, a exemplo da PM de São Paulo.
As posições defendidas aqui não implicam,
de maneira alguma, um milímetro de complacência com criminosos de qualquer
espécie nem defesa da impunidade para quem age fora da lei. Pelo contrário. As
forças de segurança, no Rio e no País inteiro, têm que atuar com o máximo rigor
no combate ao crime, reunindo informações e valendo-se da inteligência policial
para dar maior efetividade à sua missão de proteger a sociedade. Com operações
que desarticulem quadrilhas e prendam os criminosos. Dentro da lei.
Lei de Cotas nas universidades tem de ser
renovada
O Globo
Sociedade brasileira se convenceu de que
ela é uma arma essencial no combate ao racismo e à desigualdade
Em agosto, dez anos depois de aprovada,
expira a lei que estabeleceu cotas para ingresso nas universidades e institutos
federais, reservando 50% das vagas a alunos de escolas públicas (metade delas
aos de famílias com renda de até 1,5 salário mínimo per capita). Ela instaurou
ainda outro filtro: pretos, pardos, indígenas e deficientes passaram a ter,
entre esses cotistas, uma fatia proporcional à participação na população. Antes
de 2012, já havia políticas de ação afirmativa em diversos formatos. Ao disseminar
a prática no país, a Lei de Cotas foi um marco. Agora, será missão do Congresso
avaliar seus resultados — e já tramita um projeto que posterga a expiração da
lei.
O primeiro dever dos congressistas é
verificar se ela cumpriu seu objetivo principal: ampliar o acesso de grupos
sub-representados ao ensino superior. A discussão será naturalmente contaminada
por paixões. As cotas foram um dos motivos por que a sociedade brasileira se
tornou mais sensível à questão identitária. Na década anterior à lei, houve
debate intenso, sobretudo em relação às cotas baseadas em critérios raciais.
Havia dúvidas sobre sua eficácia como mecanismo de inclusão e sobre a reação
que despertariam, ao tornar mais saliente a chaga do racismo e, indiretamente,
retroalimentá-la.
Em que pesem as ressalvas, o debate de 20
anos atrás está superado. O racismo precisa ser combatido sempre, com vigor e
energia. E a sociedade brasileira se convenceu da relevância das cotas como
arma nessa luta. Diferentes pesquisas mostram que metade dos brasileiros apoia
as cotas raciais nas universidades. Ainda que haja opositores, a maioria fez
sua escolha por meio de instituições legítimas. Cotas raciais foram aprovadas
no Congresso e referendadas em votação unânime no Supremo Tribunal Federal
(STF). Tornaram-se primordiais para trazer às melhores universidades quem não é
da elite e para enfrentar a desigualdade com a arma mais eficaz: acesso à
educação.
São fartas as evidências de que elas atingiram
a meta principal. Os egressos de escolas públicas nas instituições contempladas
foram de 55% em 2012 a 63% quatro anos depois. Pretos, pardos e indígenas, de
27% a 38%. A diversidade maior entre o 1,1 milhão de graduandos nas
universidades públicas é visível a quem anda por qualquer campus. “Os programas
de ação afirmativa transformaram as universidades e tiveram impacto profundo na
vida de muitos cotistas”, afirma a economista Fernanda Estevan, da Fundação
Getulio Vargas.
Os cursos mais impactados foram os mais
concorridos. Alunos de escolas públicas começaram a sonhar alto e a prestar
vestibular para carreiras de prestígio. Uma pesquisa da Unicamp revelou aumento
de 10% na escolha por medicina e por outros quatro cursos concorridos. Isso
contribuiu para a mobilidade social, como demonstra estudo com alunos do
Direito da Uerj. Entre os cotistas, 80% completaram o ensino superior, 70%
passaram no exame da OAB e 30% foram trabalhar como advogados. Nas federais,
houve impacto positivo também nos cursos em que oriundos de escolas públicas já
eram mais da metade. O percentual cresceu, mostrando que havia demanda
reprimida. Pesquisas também demonstraram o efeito específico das cotas raciais.
“Sua adoção foi quase cinco vezes mais eficaz para o aumento nas matrículas de
estudantes pretos, pardos e indígenas oriundos de escolas públicas que num
cenário sem elas”, diz a economista Ursula Mello, da Barcelona School of
Economics.
Em duas áreas, os congressistas deveriam
promover melhorias: acesso e retenção. Na primeira, será importante examinar a
eficácia da regra que reserva vagas aos com renda familiar per capita de até
1,5 salário mínimo. Esse valor põe o aluno na metade superior da pirâmide
social (numa família de quatro, a renda pode chegar a R$ 7.272). Se o objetivo
é abrir portas aos pobres, o crivo precisa ser mais rígido. Nas federais, a lei
aumentou em apenas 2,4 pontos percentuais as matrículas de alunos com renda
familiar de até um salário mínimo. Outra questão relevante está ligada às cotas
raciais. A lei determina que os percentuais destinados a pretos, pardos e
indígenas sejam definidos pela proporção de cada grupo no Censo. Como ele só
ocorre de dez em dez anos, deveriam ser levados em conta levantamentos mais
frequentes.
O maior desafio dos congressistas é
melhorar a retenção. Parte considerável dos cotistas não termina o curso. Uma
análise da USP revela desistência de 25% entre pretos, pardos e indígenas
(entre não cotistas brancos, 17,6%). É possível que a realidade seja pior.
Alunos ricos, quando saem da faculdade, costumam trocar de curso. Cotistas são
obrigados a abandonar o sonho da graduação. “Atacar o problema da evasão requer
pensar nas causas da desistência”, diz o economista Michael França, do Insper.
Se a questão é financeira, é preciso ter um amplo programa de bolsas de
estudos. Se o problema é acompanhar as disciplinas devido a deficiências no
ensino médio público, o recomendável são programas de reforço. Medir de forma
sistemática o desempenho acadêmico dos cotistas é chave para evitar o abandono.
Como as razões que levaram à criação da Lei
de Cotas persistem no Brasil, ela deveria ser prorrogada, com tais melhorias,
para ser reavaliada mais adiante. Na discussão sobre a nova lei, os
parlamentares deveriam manter o foco nas questões objetivas e evitar a
contaminação ideológica do tema. O país conta com pesquisadores sérios,
dispostos a examinar cada ponto sem paixão. São esses que o Congresso deve
ouvir para que o Brasil avance ainda mais no combate ao racismo e à
desigualdade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário